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1. Os quantitativos

Entre 1790 e 1870 entraram na SCML mais de 160.000 crianças. Destas, 47,4% trazia um sinal que permitiria individualizá-las de entre o conjunto das crianças entradas na instituição e, eventualmente, servir de sinal identificativo numa futura recuperação. Se no futuro se pretendia ou desejava recuperar a criança, dando ao abandono um carácter transitório, é uma questão que fica praticamente por desvendar. Poucos, muito poucos, foram recuperados e voltaram à família biológica por impossibilidades várias: a maioria morreu, não dando tempo a essa promessa de recuperação.

O mesmo podia ter acontecido aos pais. As condições de vida também podiam não ter melhorado e as razões que levaram ao abandono ter-se-iam mantido, ou as promessas de recuperação não eram sérias, tratando-se unicamente de uma forma de exorcizar medos, constituindo meras estratégias de auto-convencimento para apaziguar consciências e tornar o abandono mais suportável, para se convencer que este seria por curto espaço de tempo, ou ainda estabelecer uma ténue ligação com aquele que se abandona.

Vejamos os quantitativos:

Quadro 1

Os quantitativos (1790-1870) Ano Nº de crianças expostas Nº de crianças com sinais % 1790 1416 773 54,6 1791 1401 753 53,7 1792 1406 793 56,4 1793 1516 792 52,2 1794 1571 834 53,1 1795 1524 787 51,6 1796 1639 868 53 1797 1583 839 53 1798 1595 823 51,6 1799 1548 729 47,1 1800 1586 727 45,8 1801 1674 772 46,1 1802 1478 771 52,2 1803 1553 801 51,6 1804 1520 810 53,3 1805 1623 894 55,1 1806 1584 843 53,2

75 1807 1723 839 48,7 1808 1788 897 50,2 1809 1636 802 49 1810 1910 897 47 1811 2008 857 42,7 1812 1728 842 48,7 1813 1776 807 45,4 1814 1746 813 46,6 1815 1778 863 48,5 1816 1736 857 49,4 1817 1733 875 50,5 1818 1779 844 47,4 1819 1741 837 48,1 1820 1785 825 46,2 1821 1756 746 42,5 1822 1695 759 44,8 1823 1826 796 43,6 1824 1778 787 44,3 1825 1825 816 44,7 1826 1779 743 41,8 1827 1677 721 43 1828 1699 719 42,3 1829 1803 744 41,3 1830 1757 734 41,8 1831 1850 777 42 1832 1846 746 40,4 1833 1940 812 41,9 1834 1696 613 36,1 1835 2156 871 40,4 1836 2005 831 41,4 1837 1931 800 41,4 1838 1959 816 41,7 1839 1967 880 44,7 1840 1922 841 43,8 1841 2050 872 42,5 1842 2136 868 40,6 1843 2162 885 40,9 1844 2212 926 41,9 1845 2315 938 40,5 1846 2336 950 40,7 1847 2417 987 40,8 1848 2464 951 38,6 1849 2471 995 40,3 1850 2429 992 40,8 1851 2361 992 42 1852 2373 993 41,8 1853 2487 1070 43 1854 2420 1061 43,8

76 1855 2403 1051 43,7 1856 2589 1204 46,5 1857 2620 1281228 48,9 1858 2562 1192 46,5 1859 2804 1386 49,4 1860 2694 1369 50,8 1861 2741 1436 52,4 1862 2794 1446 51,8 1863 2653 1354 51 1864 2779 1459 52,5 1865 2711 1462 53,9 1866 2460 1459 59,3 1867 2598 1619 62,3 1868 2749 1696 61,7 1869 2829 1712 60,5 1870 2879 1812 62,9 TOTAL 163449 77434 47,4

Fonte: Inventário da criação dos expostos do Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, pp. 108-110.

Gráfico 1

Este número assombroso de crianças entregues na SCML não corresponde unicamente a crianças oriundas da cidade de Lisboa229. Das crianças de quem ficou

228 No Inventário da criação dos expostos do Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa,

no ano de 1857 constam, por engano, unicamente 127 crianças portadaoras de sinais. Na realidade, nesse ano, 1281 crianças foram portadoras de um sinal. Ver Inventário da criação dos expostos…, p. 110.

229 O número crescente de crianças entradas na Roda da SCML originou que esta tivesse que construir “(…)

para o lado da calçada da Gloria, […] um novo collegio ou camarata e a casa de banhos” de modo a acomodar toda a população de crianças expostas que entrava na instituição. Ver Victor Ribeiro, A Santa Casa da Misericórdia…, p. 403.

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registada a origem geográfica, ou que traziam consigo a indicação respetiva, muitas têm origem nos concelhos límitrofes do que hoje consideraríamos a Grande Lisboa e Lisboa e Vale do Tejo. Se o número de abandonos é tendencialmente crescente, a subida acentua-se de modo brutal a partir da década de 1840. A este aumento não poderão ser alheios o crescimento urbano e o aumento da população na cidade.

Os limites geográficos de Lisboa nos finais do século XVIII e no século XIX não têm correspondência com a actualidade. Essas mudanças prendem-se com a sua expansão e com a incorporação na sua malha de freguesias anteriormente concelhos independentes, caso de Belém e dos Olivais.

Os sinais dos expostos acompanham esta tendência230. Analisando os números, verificamos que nos primeiros anos do período em estudo, a relação entre crianças expostas e o número de sinais se situa maioritariamente na casa dos 50%, esse número cai para a casa dos 40% para voltar a subir no final do período em análise, chegando a atingir números até aí nunca vistos. Entre 1808 e 1860 a percentagem situa-se na casa dos 40% nunca ultrapassando essa casa das dezenas, mas nos últimos 10 anos (1860-1870), ao mesmo tempo que o número de crianças abandonadas e expostas atinge valores nunca vistos, também a percentagem de sinais sobe para valores até aí desconhecidos. Pela análise do gráfico 1, podemos observar que ambas as curvas (nº de expostos e nº de sinais) têm uma apresentação quase paralela, com pequenas variações que o quadro 1 documenta, o que significa uma % quase fixa ao longo do período.

De qualquer modo, estamos perante um conjunto documental que fala por si. Trata-se de um universo muito diversificado de objectos, que no momento da entrada, ou entregues posteriormente (o que era muito raro), acompanhavam a criança que se abandonava, transferindo a responsabilidade da sua criação da esfera familiar para a esfera pública e assistencial.

No universo da nossa amostra, desconhecemos a origem geográfica de grande parte das crianças. No entanto, a maioria deveria ser de Lisboa porque ao darem entrada com horas ou com um dia de vida só podiam ser da cidade, dado que o transporte dos concelhos limítrofes obrigava a um ou mais dias de viagem. A duração desta última variava consoante a distância e o tipo de transporte: se era terrestre ou feito de barco, (e neste caso dependente dos ventos e da disponibilidade do barqueiro). Relativamente a cerca de mil crianças (995), temos a certeza de serem oriundas da cidade de Lisboa porque o bilhete o afirmava claramente. A estas se devem acrescentar mais 113 provenientes de Belém (onde existiu uma “Roda”) e outras do Campo Grande231

. Há a referir ainda 1019 crianças nascidas na Enfermaria de Sta Bárbara do Hospital Real de S. José entre 1790 e 1870,

230

Em Espanha, o número de crianças expostas portadoras de sinais foi muito variado: para Sevilha o valor oscilou entre 56,3% em 1630 e 9,3% em 1860. Para Pamplona os mesmos valores oscilam entre 10 a 20% no século XVIII para atingir 30 a 60% no século XIX. Ver Leon Carlos Alvarez Santaló, Marginación social…, p. 206 e Lola Valverde Lamfus, Entre el deshonor…, p. 85, respectivamente.

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De notar que Belém foi um concelho independente por breve tempo (1852-1885) e que o Campo Grande ficava fora de portas, só se integrando na malha urbana da cidade já depois do período em análise.

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remetidas para a SCML por terem sido abandonadas pelas mães (a larga maioria), ou por doença e incapacidade da progenitora em tratar do recém-nascido, ou ainda por morte.

Os concelhos que mandaram os seus expostos para a SCML foram, entre outros, Alenquer, Almada, Benavente, Cascais, Mafra, Moita, Oeiras, Povos232, Salvaterra de Magos, Setúbal, Sintra e Vila Franca de Xira. Os números são muito díspares. Se Vila Franca de Xira, Alenquer e Setúbal parecem ser os concelhos que mais crianças enviaram para a SCML durante o período estudado, os números para os restantes concelhos são mais modestos. No caso de vilas ribeirinhas como Alenquer e Vila Franca de Xira, entre outras, seguramente o rio Tejo facilitava o transporte até Lisboa das crianças expostas.

Das zonas que faziam fronteira com o Tejo, mas não só, as crianças chegavam a Lisboa de barco, demorando um tempo indeterminado dependendo dos ventos e das marés. Por vezes o transporte condicionava os trâmites religiosos pós abandono. Em 1821 uma criança foi enviada de Salvaterra de Magos, baptizada particularmente, porque o padre não teve tempo e para “(...) não se poder demorar a enbarcação lhe não pus os Santos Oleos”233

. No caso de Alenquer, vila distante cerca de 40 Km da capital e com uma frente ampla para o Tejo, está bem documentado esse trânsito de crianças para a SCML. Em 27 de Fevereiro de 1819, o Provedor da SCML, na época o Marquês de Abrantes, enviou uma carta ao juiz de fora desse concelho informando-o de que seriam devolvidas as crianças provenientes do mesmo porque o escrivão da Câmara, que até foi preciso suspender das suas funções e mesmo prender, contrariando as ordens superiores da Intendência da Polícia, continuava a enviar para a SCML as crianças abandonadas deste concelho.

Aliás o envio de crianças para a SCML está bem documentado na obra de Victor Ribeiro quando afirma que em várias localidades, incluindo Alenquer “(…) fazia-se uma especie de feira, onde appareciam as recoveiras para levar as creanças para as rodas (…)” e mais à frente diz: “Apesar das ordens terminantes da Intendencia, vinham recoveiras trazel-as de terras distantes, como de Alemquer, onde deviam ser criadas à custa das rendas do concelho”234 e que essas mulheres, pagas pelas Câmaras para as transportarem a Lisboa, dispensavam as edilidades dos encargos da sua criação. Só em 1817 teriam entrado na SCML 227 crianças oriundas dos concelhos límitrofes235.

As razões para o envio das crianças são variadas. Normalmente os concelhos não queriam assumir uma despesa que teria fraco retorno. Tratar-se-ia de gastar dinheiro com crianças que raramente sobreviviam. Por isso alegavam as mais diversas razões. Torres Vedras justificava o envio porque naquela "(…) Villa pella mizeria dos tempos e pobre situação faltam os meios (...)"236, Salvaterra de Magos “por não haver rendimentos nem subejos das sizas e Concelho ser hua terra pobre”237, Setúbal “Por não haver Amas nesta

232

Povos é hoje uma freguesia de Vila Franca de Xira.

233 Ver Sinal nº 529 de 1821. Ver Apêndice, Estampa 20.

234 Ver Victor Ribeiro, A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa…, pp. 402-403. 235 Idem, p. 403.

236

Ver Sinal nº 1523 de 1797.

79 Villa”238

e a Moita e Cascais “por não se achar ama de leite que a possa criar”239. Estas razões repetem-se ao longo dos anos e para todos os concelhos.

Os motivos económicos e financeiros deixam de estar entre os mais citados para justificar o envio para a SCML porque a lei era clara sobre quem devia criar essas crianças; passou-se a justificá-lo com a falta de amas de leite, como no caso da Moita, que em 1809 continuava a enviar crianças à SCML “por não haver ama de leite que o possa criar”240. Ainda em 1818, esta falta continuava a sentir-se na vila241. Em Setúbal a situação era semelhante. Sempre seria uma justificação mais aceitável para a SCML não colocar objeções à entrada das crianças vindas de fora.

Como está documentado, de algumas crianças conhece-se a origem geográfica e o seu nascimento fora de Lisboa. De outras, embora sem indicação geográfica, pela idade à entrada não poderão ter nascido noutro local que não fosse Lisboa. Mas sobre estas resta perguntar quantas crianças não serão filhas de mulheres que rumaram à capital, onde o anonimato é mais facilitado para dar à luz sem o conhecimento da vizinhança. Numa pequena vila ou aldeia era mais difícil esconder uma gravidez indesejada. Optar por métodos abortivos, para além de ineficazes, poderiam por em causa a vida da mãe e do feto. Dar à luz clandestinamente também acarretaria perigos vários: sem a ajuda dos familiares ou duma comadre, confrontada com a sua solidão, o que resta a uma mulher principalmente se se tratar de uma mulher solteira? Entre atrair a reprovação social sobre si, a sua família e o bastardo que trouxe ao mundo, algumas mulheres optaram por rumar a urbes maiores de modo aí terem a criança anonimamente, abandoná-la com maior facilidade e podendo reconstruir as suas vidas242.

De qualquer modo, as entradas e a respectiva origem geográfica também revelam as alterações institucionais produzidas a nível da criação de estruturas assistenciais locais que tornaram a ida para a SCML mais esporádica, principalmente na década de 60, mais concretamente na sua segunda metade243. Para além destas alterações legais no campo assistencial, a SCML tinha, não raras vezes, diferendos com as câmaras municipais limítrofes, alegando que estas se recusavam a cumprir a lei, isto é, a criar os expostos da sua área de jurisdição.

Chegam à SCML crianças de variadas idades e de variadas condições físicas. Algumas chegavam já mortas e eram entregues com a finalidade de a SCML lhes providenciar o funeral. Algumas morreriam pelo caminho porque as condições de viagem

238 Ver Sinal nº 1369 de 1800.

239 Ver Sinal nº 759 de 1800 e Sinal nº 247 de 1817, respectivamente. 240

Ver Sinal nº 48 de 1809.

241 Ver Sinal nº 592 de 1818.

242 Em algumas cidades espanholas foram mesmo criados estabelecimentos paralelos às Casas da Roda de

modo a permitir a assistência a parturientes que os procuravam de modo a realizarem o parto de forma confidencial e de seguida abandonar a criança. Ver Mª del Prado de la Fuente Galán, «Ilegitimidad y abandono…», pp. 16-21.

243 Apesar de mais esporádico, o envio de crianças para a SCML continuou. Guilherme João Carlos

Henriques afirma que “(…) a posteridade saberá, talvez com horror, que o mesmo systema de arrecadação e transmissão dos expostos à Santa Casa de Lisboa, ainda existia, tal e qual, [ao de 1819] em 1865.” Ver Guilherme João Carlos Henriques, Alemquer e seu concelho, Parte X, p. 127.

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seriam terríveis e quanto mais de longe, mais perigos244, outras doentes, outras subnutridas, a quem o padre que as recebe classifica de “miúdas” ou “muito miúdas” ou informa à margem que parece ter menos idade do que na realidade tem, como neste caso: “(…) Emtra Para Esta Santa Caza Maria Joaquina Filha de Josefa Jacinta de Idade de treze Mezes (…)”245

. Mas quando o padre fez o assento não hesitou e escreveu: “mas julgou-se só de 6”. Embora raro, porque raramente admitem que entregam uma criança doente, alguns bilhetes não deixam dúvidas quanto ao estado de saúde da criança: “Nasceo no dia quinta feira vinte e dous de Fevereiro de mil oito centos trinta e oito por volta das quatro horas da ma hãa. Cham[ar]-se-há João. O estado e[m] que se acha não lhe [per]mit[i]rá longa duração. [co]m tudo [ro]ga-se encare[ci]dem.e o maior disvelo pª [co]m elle por [] há as melhor[] de não o abandonar”246

.

Embora não saibamos se no número de crianças abandonadas há alguma prevalência de género, sabemos que na nossa amostra os rapazes são maioritários: 3997, ou seja 52,5% contra 3613 raparigas (47,5%). Mesmo no caso das crianças pardas há mais rapazes sinalizados do que raparigas. Nas crianças pretas, o número é praticamente igual entre ambos os sexos247. Os rapazes teriam uma maior importância e daí a maior número de casos sinalizados? Ou pelo contrário, no cômputo geral, há mais rapazes abandonados e por isso maior número de sinalizados? Não nos parece que o abandono coloque questões de género, até porque nascem mais rapazes do que raparigas (105 rapazes para 100 raparigas). Abandona-se porque as “circunstâncias”, fossem de razão económica, social, doença, morte ou qualquer outra não permitiam criar a criança, independentemente do seu género.

E não se pense que todas as crianças entradas na SCML não tinham referências familiares conhecidas. Para além das que nasciam na Enfermaria de Sta Bárbara e que eram remetidas para a SCML, e dessas conhecer-se-ia pelo menos a mãe, outras há em que ambos os progenitores são nomeados mas apesar disso eram integradas na categoria de crianças filhas de pais incógnitos. Em 1832 entrou na SCML um menino nessa situação que tinha nascido “(…) a 20 dezbrº de 1831 e foi Batizado em o dia 29 do mesmo mes pos=se Por nome João Manoel Rodrigues padrinhos forão hum tio do mesmo menino por

244

Certidões do padre e da Câmara de Setúbal. Mandada para a SCML porque, segundo as autoridades locais, não havia amas de leite naquela vila e, segundo a SCML, “Entrou morta”. Ver Sinal nº 1586 de 1801. Aliás há uma nuance na terminologia: “Entrou morta” e “Entregou morta”. No primeiro caso significa que a criança quando entrou na SCML já vinha morta. No segundo, que a criança morreu em casa da ama e que esta a devolveu à SCML nessa condição.

245 Ver Sinal nº 846 de 1805.

246 Ver Sinal nº 304 de 1838. Este bilhete tem um coração recortado no centro, o que corta as frases do texto

mas não impedindo a sua leitura e o sentido do mesmo.

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Há livros de registo de entrada e baptismo específicos para crianças pretas e pardas desde 1780 até 1834. A partir desta data, o registo de entrada e de baptismo dessas crianças deixa de ter livro específico e passa a ser feito no mesmo livro das outras crianças. A razão dessa inicial separação dos registos prende-se com a necessidade, segundo a SCML, de controlar as saídas dessas crianças que eram muitas vezes procuradas para serem vendidas como escravas apesar de serem filhas de homens livres ou pelo facto de serem expostas se terem tornado, juridicamente, livres.

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nome João Manoel Rez Madrinha Nossa Senhora, e a Mai hé Maria Emilia da Conceição Filho eColito, mas o paii hé Joze Fran.co Rodrigues (…)”248

.