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Conclusão: uma burguesia em duas frentes

Do que vimos, conclui-se estar o país dotado duma emergente burguesia urbana de tipo capitalista, com ambições hegemónicas e a história a seu favor, mas vivendo encurralada entre um passado que lhe pesava, o pré-capitalismo gamonal, e um futuro grande de mais para a sua capacidade financeira e tecnológica, o capitalismo internacional. Tratava-se uma classe ambiciosa, com acesso fácil aos corredores do poder e que controlava directamente instrumentos essenciais da formação de opinião, como era a imprensa.

Do outro lado, estavam duas distintas frentes: Em primeiro lugar, os ultrapassados gamonales, sentados sobre a história, inadaptados aos novos modelos económicos, pretendendo sobreviver à custa das velhas práticas de exploração do trabalho herdadas do tempo colonial, mas sofrendo erosão económica e política. Em certa medida estavam também desse lado os proprietários da costa, dedicados à produção de açúcar e algodão, os primeiros sem fixarem o seu capital no Peru e preferindo investi-lo no estrangeiro, os segundo reproduzindo os mesmos modelos de exploração pré-capitalista da mão-de-obra praticados nas haciendas da serra. Por último, as empresas multinacionais, essas sim com um poder real assente no peso diplomático dos Estados Unidos. Uns, os gamonales, impediam a burguesia urbana de crescer no mercado interno, outros, as multinacionais, impediam-na de ambicionar o rentável negócio exportador.

Neste processo de necessário combate à burguesia pré-capitalista rural, o capitalismo urbano começou a desenvolver um discurso indigenista, de defesa do camponês, e ao mesmo tempo incentiva algumas revoltas dos campos, como acontecera, por exemplo, nas ‘lutas da lã’ na década de vinte (BURGA, Manuel e FLORES GALINDO, Alberto, 1997, p.190).

Ao capital estrangeiro, monopolizador dos tão apetecíveis negócios da extracção e exportação de matérias- primas, enfrentou-o com um discurso nacionalista, de defesa de grupo confundida com os interesses do país. Para isso utilizou a imprensa, de que era proprietária, transformando-a num instrumento de defesa nacional e de ataque à invasão do capital estrangeiro.

Tendo as multinacionais e os proprietários rurais como inimigos, a burguesia urbana podia ter, paradoxalmente, os camponeses como aliados. Creio, aliás, ter sido essa aliança a pedra de toque do golpe de Estado de 1968 e do período revolucionário que se lhe seguiu. Os camponeses, o medo social da sua

114 “Si la entrega del petróleo era ‘respetada’, otras riquezas peruanas seguirían un rumbo igual e irían parar a las manos de las empresas norteamericanas: el cobre,

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potencial aliança com grupos radicalizados inspirados em Cuba, o perigo dum efeito dominó latino-americano, eram por esse então a grande apreensão dos Estados Unidos115, que não se importariam de sofrer perdas em algumas das suas empresas, quando o confronto era entre as opções fundamentais do continente, no complicado xadrez da guerra fria. Esta aliança não declarada entre camponeses e capitalistas ficava então poderosa de mais, para ser enfrentado pela erodida classe de gamonales.

Mas, ao mesmo tempo, adivinhavam-se os tempos difíceis inerentes a todas as mudanças de modelo, sendo necessário criar na massa proletarizada de trabalhadores urbanos, um sentimento de esperança, capaz de os congregar no processo e de os fazer aceitar alguns sacrifícios em nome dum futuro melhor, essa tal fortalecedora convicção de “Os Deuses vendem quando dão” e “Compra-se glória com desgraça”, referida pela genialidade de Fernando Pessoa em “Mensagem”. Veremos como o GRFA também procurou ter respostas para mitigar a insatisfação desta classe e como, nesse jogo, entrou finalmente em conflito com a burguesia urbana, precipitando a queda do presidente Velasco Alvarado.

Esta vontade de mudança da burguesia urbana, nascida do referido equilíbrio social precário em que se encontrava a sociedade, explica a revolução, explica o programa da revolução e, como veremos, explica também porquê, em 1974, o GRFA está em pleno conflito interno entre conservadores, ou “reformistas liberais”, e progressistas, ou “radicais socialistas”. Estes últimos estavam a sofrer um grande desgaste, eles próprios guerreando-se entre si, e precisavam desesperadamente de novas fórmulas legitimadoras. Como veremos, esta necessidade explica o grande impacto da revolução portuguesa no Peru e a forma como esta foi explorada localmente.

Em 1968 estavam então reunidas todas as condições para a consumar um divórcio entre burgueses e gamonales, resultante da quebra do consenso hegemónico originado na “República Aristocrática” (QUIJANO OBREGÓN, 1971). O país estava prestes a entrar numa nova fase da sua história. Contudo, diz-nos o sociólogo francês François Bourricaud (2017), no Peru a oligarquia sempre esteve mais interessada no poder do que na eficiência económica, ou seja, o controlo do poder era usado como garantia de lucro. Percebemos, então, como este jogo de forças não poderia terminar através duma mudança natural e empurrada pelas próprias dinâmicas sociais; a transformação teria de chegar de cima, pela via do poder. E chegou, numa madrugada de 1968, vestida com um tanque de guerra.

115 Depois da vitória de Fidel Castro, começaram a surgir na América Latina uma série de guerrilhas inspiradas em Cuba, em grande parte como reacção ao

imperialismo norte-americano. Aconteceu no Paraguai com o Movimiento 14 de Mayo, na Argentina com os Uturuncos, o Movimiento Revolucionario 14 de Junio na República Dominicana, o Movimiento Revolucionario 13 de Noviembre na Guatemala, Juventud Patriótica na Nicarágua. A segunda declaração de Havana surge como reação à invasão da Baía dos Porcos e procura galvanizar estes movimentos(LUST, 2013, pp.30-31). O lançamento da Aliança Pelo Progresso em 1961, não é alheia ao receio que esta vaga provocou na administração Kennedy, acentuada pela convicção da CIA que considerava o continente maduro para uma revolução generalizada, se não se procedesse a reformas sociais e a uma política de desenvolvimento económico (p.25-26)

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Para consolidar estas conclusões, vejamos agora como governaram os militares nos primeiros anos da revolução, e em que situação estava o GRFA, quando, em Portugal, também as Forças Armadas ocuparam as ruas e fizeram cair o regime, usando esse mesmo vestido no dia 25 de abril de 1974.

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