• Nenhum resultado encontrado

“(…) A parte do papel que falta neste =atada pella sintura com fita cor de castanha Meio e lados azul claro em huma das pontas alinhavado hum bocado de papel escuro em que esta estampada huma Arvore dourada debaix de cuja a figura de David tocando arpa partindo do papel pª a ponta dizia o nome Candida Alfreda(…)”249.

Este texto está escrito numa folha de papel próxima do que seria hoje uma folha A4 com recortes irregulares em baixo. A mesma folha tem alfinetada uma fita de seda azul com riscas castanhas e na ponta tem cozido um bocado de papel azul com uma esfinge dourada. Na fita está escrito “Candida Alfreda”.

Como já foi referido, o objectivo da sinalização das crianças seria individualizá-las de modo a serem reconhecidas, num futuro mais ou menos próximo, aquando de um possível retorno à família biológica. O medo dos enganos, das trocas e das suas consequências (o incesto por exemplo) levava a preocupações suplementares e às múltiplas sinalizações. Essa preocupação é claramente visível no conteúdo dos bilhetes: “Esta Menina está Baptizada tem por nome Maria – com apelido Holimpia, advertindo q só se entregará esta menina a quem aprezentar outro bilhete igual a este, roga-se toda a cautela, não só no seu tratamento como pª que não haja troca com outra q possa ter o m.mo nome, pois a seu tempo se hade hir buscar. Lisboa 30 de janeiro de 1824”250

.

Alguns chegam mesmo a pedir a transcrição do bilhete no registo de entrada para evitar qualquer dúvida futura: “(…) Deve constar do asento que se fizer o contheudo nesta para evitar duvidas em todo o tempo que for procurada esta menina (…)”251

.

A literatura portuguesa do século XIX e mesmo a do século XX aborda muitas vezes a temática do abandono das crianças, nomeadamente Camilo Castello Branco e Aquilino Ribeiro252. Um outro autor português do século XIX, embora menos conhecido e reconhecido pelo grande público e causador de grandes polémicas devido a plágios, António Enes, director do jornal O Dia e dramaturgo, na década de 70 do século XIX escreveu várias peças, algumas causando grande escândalo pelo seu pendor anticlerical. Em 1876 publicou Os Enjeitados, peça de teatro cuja acção decorre em 1868, precisamente dois anos antes do encerramento da Roda da SCML, ocorrido em 1870. Aqui a grande questão é o incesto. Este é visto como uma transgressão à ordem moral estabelecida e por

248

Ver Sinal nº 239 de 1832.

249 Ver Sinal nº 1393 de 1822.

250 Ver Sinal nº 144 de 1824. Maria Olimpia, segundo o seu registo de entrada, teria 3 meses quando foi

deixada na SCML. Morreu no mesmo ano, em Setembro, na casa da ama que dela cuidava, sem ter tido oportunidade de ter regressado à família.

251 Ver Sinal nº 588 de 1824. Carlota dos Ramos, assim se chamava esta menina, entrada na SCML no dia 2

de Maio de 1824 com 21 dias, morre em Julho desse mesmo ano.

252 Aquilino Ribeiro em A Casa Grande de Romarigães, romance de 1957, introduz na trama uma criança

exposta na Roda onde, segundo o autor, se colocavam as crianças ilegítimas “com o que se poupava o escândalo no seio das famílias cristãs”, p. 138.

82

isso mesmo condenado por ir contra os valores que sustentam as sociedades. E quem nele incorresse restava-lhe o castigo, quer da sociedade que bania e ostracizava os pecadores, muitas vezes conduzindo-os ao suicídio, quer da própria natureza que no seu papel regulador e justiceiro faria nascer criaturas monstruosas ou crianças mortas de modo a não testemunharem a origem pecaminosa.

Mas será Camilo Castello Branco em contos como Maria Moisés, A Enjeitada e O Olho de Vidro que tratará da questão do abandono na “Roda” e das funestas consequências que daí podiam advir em caso de sobrevivência e de reencontro com parentes próximos, nomeadamente irmãos. O incesto, um tabu universal, conforme apurou Bronislaw Malinowski253, condenado pela moral religiosa e pelos costumes, será um tema recorrente na obra de Camilo. Os nascimentos ilegítimos ou os filhos de padres são temas tratados nas novelas camilianas, nomeadamente em obras como Os mistérios de Lisboa. Talvez de todos os escritores portugueses do século XIX, Camilo Castelo Branco seja o que mais explorou esta temática nas suas obras. Mas o tema não se esgotou. Ainda no último quartel do século XX, Vasco da Graça Moura escreveu uma peça de teatro com o título Ronda dos meninos expostos. Auto breve de Natal254, onde mais uma vez o tema das crianças abandonadas na “Roda” volta a ser glosado.

Mas não foi só em Portugal que o tema foi objecto de interesse. Por exemplo, a história contada e cantada na ópera “As Bodas de Fígaro”255

também se desenvolve em torno desta questão. No século XIX um dos romances de grande divulgação foi Sem família, obra de Hector Malot256.

Antes de mergulharmos no universo de incógnitas para onde nos remetem os sinais trazidos pelas crianças entradas na “Roda” da SCML, detenhemo-nos no que sobre o assunto já foi escrito, quer a nível nacional, quer a nível internacional. Verificaremos que este tipo de documento tem uma analogia entre si que transcende fronteiras regionais e mesmo nacionais. O conteúdo, com o seu rol de preocupações, desejos, receios, recomendações e informações, é muito semelhante, quer seja um documento com origem na “Roda” de Lisboa, do Porto, de Sevilha, de Salamanca, de Paris, de Londres ou de Bolonha. É surpreendente esta similitude, quando se podem ter em conta diferenças religiosas, culturais e de desenvolvimento económico.

Os sinais podem assumir as mais diferentes formas: bilhetes, fitas, retalhos de pano, peças do enxoval cortadas, características físicas naturais ou criadas (orelhas furadas, por exemplo), anéis, fios, cabelos, relicários, cruzes, pulseiras, medalhas. Qualquer método seria bom desde que cumprisse a finalidade para que fora criado: singularizar a criança, dar informações e fazer pedidos, evitar enganos no momento de eventual procura posterior. Os

253 Bronislaw Malinowski (1884-1942), autor de origem polaca, foi um dos fundadores da antropologia

social.

254 Obra editada pela Quetzal Editora, 1987.

255 As bodas de Fígaro, música de Mozart com libreto de Lorenzo da Ponte, baseado na peça homónima de

Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais, Le marriage de Fígaro.

256

Hector Malot (1830-1907), autor francês, que em 1878 publica esta obra onde são contadas as aventuras e desventuras de uma criança que tinha sido abandonada.

83

mais comuns são os bilhetes, alguns deles com decorações que os tornavam ainda mais únicos e específicos.

Há bilhetes simples e bilhetes mais longos, com explicações, razões, justificações e pedidos257. É surpreendente como os mesmos valores, atitudes e preocupações são comuns e percorrem estes documentos, independente da sua origem geográfica e cronológica.

Embora sejam documentos sobretudo descritivos porque não contam histórias, quando muito insinuam histórias porque contar a verdadeira história seria dar indicações pessoais preciosas que poderiam levar à identificação de quem abandona, o que era, de todo, o que não se pretendia.

Apesar da iconografia ter representado o acto do abandono de uma criança como um facto doloroso para a mãe (é curioso que é sempre representada uma jovem mãe a abandonar o filho, nunca um homem, o que não corresponde completamente à realidade porque sabemos que muitas crianças eram entregues por outros que podiam até nem ser familiares directos da criança), temos dificuldade em aceitar tal quadro. O abandono de crianças poderia não ser dramático e muito menos vergonhoso. Estava enraízado nos costumes e usos das sociedades do tempo.

Além do mais, quem entrega a criança não é necessariamente quem sofre a dor do abandono: as parteiras a quem se recorria para o parto e posterior entrega do recém-nascido na “Roda”, dada a frequência e banalização do acto, deveriam encará-lo com uma normalidade e uma inevitabilidade sem remorsos, dores e penas.

Na generalidade, havia uma cultura que valorizava sobretudo os sentimentos maternos. Os pais, supostamente, não desenvolveriam afetos relativamente a crianças muito pequenas. Contudo, há bilhetes escritos pelos pais demonstrativos de afeto.

Tal como em Portugal, muitos dos bilhetes que tinham mencionadas promessas de recuperação, estas ficaram por concretizar. Lá fora como cá, a morte impediu, a maioria das vezes, o cumprimento da promessa. Poderemos pôr em causa a sinceridade dos progenitores? Normalmente a promessa de recuperar a criança está no fim do bilhete. Será uma forma estereotipada de acabar a missiva? Uma convenção? Uma moda? Só assim se poderá explicar o que move alguém que faz uma promessa sem a real intenção de a vir a cumprir.

A promessa de recuperação desculpabiliza os pais, torna a separação conjuntural ou quer-se crer que assim será. É tornar a criança exposta em menos exposta. Sê-lo-ia a prazo e nunca definitivamente, embora para as crianças ilegítimas é plausível pensar que o abandono tivesse um carácter quase definitivo e praticamente irreversível. Seriam as

257 Sobre o tipo de bilhetes, simples ou explicativos, ver Léon Carlos Alvarez Santaló, Marginación social…,

p. 204. Estas taxionomia criada pelo professor Santaló é utilizada por outros autores. Assim, os bilhetes simples só conteriam informações sobre o nome e o baptismo, a única informação que seria de certeza verdadeira, enquanto os explicativos conteriam explicações mais alargadas: razões do abandono, pedidos, promessas, etc.

84

crianças que foram recuperadas, crianças legítimas? Não sabemos. É, mais uma vez, plausível, mas não é certo.

E o que dizer das promessas de pagamento das despesas feitas pela criança enquanto estivesse a cargo das instituições? E o que dizer das recompensas futuras às amas, peças chave na sobrevivência da criança? Em primeiro lugar, oficialmente, haveria sempre lugar a pagamento, a não ser em casos de extrema pobreza, e isto deveria ser do conhecimento de todos; mas sobretudo, seria um modo de insinuar desafogo económico, que poderia ser fundamental para um tratamento preferencial. Seria uma espécie de suborno; todos deveriam saber (instituições e amas) que não tinha fundamento real, não passando de argúcias e falsas promessas para delas tirar vantagem.

Com vocabulário e argumentos idênticos, os bilhetes revelam implicitamente algumas esperanças na sobrevivência da criança, que teria uma hipótese de viver uma vida melhor do que quem abandona poderia proporcionar. As estratégias para cair nas boas graças da instituição que recebe a criança são semelhantes: recorre-se à submissão e humildade, à pobreza para despertar compaixão (sempre será socialmente mais aceitável ser pobre do que reconhecer a desonra e a ilegitimidade). Os apelos à caridade cristã, se podem ser entendidos como forma de pressão, ingénua é certo, também podem ser vistos como uma forma de dar a entender às instituições que ambas as partes, quem abandona e quem recebe, partilhavam os mesmos valores morais e religiosos. No entanto, por vezes o tom dos pedidos é de exigência, embora o tom de submissão seja o mais frequente.

Os bilhetes podem ser vistos como uma construção que funciona como meio de pressão, mas também de impressão. Dar a impressão que não se tratam de crianças ilegítimas e se o são, quer fazer-se crer que são filhos de nobres. Ser filho ilegítimo, fruto de relações impróprias, filho do pecado, seria uma desvantagem e crê-se que nesse caso as crianças seriam menos protegidas pelas instituições. Para iludir a ilegitimidade e atrair mais empenho no cuidado daquela criança, recorria-se a razões que poderiam não ser reais: a pobreza dos pais, a morte de um ou de ambos os progenitores, a existência de mais irmãos para cuidar, isto é, tudo razões que ultrapassavam a vontade e o controlo dos pais e por isso a criança seria digna de receber cuidados e proteção. Seria uma forma de iludir a ilegitimidade, mascarando-a com factores externos, sobre os quais não havia qualquer domínio ou possibilidade de agir. Seria transformar uma criança de condição ilegítima, numa criança legítima mas pobre, embora as crianças ilegítimas pudessem ser crianças pobres, senão os dois pelo menos um dos progenitores. Mentir seria fácil porque aquela verdade, a que fora escrita, difícilmente seria submetida a escrutínio.

Há historiadores que defendem que esta “moda” de abandonar uma criança com um bilhete ou qualquer outro sinal individualizador se vulgarizou no século XVIII e que este novo costume advinha da uma mudança de mentalidade que defendia uma constatação, mais romântica do que real, que da miséria poderia passar-se para a riqueza e por isso

85

tornar-se-ia fundamental dar referências que individualizassem e sinalizassem convenientemente a criança que se abandona258.

Por quase todos os bilhetes passa a preocupação com o batismo: ou informam que já está batizada ou que deve ser batizada259. O binómio nome/batismo é uma constante em quase todos os bilhetes. Poder-se-á perguntar se esta preocupação com o batismo reflecte uma profunda religiosidade das populações ou se o batismo não fará parte de uma religiosidade mais ritualizada, um costume, um hábito. É dificil perceber onde acaba uma e começa a outra. De qualquer modo, o batismo representa a salvação, a vida eterna. E se por um simples pedido e por um gesto tão simples se pode aceder a ela, porque não dispor desse mecanismo que no futuro garantirá o paraíso?

Mas os bilhetes, para além das funções já enumeradas anteriormente, também poderiam ter um fim específico, servirem como uma espécie de testamento, constituindo a criança que se abandona em herdeira dos bens paternos. Em 1811, no rescaldo das invasões francesas um bilhete resume de forma muito clara quais foram as consequências para as populações da sua estadia no país: “Este menino chamase Manoel he batizado he filho de luiz dos ssantos e de sua Molher Joaquina Maria neto pela parte do pai de Antº dos ssantos do val do grou e neto pela parte da Mai de Joze Ant.es da eira velha Foi nasido no dito Lugar a eira velha Frgª de São Miguel das Colmeias trº de Lrª os Pais deste menino fugirão pª esta terra com elle pª amor dos fransezes Agora estão no espital Rial se elles viverem elles o procuraram e sse elles morrerem elle viver aparesendo com estas clarezas podera ser erdeiro dos Bens q ficarem de seus pais hoje 23 de marso de 1811”260

. Segundo o respectivo assento, Manoel já tinha 14 meses quando deu entrada na SCML, sendo originário de Leiria de onde os pais fugiram por causa dos franceses. Não sabemos se os pais sobreviveram. Mas Manoel morreu no mês seguinte sem ter hipótese de herdar os bens.

Por vezes, não satisfeitos com o pedido de batismo, garante de vida eterna e de comunhão e pertença à comunidade, os pais enviavam também objectos apotropaicos. Se a salvação da alma estava assegurada com o batismo, seria necessário providenciar o sucesso na vida terrena. Figas e amuletos feitos de osso ou azeviche261 tinham como função proporcionar proteção e uma longa vida. Ambas as esferas interagem, e uni-las dá a quem abandona um sentimento de conforto e segurança: uns, os símbolos religiosos protegem a dão sentido à vida espiritual, outros, os objectos pagãos, protegem dos males físicos e de uma existência precária e difícil.

Os bilhetes, bem como retratos, cartas de jogar, estampas com motivos religiosos poderiam apresentar cortes parciais ou totais que funcionariam no futuro como

258 Ver Alvarez Santaló, Marginación social…, p. 198. 259

Em Portugal, a indicação sobre a situação do batismo pode ser dada de forma indirecta: se o bilhete diz que aquela criança se há-de chamar, significa que ainda não foi batizada. Se pelo contrário, o bilhete diz que a criança “chama-se”, há largas hipóteses de já ter sido batizada.

260 Ver Sinal nº 596 de 1811. 261

Pedra à qual se atribuiam qualidades mágicas. Ver María Fernández Ugarte, Expositos en Salamanca…, p. 162.

86

contrasenha. Cada uma das partes tinha destinatários diferentes: uma ficava na posse de quem abandona, a outra enviava-se com a criança. No momento próprio, ambas as partes encaixariam provando legitimidade da recuperação262.

Que tipo de crianças das que entravam nas “Rodas”, eram mais sinalizadas? Legítimas ou ilegítimas? Alguns autores referem que sinalizar crianças ilegítimas seria pouco útil. Essas crianças estariam à partida “condenadas” a não serem recuperadas. Serem sinalizadas para posteriormente serem recuperadas pelos familiares seria um acto de coragem e valentia porque significava assumir relações pré-matrimoniais, recuperar um passado que se quer esquecer. Por isso, marcar uma criança ilegítima teria pouca utilidade263. A maioria das crianças abandonadas seriam-no por miséria, agravada ou não com a ilegitimidade. E se o nascimento de uma criança pusesse em perigo a honra de uma mulher ou o prestígio do pai (para mais se este oficialmente não podia aceder à paternidade…), o abandono era mais que certo ter um carácter definitivo.

Nos meios populares a ilegitimidade seria tão frequente que deixa de ser um estigma social, mas é-o nas camadas intermédias e de topo, embora nem sempre assim fosse. Será uma tendência mais presente socialmente após o Concílio de Trento dado o maior controlo por parte da Igreja dos comportamentos individuais e da moral sexual.

O modo como vinham vestidas as crianças no momento do abandono também é muito significativo. Para além da roupa poder ter cortes que ficavam na posse de quem abandonava e servir de sinal posterior, a descrição das peças de roupa (tipo, cor, material) podia ser usada como sinal identificador: “(…) Leva vestido hum asainha de Xitta azul clara e hum Mandrião de Paninho Branco e huma toca de bobinete com fitas emcarnadas estes são os sinais q leva o dito Menino e espera-se q se va boscar logo q se possa (…)”264. A maioria das peças são velhas e deterioradas e possivelmente essas crianças eram filhas de pais pobres, muito pobres e, quiçá, também ilegítimas. Quando se apresentavam razoavelmente vestidos, com um enxoval composto por diversas peças, embora não repetidas e feitas de tecidos vulgares, estaremos perante crianças legítimas mas de famílias pobres, herdeiros de roupas de outros irmãos mais velhos? Roupas novas, peças variadas e repetidas, utilização de sedas, estampados, rendas e encaixes, neste caso poderão tratar-se de crianças ilegítimas, de pais com uma situação económica desafogada que por qualquer razão não podem assumir a criança na altura do seu nascimento? Não sabemos.

Nunca saberemos a razão ou razões que levaram efectivamente ao abandono. Poderemos sempre só colocar hipóteses que nos pareçam mais plausíveis perante os sinais externos que a criança consigo transportava.

Onde houve expostos, houve sinais. O seu número variou com a geografia e a cronologia, mas sempre com os mesmos objectivos: 1. Informar, justificar, recomendar,

262 Normalmente quando se trata de retratos ou cartas de naipes, estes documentos são cortados de forma

irregular em duas partes. No caso dos retratos, tal técnica impossibilitava o reconhecimento do retratado, possivelmente um familiar de quem era abandonado.

263

Ver Adela Tarifa Fernández, Marginación, pobreza y mentalidad social…, pp. 297-298.

87

pedir, prometer; 2. Identificar a criança no futuro caso fosse procurada e assim evitar enganos; 3. Justificar que quem se apresenta para recuperar a criança não é um impostor, mas alguém com uma ligação verdadeira à criança. Assim se explica o cuidado em pedir para guardar “(…) tudo para dipois se hir percurar por eses sinais e não seja como alguns que se não achão porque lhe tirão o Sinal”265 ou numa outra em que se acrescenta mais um nome ao inicial para reforçar a sua identidade de modo a não haver trocas no futuro: “Esta Menina está Baptizada tem por nome Maria – com apelido Holimpia, advertindo q só se entregará esta menina a quem aprezentar outro bilhete igual a este, roga-se toda a cautela, não só no seu tratamento como pª que não haja troca com outra q possa ter o m.mo nome (…)”266

.

Mas quem escrevia um bilhete, escrevia o que queria, o que lhe parecia mais importante que os outros lessem ou ouvissem. Os bilhetes são fragmentos da realidade e da vida de gente comum, de gente de quem desconhecemos tudo ou quase tudo, de quem nunca saberemos as reais intenções, que só conhecemos por discursos, a mais das vezes da autoria de intermediários.