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Sinalização de características físicas das crianças

3 O que dizem os sinais das crianças expostas na SCML

1.7 Sinalização de características físicas das crianças

Muitas vezes as características físicas misturam-se com as doenças, sendo por vezes difícil estabelecer as fronteiras entre ambas. Será fácil de compreender que ter uma orelha maior do que outra, para além de questões estéticas e respectivos constrangimentos, não devia causar ao próprio mais danos do que aqueles que se prendem com esse domínio. Não parecem ser entendidos como doenças as más formações com as quais, aparentemente, seria fácil conviver: ter seis dedos nos pés ou nas mãos ou ter “(…) huma Sicatriz Ee cada Oolho”581

. Ser portador dessas diferenças significaria um desvio à normalidade mas que não impediriam uma vida mais ou menos igual a todas as outras crianças.

Alguns bilhetes referem algumas características físicas das crianças que se entregaram na SCML. Formato do rosto (“cara redonda”), cor do cabelo e olhos (“Aqui vai hum Menino (…) feicois miudas olhos pretos…”)582

, ter ou não as orelhas furadas (que vimos não ser monopólio das raparigas)583, ter ou não ter o freio cortado, unhas compridas, são as características mais mencionadas, funcionando as próprias como sinal de reconhecimento futuro: “a 17 do Mês de Julho no dia 3feira entrou hum menino (…) q por sinal tem os olhos azuis cabelo loiro”584. Mas não nos podemos deixar de surpreender com uma deformação física pouco habitual e que por isso mesmo funcionou como um sinal verdadeiramente original: “esta minina naseu a outo do mês de fevereiro Leva o freio por cortar a serventia debaixo por habrir (…)”585. Se alguma dúvida restasse do que se está a falar quando se fala da “serventia debaixo”, num outro bilhete de 1851 informa-se que uma menina “(…) não leva freio cortado nem cu feito (…)”586

. Esta anomalia não parece ser tão rara quanto isso. Em 1837 um menino “(…) Nasei as 11 horas da manha Não esta Valtizado não tem Cu não tem o Ferio Cortado (…)”587

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579 Só encontrámos uma criança que trazia mais do que um par de sapatos. No caso três. Também

curiosamente foi entregue ao pai. VerLº dos filhos q se entregão a seos Pais, fª 148.

580 Ver Sinal nº 649 de 1841. 581 Ver Sinal nº 945 de 1839. 582 Ver Sinal nº 24 de 1790. 583

Tanto rapazes como raparigas podiam ter a(s) orelha(s) furadas, embora fosse mais vulgar entre as raparigas: “(…) leva para sinal humma orelha furada com hum fio de retrós preto leva hum lenço de três pontas pede q celeponha Antonio Rodrige”. Ver Sinal nº 1263 de 1846.

584 Ver Sinal nº 744 de 1792. Segundo o assento no Livro de entradas e baptismo, esta criança teria cerca de

três meses quando entrou e morreu em 24 de outubro de 1795 em posse da ama que o criava.

585 Ver Sinal nº 200 de 1803.

586 Ver Sinal nº 739 de 1851. Poder-se-ia colocar a hipótese de se tratarem de duas crianças irmãs, que por

razões genéticas, apresentassem o mesmo problema. Mas o espaço de tempo entre uma e outra (1803 e 1851), invalida esta hipótese.

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O hábito de cortar o freio ou destravar a língua, operação sem a qual se acreditava que a criança seria incapaz de falar, é referenciada com assiduidade. Algumas vezes diz-se que esta operação já tinha sido ou não realizada: “eahi vai esa menina vai por Bautizar adese xamar Leonarda Maria da Conseição nasceo a 14 de setembro de 1801 o sinal q leva he huma senhora de marfim da Conseicão efiada ni hum cordas de retros azul fereite Leva 4 coeros de baeta azul clara he da freguesia do Rio de moiro não leva o freio cortado”588

. E mesmo tendo sido realizada, solicita-se a confirmação do sucesso do acto: “(…) Veja se esta o freio Bem cortado”589

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Uma deformidade física mais visível pode ser utilizada como um sinal individualizador: “(…) sinais não tenho que lhe por, pois otem denasença, seja criado com caridade que sehade hir buscar não tem mão dereita”590

ou um outro que informa levar “(…) de sinal seis dedos em hum pe”591

.

Os bilhetes também são muito elucidativos quanto à nomeação das diversas partes do corpo humano e a sua terminologia popular. Se algumas partes do corpo são nomeadas claramente por vocábulos que chegaram até hoje, também o podem ser de forma metafórica e próxima da realidade quotidiana das populações, como no caso de um menino que “(…) tem Signal preto no grão direito”592

. Também neste campo, a linguagem dos bilhetes revela o uso do vocabulário utilizado na época: “Hoje 27 do Mez de Julho de 1810, Entrego nesta Santa Caza da Mizericordia hum Menino por nome Domingos Luis de idade de dezasseis mezes já Baptizado, e desmamado, com seguintes signaes, cara redonda, olhos azuis, barba aguda, cabelo loiro (…)”593

. Hoje ninguém diria a propósito de uma criança de 16 meses que ela tem barba aguda para referir que a criança tem um queixo pronunciado.

Quando as crianças têm sinais físicos anómalos são esses que servem de sinal: “(…) tem por Sinal a ponta do dedo minimo torto e huma Bolinha de Carne pindurada da mão Esquerda”594

ou “(…) Junto à orelha direita para a parte do rosto, deu-lhe a naturesa um Signal: he um marmillo de carne, que parece verruga (…)595, ou ainda “(…) por mais

sinal he aleijado dos pes”596

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São comuns as referências a sinais pretos ou pardos nas diversas partes do corpo, incluindo os menos usuais como o desta menina “(…) filha de Pais em conitos (…) tem hum sinal com cabellos nas costas (…)”597

ou “(…) Leva hum sinal preto no pe direito da notoreza (…)598 588 Ver Sinal nº 1163 de 1801. 589 Ver Sinal nº 758 de 1796. 590 Ver sinal nº 1493 de 1806. 591 Ver Sinal nº 1253 de 1824. 592 Ver Sinal nº 728 de 1841. 593 Ver Sinal nº 1024 de 1810. 594 Ver Sinal nº 1733 de 1853. 595 Ver Sinal nº 736 de 1839. 596 Ver Sinal nº 486 de 1832. 597 Ver Sinal nº 842 de 1794. 598 Ver Sinal nº 1492 de 1818.

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Este tipo de anomalias físicas (verrugas, sinais) pode apresentar uma outra vertente da qual desconhecemos as consequências para a saúde e bem estar da criança e se foram determinantes no abandono. Em 1831 entrou um menino com cerca de dois meses de idade que tinha “(…) hum sinal ope do anes Sobre Crecido porem poderá q por espaço de tempo se venha a desfazer,”599

. Era filho de pai incógnito e as razões do abandono prendem-se com essa circunstância ou teria sido abandonado porque o problema do ânus criou uma situação insustentável quer para a mãe, quer para o filho?

Embora não sejam características físicas naturais, há referência nos bilhetes a cortes de cabelo funcionando como marca identificativa: “lisboa 14 de Outubro d 1863 As 6 horas da Tarde pertendese que se chame Amelia, signaes Vestido de lãa chadrez Azul e roxo com riscas brancas ja velho un coeiro d Baetilha Branco ja velho uma fralda com romendo camiza ja velha com fita a sintura de Lãa amarela um lenco na cabeca Br.co ja velho e um bocado de cabelo cortado atras”600

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Os cabelos, loiros ou pretos, cortados ou não, são as características mais comuns neste campo. Mas não são exclusivas: “(…) tem senais Seguintes hé clara e Bem cabelluda Leva as orelhas foradas (…)601

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Mas não são só as características físicas objectivamente observáveis (cor do cabelo, dos olhos…) que vêm mencionadas nos bilhetes. Também características mais subjectivas podem merecer menção: Em 1837 foi entregue um menino por “circunstancias urgentissimas” que “(…) hé muito claro, feições miudas e bem proporcionadas e He muito pacifico (…)602

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