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3 O que dizem os sinais das crianças expostas na SCML

1.8 As doenças e as deformidades

Para além de todas as razões já enunciadas que poderão justificar o abandono (pobreza, ilegitimidade..) detecta-se um outro motivo: doenças e deficiências que impediriam uma vida normal, ainda para mais se se era pobre e sem meios para tratar da criança, isto sem falar nos escassos meios de cura que a medicina a todos na altura oferecia. Na maior parte dos casos só é possível verificar esta hipótese pelo cruzamento do conteúdo do bilhete com as informações laterais escritas no assento de batismo e entrada da criança. Uma coisa é entrar na SCML com um, dois dias de vida e doente. Certamente nestes casos, o abandono seria a decisão já tomada independente de a criança nascer doente ou não. Outra coisa é entrar na SCML com meses, anos de vida e doente. Nestes casos foi a doença o factor fundamental que ditou o futuro da criança.

Atente-se nestes casos: “Heçe Menino xameçe Lauteiro Joze dos Stos Naçeo a 20 De febreiro batizose a 20 de março”603

. Quando entra na instituição (5 de abril de 1824) tem 45 dias. Segundo o seu assento tem sarna. O bilhete nada dizia sobre o assunto. Embora a sarna, cujo nome médico é escabiose, não seja uma doença grave pode originar 599 Ver Sinal nº 239 de 1832. 600 Ver Sinal nº 2061 de 1863. 601 Ver Sinal nº 1158 de 1833. 602 Ver Sinal nº 944 de 1837. 603 Ver Sinal nº 449 de 1824.

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um quadro repugnante e é altamente contagiosa. Trata-se de uma infestação cutânea provocada por um ácaro que escava galerias na pele humana onde põe ovos. À época o seu tratamento seria difícil tendo em conta a falta de higiene, a ausência de meios terapeuticos e o desconhecimento do modo de propagação da doença.

Por vezes é o próprio bilhete que claramente presta essa informação: “A sinco de Maio de Mil Sete Sentos i noventa i tres Remeto para o Santo espital dos expostos filho de Carlos Lopes da Sª e sua molher Picidonia Maria de Bom Soçeso Por cauza de huma grande molestia em q se axa este menino por nome Gironimo i por çer a dita molestia porlongada i grave de ser munto a sua poberza i não ter com q se cura nem com q poder mandar criar o dito seu filho rezam porq.e rogam aesta Santa Caza Para lho fazer ficando elles obrigados a procurar o dito seu filho atodo tempo q milhorarem da fertuna (…)”604

. Jerónimo tinha “huma grande molestia” e “a dita molestia porlongada i grave de ser munto a sua poberza i não ter com q se cura nem com q poder mandar criar”605, eis as razões porque é enviado para a SCML. Embora não saibamos a idade de Jerónimo, dada a doença prolongada de que era portador, não custa a acreditar que já não fosse um recém-nascido quando deu entrada na SCML.

Ainda num outro caso a criança tem ano e meio quando é abandonada e está doente com bexigas: “Em hoje doze de Dezembro de mil setecentos noventa e dois se entrega nesta Roda hu menino q se bautizou com o nome de Martiniano e vai com o mal de bexigas e (…)”606

. Aliás as bexigas são referenciadas muitas vezes entre as doenças de que as crianças padeciam. Neste outro caso, a criança já tem três anos: “emtrego a canta caza da miziricordia Antonio Francisco di almeda com 3 annos idade Fes a vinte 3 di feverero cinais q leva he cabelo acastanhado holhos azuis (…) picado di bixigas (…) ricumende a Caza q tratem este minino com caridade poço tempo gozara da caza”607

. Esta criança, para a qual se prometia uma estadia breve (“poço tempo gozara da caza”), não teve essa sorte. É evidente que aqui a palavra gozar que hoje tem um sentido positivo, de desfrutar, de fruir, de tirar partido de, neste caso tem um sentido mais estreito: usar, utilizar os serviços.

A entrega de crianças doentes é muito clara nos bilhetes, assim como a consciência das dificuldades em ultrapassar essa condição: “No dia dezanove de feverero naseu heste menino pornome hade ter Joaquim na pia seade xamar se Curer a fervura assim seade porcurar (…)”608

. Só depois do filho curado, caso isso acontecesse, é que seria procurado. Os bilhetes também podem ter referências a doenças incapacitantes, más formações, bem como a doenças congénitas e outras. Em 1854 um bilhete contém uma única frase: “Está baptizada chamase Felicia, hé sega”609

. O registo informa que a criança

604 Ver Sinal nº 543 de 1793.

605 Eventualmente a doença de que a criança padece será sífilis. No Porto, Isabel dos Guimarães Sá referencia

um número considerável de casos dessa doença. Ver A circulação…, p. 56.

606

Ver Sinal nº 1329 de 1792.

607 Ver Sinal nº 815 de 1842.

608 Ver Sinal nº 243 de 1809. Fervura é, como o nome indica, uma febre que pode ter origem nos mais

diversos quadros clínicos. Como a criança nasceu em pleno inverno, os problemas relacionados com o aparelho respiratório seriam comuns e uma das maiores causas de mortalidade infantil.

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tem 11 meses e cataratas congénitas. Felicia morreu no ano seguinte na SCML, de onde aparentemente nunca chegou a sair, certamente devido à sua condição de invisual.

Por vezes, mesmo não vindo mencionadas nos bilhetes, ficou registado no respectivo assento que a criança era portadora de determinada sintomatologia. Talvez seja essa a razão para abandonar as crianças. No caso seguinte nada indica qualquer doença: “Na Sta Caza da Mizericordia entrou hum Menino depois das Ave Marias, por Nome Luiz com humas Calcinhas azuis e pintas Brancas Idade 16 mezes com Roupão da Dª cor, em 1º de Fevereiro de 1833 ese dará a q.m for boscar com igual Bilhete”610

. Luiz entrou na SCML já com uma idade “avançada”, se se tiver em conta que a maioria das crianças entrou nos primeiros dias de vida. No seu assento ficou registado que “Trás Escórfolas”611

. Entregue na esperança de ser clinicamente tratado? De tal modo a doença estava num estadio avançado que a família achou por bem enviá-lo para a SCML de modo a evitar contágios? Morreu vinte dias após a entrada.

Mas se há doenças deste tipo, outras há típicas da infância, bexigas por exemplo: “(…) vai com o mal de bexigas (…)”612

ou as marcas deixadas por essa doença serviriam de sinal distintivo: “emtrego a canta caza da miziricordia Antonio Francisco di almeda com 3 annos idade Fes a vinte 3 di feverero cinais q leva he cabelo acastanhado holhos azuis alguma cosa picado di bixigas (…)”613

.

Também há outras doenças que têm origem nas condições deficientes de saúde e de alimentação a que as crianças em geral estavam sujeitas e estas em particular. Apesar de os bilhetes nada dizerem sobre o assunto, no assento de entrada e batismo ficou registado que a criança “Vem inxada”614 ou “Tem a boca doente”615.

Fogagens, que hoje entenderíamos como reações alérgicas provocadas por alimentos ou por más condições higiénicas, eram bastantes comuns: “(…) Leva huma Fogagem pello corpo mas he de mamar o leite de Malina (…)”616. Num outro caso o bilhete pedia que não reparassem “(…) nas feridas q leva na barriga porq são procedidas de calor e não he outra molestia (…)”617

. Por vezes a febre devido a causas não especificadas também é referenciada nos bilhetes.

Por vezes sabemos do estado de saúde da criança por indicações laterais no momento do assento feito pelo secretário. “Doente” ou “muito doente” não é raro ter sido registado. Nestes casos nunca saberemos qual o tipo de doença, mas é curioso notar que nada no bilhete assim o indicava: ou a doença da criança foi uma consequência das

610

Ver Sinal nº 178 de 1833.

611 Escórfolas são escrófulas, ingurgitamento dos gânglios linfáticos do pescoço, muitas vezes de origem

tuberculosa mas não só, que pode ser seguido de ulceração.

612 Ver Sinal nº 1329 de 1792. As bexigas são o nome popular da varíola, doença viral que provocava

erupções cutâneas que poderiam deixar marcas permanentes ao nível da pele.

613 Ver Sinal nº 815 de 1842.

614 Ver assento de entrada e de batismo nº 466 de 1833. 615 Ver assento de entrada e de batismo nº 1280 de 1822. 616

Ver Sinal nº 233 de 1801.

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condições de transporte, ou quem abandonava não considerou ser oportuno dar essa indicação.

De qualquer modo, más formações físicas congénitas ou provocadas são as mais referenciadas, certamente por serem permanentes e poderem funcionar como um sinal distintivo das crianças. Neste campo, os olhos, a pele e sobretudo a má formação ou problemas nos membros superiores ou inferiores são as indicações mais usuais.

As doenças dos olhos nas suas múltiplas variantes são comuns. De algumas ignoramos a patologia porque a indicação é genérica e vaga: “(…) não esta Batisada por estar doente dos holhos (…)”618

; mas as mais comuns seriam as más formações na retina, as névoas ou “velida” que impediriam o normal desenvolvimento da visão: “(…) Leva de sinal huma Berruga ao pe de huma orelha e huma velida no olho esquerdo (…)”619

ou um claro “O menino Leva os olhos doentes com huas nevoas (…)”620

. As névoas são opacidades da córnea, uma espécie de véu (“velida”) impedindo uma visão clara.

Aos dias de hoje é surpreendente o número de crianças com más formações, por exemplo: coxos, pés e mãos aleijados: “(…) tem da sinal hum pe coxo (…)621, ou “(…) tem os Pés a leigádos”622, ou ainda “(…) aleijado do dedo polegar da mão esquerda (…)”623

.

Não é unicamente ao nível dos olhos e da locomoção que são referenciadas diferenças. Orelhas cortadas “(…) vai remetido a santa Caza sem ser Batizado demarcado na orelha esquerda imposto de alhos vedros”624, orelhas de tamanhos diferentes “(…) a Menina tem huma orelha mais piquena do que outra (…)”625

, orelhas furadas são dos sinais mais frequentese e alterações ao nível da boca: “(…) tem hum grande defeito no beiço superior (…)”626. Na boca há uma outra patologia comum: “sapos” ou “sapinhos” que não passam de papilas gustativas inflamadas por razões várias, desde a má higiene ao tipo de alimentos que podem provocar a inflamação.

Sinais e verrugas são recorrentes. Sinais pretos e “pardos” nas orelhas, nas faces, nos testículos e noutras partes do corpo são dados como sinais identificadores. Entre sinais e verrugas há diferenças que são registadas nos bilhetes de forma muito clara. Enquanto os sinais dérmicos são concentrações anormais de pigmentos melânicos: “(…) tem hum sinal na nagida do asento e o dito sinal He escuro (…)”627

, as verrugas são saliências dérmicas:

618 Ver Sinal nº 1796 de 1838. 619 Ver Sinal nº 133 de 1818. 620 Ver Sinal nº 615 de 1819. 621 Ver Sinal nº 589 de 1841. 622 Ver Sinal nº 1654 de 1858 623 Ver Sinal nº 2062 de 1860. 624 Ver Sinal nº 2058 de 1845. 625 Ver Sinal nº 963 de 1792. 626 Ver Sinal nº 522 de 1848. 627 Ver Sinal nº 1083 de 1833.

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“(…) Junto a orelha direita para a parte do rosto, deu-lhe a naturesa um Signal: he um marmillo de carne, que parece verruga (…)”628.

A prematuridade das crianças também é referenciada: “(…) não hé de tempo hé de 5 – a 6 – mezes (…)”629 ou ainda um mais poético “Este minino nasceo aos 19 de Janeiro de 1808 as 4 horas da manhã, e por não ter as 9 luas foi Baptizado em Caza (…)”630

. É de notar que esta referência ao número de luas para estabelecer o tempo de gravidez era comum, principalmente entre as mulheres do campo, prática que chegou até tempos próximos da actualidade.

Existia nas comunidades rurais uma série de rituais, supostamente curativos quando a criança apresentava uma hérnia, à época e ainda hoje em meios rurais com o nome de quebraduras. Em alguns casos só é referenciado o problema: “(…) dando os sinais de q he cobrado (…)”631

, noutros enuncia-se o problema e simultaneamente apresenta-se o que à época era o método utilizado para o minorar: “(…) Este menino está quebrado, vai com elle um chumacinho ja feito, e fará favor de o mandar ligar (…)”632. O “chumacinho” seria uma tira, uma ligadura almofadada que, apertado à volta da cintura da criança, tentaria meter a hérnia dentro do corpo, remediando a situação e minorando o desconforto. Estas hérnias, supostamente derivadas de uma má cicratização do umbigo e por falta de cuidados pós nascimento, seriam muito comuns. Aliás, a pressa com que muitas vezes as crianças eram entregues impediria trabalhos e cuidados mais minuciosos que acautelassem a saúde da criança.

As preocupações com a cicatrização do umbigo são frequentes. Tiras, cintos e paninhos eram usados para proteger a criança e obviar a problemas futuros. Em 1822 um bilhete informa que entre o enxoval enviado, por acaso um dos raros enxovais abundantes e diversificados, iam “(…varias tiras e paninhos para corativo do embigo (…)”633

.

De qualquer modo, percebe-se claramente as consequências que estas patologias teriam nas crianças, quer nas que entravam, quer nas que já estavam na SCML. As mortes por “contágio”, como referem as notas à margem dos registos de entrada, são muito frequentes. 628 Ver Sinal nº 736 de 1839. 629 Ver Sinal nº 159 de 1825. 630 Ver Sinal nº 158 de 1808. 631 Ver Sinal nº 1484 de 1808. 632

Ver Sinal nº 1255 de1866.

633 Ver Sinal nº 1267 de 1822. O enxoval desta criança era composto por “Camizas seis sendo – trez lizas e

huma ten folho, de casa lisa hotra folho de casa tecida e hotra tem renda – Vestidos, hum de chita branca e cor de roza com folho branco, hotro de chita cor de ganga, com raminhos, todos de chita Saiotas – dois de fostão e hum, e chita azul e branco, dez fraldinhas, seis volbudoiros, huma toquinha de paninho, com huma renda, duas ditas de casa bordadas, huma com renda estreita hotra com renda larga, huma de casa, tecida com folhos do mesmo – e fitas de seda cor de palha, e hotra tem fitas azues claras, varias tiras e paninhos para corativo do embigo, hum par de ropinhas – cor de roza, coeiros amarellos dois – ditos escarlates dois brancos dos tres huma fita branca, de setim mais huma toca de casa, de nozinhos, com renda larga, hotra de casa tesida e renda estreita (…) Leva hum xale por fora em q vai embrolhado – tecido de azul e emcarnado (…)”.

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1.8.1 As mutilações

Contudo há sinais físicos dos quais desconhecemos se houve intencionalidade ou se foram causados por motivos fortuitos ou acidentais “(…) E o dito menino tem 6 dedos em cada pé e na mão esquerda teve hum q foi cortado (…)”634

. Em algumas regiões de Espanha e Itália, as crianças expostas eram marcadas com um ferro em brasa pela instituição que as recebia, uma marca inqualificável porque tornava a condição de abandonado uma marca para toda uma vida. Em Portugal não há registo de se praticar acção tão desumana e animalesca635.

No caso citado, pode colocar-se a hipótese de se tratar de um acidente. Mas temos dúvidas. Em 1793 um bilhete dizia o seguinte: “(…) pretende tirar-se epagar a Sta Caza toda a despeza; e pª que senão troque Leva os signais seg.tes. hum bocadinho de huma orella cortada nap.te superior da orella esquerda para seconhecer pela sicatriz (…)”636

. O corte foi feito de forma intencional: cortar a orelha de forma a criar uma cicatriz permanente que assegurasse que aquela criança nunca seria trocada por uma outra. Aliás esta criança era portadora de outros sinais (uma fita e uma medalha). Tudo em vão. Morreu no mês seguinte à entrada.

Apesar de raras, há notícia de crianças mutiladas, umas já de nascença: “(…) sinais não tenho que lhe por, pois otem denasença (…) não tem mão dereita (…)”637

. Desconhecemos o que teria originado que uma criança entrada em 1839 tivesse “(…) huma Sicatriz Ee cada Oolho”638

.

No entanto, estamos em crer que este tipo de sinalização (a mutilação física) era raríssima e não seria uma prática habitual, feita por quem abandonava e nunca por quem recebia. Sinal de avanço civilizacional e de suavização dos tempos, não voltámos a encontrar qualquer referência a esta prática cruel nos restantes anos sondados.