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A SCML, o município de Lisboa e a criação dos expostos

A partir de meados do século XVI, as crianças expostas da cidade de Lisboa passam a estar a cargo da SCML porque tendo esta a seu cargo o HRTS e tendo o Hospital dos Meninos Orfãos nele sido incorporado, entendia a Câmara que a SCML tinha assumido a criação dos expostos. Pareceria uma questão simples mas que o não foi e que arrastou a SCML e o Município para um longo litígio sobre quem deveria assumir as despesas com tal serviço. Evidentemente que a Câmara da cidade de Lisboa defendia que essa obrigação cabia à SCML, como administradora do HRTS. A SCML tentou descartar-se dessa responsabilidade escudando-se em dificuldades financeiras e na lei do Reino, que como vimos, determinava que fossem os municípios a responsabilizar-se por essas crianças, quando todas as hipóteses anteriores se tivessem esgotado. Deve realçar-se que no Compromisso da SCML “(…) não ha disposição alguma com referencia aos expostos (…)”190

.

O montante das despesas das Misericórdias com expostos e doentes que estas alegavam ser sempre volumoso, deve ser visto com rigor porque, segundo alguns especialistas, “Quanto menores eram os critérios de selecção, maior era o número de assistidos e menos valiosa a assistência per capita.(…)”191

. Isto é, os maiores apoios financeiros eram dados a indivíduos para quem era necessário manter o estatuto social. Seriam em menor número mas seriam os que financeiramente eram mais beneficiados, enquanto os pobres, doentes e expostos, em maior número mas também eram “(…) os pobres mais baratos (…)”192, os que receberiam menos.

189 A partir de 1870, o número de crianças entradas na SCML caiu para menos de metade dos números

atingidos durante toda a década de 60. Ver Inventário da Criação dos Expostos…, p. 47.

190 Ver Costa Goodolphim, As Misericordias, pp. 72-73. Este autor refere ainda que em muitas localidades

havia impostos especiais para a sustentação destas crianças. Em Setúbal os impostos sobre a exportação de sal e em Coimbra “(…) nas sizas sonegadas, e no terço do real de agua.”

191

Ver Isabel dos Guimarães Sá, Estatuto social e discriminação…, p. 328.

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Este embate entre misericórdias e Câmaras não foi monopólio de Lisboa. Noutras cidades do reino, o mesmo aconteceu. Em Lisboa, em 23 de Junho de 1647 ambas as partes chegaram a acordo: a SCML administraria o sector mas a Câmara contribuiria financeiramente com 600$000 réis anuais, independentemente do número de expostos aumentar ou diminuir. Esse valor foi elevado para 2000$000 réis por decisão régia confirmada em carta de 31 de Janeiro de 1775.

Os rendimentos da SCML para suportar a criação das crianças expostas eram também aumentados com taxas variadas e ainda com os proventos provenientes de uma lotaria criada por decreto datado de 18 de Dezembro de 1783, cujos lucros deveriam ser divididos pelo serviço dos expostos, mas também canalizados para o Hospital de S. José e ainda pela Academia das Ciências, o que não será de estranhar dado o ambiente das Luzes que também influenciou o país.

Contudo, as dificuldades financeiras para sustentar o número cada vez maior de crianças que entravam na SCML eram recorrentes e chegava a levar à falta de pagamento às amas e “(…) Na epocha de 1842 mais se salientaram estes factos (…). Cuidava-se era de milicia para sustentar as instituições. (…) a 17 de dezembro d’este anno, uma ama á porta da Misericordia [dizia]: - Os soldados andam pagos, emquanto nós morremos á mingua!”193.

Uma vez decidido que a criação dos expostos seria da responsabilidade da SCML, esta organizou-se internamente para melhor responder às solicitações deste serviço: é criada a Mesa dos Enjeitados ou Mesa dos Santos Innocentes em 1657 que em 1768 foi anexada à Mesa da Misericórdia por razões que se prendem com uma maior racionalidade e boa gestão deste ramo da assistência.

Em 1775 há uma mudança importante na criação dos expostos pela SCML: se até aí a responsabilidade da instituição se estendia até aos 9 anos, devido ao seu número cada vez maior e à consequente subida dos gastos que tal acarretava, a idade de criação dos expostos a cargo da SCML desceu para os 7 anos.

Esta diminuição do número de anos que a SCML prestava auxílio a estas crianças também terá a ver com outras razões. Por um lado, algumas crianças aos 9 anos já teriam entrado no mundo laboral, auferindo de algum rendimento e mesmo assim ainda continuariam a ser auxiliadas pela Misericórdia; por outro, as que ainda o não tinham feito poderiam não o querer fazer porque contavam com o auxílio da SCML. Esta considerava que assim sendo, poderia estar a fomentar a ociosidade porque tendo a certeza que aufeririam do dito auxílio, as crianças ou não entravam no mundo do trabalho ou o abandonariam para viver às suas custas.

Então qual o futuro dos heróis que atingiam os 7 anos de idade? Seriam entregues aos Juízes dos Orfãos que deveriam providenciar no sentido de os distribuir por quem os quisesse aceitar, se as amas que os haviam criado não os quisessem manter. Caso o

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desejassem, poderiam fazê-lo, pois tinham prioridade sobre quaisquer outros pretendentes, mas a partir de então não receberiam qualquer salário. Para salvaguardar a honra das raparigas expostas e de forma a impedir que posteriormente caíssem na prostituição, o auxílio às raparigas poderia estender-se para além dos 7 anos, o que para os rapazes constituia a data definitiva a partir da qual a SCML cessava as suas responsabilidades.

A partir deste momento eram considerados órfãos, mas filhos legítimos. A idade de emancipação era diferente em ambas as categorias: 20 anos para os expostos, 25 para os efectivamente orfãos.