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3 O que dizem os sinais das crianças expostas na SCML

1.9 A alimentação

Por vezes a preocupação de quem abandona revela-se nas informações sobre a alimentação do recém-nascido: “este menino he Bautizado chamase Joze ja não mama tem quinze mezes …”639

, mas também podemos verificar como era a dieta alimentar das crianças, nomeadamente das mais pobres. Por vezes declara-se que a criança tem boa saúde na esperança de que sobreviva à voragem da Roda640 ou insinuando que caso morresse a razão seria imputável à instituição porque à entrada a criança não tinha “moléstia”, eventualmente para informar que a criança não tinha sífilis. Embora nunca

634

Ver Sinal nº 121 de 1806.

635 Sobre este tipo de marcas físicas, ver María Fernández Ugarte, Expositos en Salamanca …, p. 170; Adela

Tarifa Fernández, Marginación, pobreza y mentalidad social …: “(…) Así, en el Hospital Real de Santiago, existió el empleo de «marcador de expósitos», oficio que pasó el «cirujano-marcador» en 1768.”, p. 301 e Isabel dos Guimarães Sá, A circulação de crianças na Europa do sul…, p. 50.

636 Ver Sinal nº 1109 de 1793. Ver Apêndice, Estampa 39. 637 Ver Sinal nº 1493 de 1806.

638 Ver Sinal nº 945 de 1839. 639

Ver Sinal nº 604 de 1817.

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referenciada nos bilhetes, a doença existiria e seria um problema grave. Na acta da sessão de 20 de Fevereiro de 1854, a administração da SCML solicita à administração do Hospital de S. José, que esta providenciasse no sentido de os facultativos da enfermaria respectiva informassem a SCML do estado de saúde das mães das crianças daí enviadas de forma a “(…) evitar-se quanto possivel a communicação às amas das enfermidades que as puerperas do m.mo Hospital podem ter trensmittido a seus filhos, essencialmente estando affectadas da sefhilis, o que neste Estabelecimento se não pode conhecer, porque só aos 3 mezes, idade em que as crianças estão já no poder das amas, é que de ordinario se dezinvolve (…)”641

.

Como já referimos, entre as doenças mais comuns de que as crianças eram portadoras quando entravam podemos referir a febre, as fogagens, as alergias ao leite, os “sapos”642

, no fundo uma mistura doenças tipicamente infantis com doenças relacionadas com uma alimentação desequilibrada ou com falta de higiene.

O modo como as crianças eram alimentadas também está reflectido nos bilhetes, através das informações que se consideravam ser fundamentais serem prestadas para a sobrevivência da criança. Sopas de leite, rolhas embebidas em açúcar são vulgares entre as opções de estavam à disposição das crianças: “Manuel Augusto Antonio Cureia São Gemios tem de idade oito mezes por falta da saude da mai e os poucos meios de sua mai ja não mamo a quatro mezes e tem sido sustentado a quatro meses a supinhas de leite (…)”643

. O leite também podia ser causa de doenças se tivermos em conta que nem sempre seria de vaca (cabra, por exemplo), que não seria fervido o que provocaria doenças nas crianças: “(…) e a menina tem fugaia é do leite de fevre não é molestas (…)”644

.

Os próprios hábitos alimentares da criança também são referenciados nos bilhetes, com o objectivo de quem recebe saber um pouco mais de quem vai entrar, de modo a precaver a sobrevivência da criança: “(…) Come munbto ven mas o comer não he sofficiente para hela e Bebe munta água”645

. Num outro caso, a criança que já tem seis meses e entra na SCML porque “(…) tem sua mai em perigo de morte pa come he de mto alento (…)”646

Facilmente se percebe como a alimentação das crianças contribuíria para as altas taxas de mortalidade. Por falta de leite materno, muitas crianças começavam a comer muito cedo com as trágicas consequências que daí advinham: “Vai este Menino Nasseo a 20 do Mes de Julho d’1827 Dezejo que se Chame Titto Emilliano pª que se conhesa a todo o tempo se D.s for servido Darme meios para poder fazer Diligençia por elle elle já come alguma couza mas pouco”647

. Titto Emilliano entrou com 22 dias e morreu no último dia desse ano.

641 Ver Livro de Actas da Administração da SCML, sessão de 20 de Fevereiro de 1854, pp. 39v-40. 642

“Sapos” em linguagem popular são aftas na boca.

643 Ver Sinal nº 1395 de 1853. 644 Ver Sinal nº 455 de 1850. 645 Ver Sinal nº 337 de 1836. 646 Ver Sinal nº 916 de 1791. 647 Ver Sinal nº 1088 de 1827.

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Para além dos hábitos alimentares, os bilhetes deixam transparecer os objectos que eram utilizados para substituir as modernas xuxas: rolhas. “esta he margarida que he irmã daquela que veio pela manhezemas que hera marianna trazia huma rolha naboca (…)”648

. Neste caso a rolha tem uma outra função para além da habitual: é a referência para se saber quem era a irmã de Margarida.

Perguntar-se-á se os hábitos alimentares das crianças abandonadas diferia substancialmente das que o não eram. É evidente que se desconheciam as vantagens do tratamento do leite no ínicio do século XIX porque o leite não materno só as teria se fosse esterilizado e consumido em biberons também sujeitos ao mesmo processo. Contudo as crianças que eram abandonadas, para além do que estavam sujeitas todas as crianças, acrescia-lhes a escassez, a falta de vigilância e sobretudo estarem a ser criadas por amas que, justa ou injustamente, tinham, em geral, má reputação no que toca aos serviços prestados. Os períodos de maiores dificuldades, como sejam os anos coincidentes com as invasões francesas, só terão agravado a situação alimentar das crianças: “He filho de Pais desterrados, nasceo a 2 de Agosto de 1810 he baptizado, chama-se Jorge come sopinhas de agoa com asucar (…)”649

. Jorge, segundo o respectivo assento, tem ou aparenta ter 3 meses quando entra na SCML. Já deveria ter uma saúde frágil a acreditar na dieta que lhe era ministrada, e sem surpresa morreu no mês seguinte.

“O Menino que leva vestido roxo e coeiro escuro Pesso a Vª Sª que lhe ponha Alexandre e por falta de leite vai muito aCustumado a Cumer e este Menino a 18 de setembro fas tre meses (…)”650

. A criança tem cerca de três meses de idade quando dá entrada na instituição. Segundo o bilhete está “muito aCustumado a Cumer”. Não diz o quê. Certamente o que era habitual, água com açucar e outra comida que não seria apropriada para crianças de tão pouca idade. Por isso não é de estranhar que Alexandre tenha morrido no ano seguinte sem ter completado um ano de idade.