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6. O percurso dos expostos dentro da SCML

6.2 O controlo da SCML

A SCML procurou controlar o percurso das crianças que lhe eram entregues de modo a evitar fraudes e pagamentos indevidos às amas, assim como pôr em prática um dos princípios das misericórdias: proteger os mais fracos e desprotegidos. O uso de uma pulseira pelas crianças e a vigilância sobre as amas, são alguns dos meios utilizados pela SCML para melhorar este serviço.

Há contudo um outro aspecto que se manifesta mais tarde, na década de 60 do século XIX: o controlo sobre a roupa e outros objectos que os bilhetes mencionavam como objectos que acompanhavam as crianças no momento de entrada. Este maior zelo e controlo pode ser fruto de um maior rigor por parte de quem fazia o assento de entrada e batismo da criança. Mas estamos em crer que não será fruto do acaso. A mudança sistemática do nome pedido por um outro da escolha da SCML, a minuciosidade na verificação do enxoval, a necessidade de registar essas alterações, parece criar um quadro de maior cuidado, rigor e controlo por parte da instituição no que dizia respeito a esse serviço. Em 1864, entrou uma menina para quem se pedia “(…) por favor que esta menina se chame Julia Augusta leva por sinal um Chambre de chita de riscas brancas i rochas um coeiro de beitilha novo e uma camiza velha uma fralda velha um babedoiro novo recortado e uma tira de unbigo recortada um lenço na cabeça novo esta menina Naçeu no dia 31 de março de Anno de 1864 entra para a Santa Caza no dia primeiro da Abril Lisboa NB lenço velho e não novo como diz”220.

Julia Augusta foi batizada com o nome de Umbelina e o lenço novo, ou nunca existiu ou desapareceu no trajecto até à Santa Casa. A última frase, NB lenço velho e não novo como diz é acrescentado no bilhete por quem fez o assento de registo da criança e revela quanto cuidado era colocado nos registos de modo a prevenir qualquer troca ou para salvaguardar a idoneidade da instituição porque um simples lenço que se dizia novo, afinal era velho.

E se os lenços eram peças vulgares, de três ou quatro pontas (neste caso tratar-se- iam de peças de pano quadradas dobradas num triângulo), o mesmo não se pode dizer das meias: “(…) Leva Coufa de letras Preto camiza de Paninho com renda nas mangas calças de Beitenha - Bibe de caca Branco com pintenhas rochas meias de lan Brança com riscas de roda emcarnada cordão e borlas para atar Abril 21 1863 As meias que diz não as tras”221.

Mas não são só as peças de vestuário que são mencionadas como não existentes ao contrário do que dizem os bilhetes: “Deu emtrada na Santa Caza da Mizericordia d’esta Cidade de Lisboa no dia trinta e um de Março de mil oito centos e sessenta e cinco, um menino que nasceo no mesmo dia, pedem que o nome seja Manoel Joze dos Santos; leva de vistuario o seguinte: Dois coeiros de beitilha uzados, fralda de Linho, Volvedoiro de pano abretanhado, Xambre de Xita amarelo branco e cor castanha, lenço de caa branco,

220

Ver Sinal nº 744 de 1864.

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dito de caça de lãm de cores, no pescoso um piqueno coração de Coralina. NB não veio o coração de coralina como diz o escripto”222.

Este tipo de reparo justificava-se porque poderia colocar em causa o bom nome da instituição caso a criança fosse procurada e a SCML não devolvesse a criança com os objectos que tinha trazido, mesmo que estes não fossem de metais preciosos ou semi- preciosos. Se faltasse uma peça que vinha mencionada no bilhete, esta falta também era registada: “Esta menina nasceu pelas 12 ½ horas da noute de 22 de Junho de 1864 Leva Um chale de cazimira de escarlate e verde Um lenço branco com a marca de um nome “Jezufina” Um Barretinho por cima do lenço Pede-se por caridade, se lhe ponha o nome de Isabel (…) NB não trás o Xaile q menciona”223. O mesmo acontecia com o registo das diferenças das cores e das horas. No primeiro caso registou-se que “(…) NB a fita he azul e não verde (…)”224

.

Quanto à precisão no assento das horas, registe-se o preciosismo de assinalar diferenças de uma ou hora e meia para mais ou para menos em relação ao texto do bilhete: “Esta Menina he posta na Santa Caza da Mezericordia no Sabado onze de Outubro d 1862. As onze horas da manhãa, e nas=çeo hontes Seista feira as 5 horas da tarde Seus infelizes Paes pedem se lhe ponha o nome de Maria, que não foi baptizada. = leva camiza branca hum pano de baetilha branco e Mandrião de chita. E hum lenço Entrou ás 12 horas da manha, e não ás 11 como diz”225. Neste caso a criança entrou uma hora mais tarde ao enunciado no bilhete. Neste outro entrou hora e meia mais cedo: “Vai entrar na Santa Casa da Misiricordia, a recém-nascida no dia 23 ás 10 horas da noite, filho legitimo de Thomé dos Santos da Cruz, e de Maria da Dores, naturaes Lisbôa, os quaes fazem este para em todo o tempo poderem, hir buscar Seu filho á mesma Santa Casa da Misericordia, O Pae e Mae do nascido, lhe põe o nome de José quando Receber O Sacramento do Baptismo para por este Nome o cunhecerem (…) NB entrou as 8 emeia e não as 10”226.

Não há dúvidas que a SCML tomou algumas medidas para confirmar a veracidade das informações que os bilhetes que as crianças traziam. Em 1858 o sinal de uma criança é composto por duas folhas, tipo A4: uma, o sinal original que tem cozido uma fita larga de seda de várias cores recortada em diagonal numa das pontas e em redondo na outra; a outra folha corresponde a uma resposta solicitada ao padre da Igreja de N. Senhora da Conceição de Lisboa. O que dizia o sinal que a criança trazia? “(…) Emtrou na Sta Caza da Mizericordia a 13 de Septembro hum Menino q nasceo no Dto dia à huma hora da noute foi Baptizado às 8 horas da manha na Freguezia da Conceição Nova com o nome de Adolfo Henrique Baptista ffoi padrinho o Ill.mo Snr Françisco da S.de Salema e Madrinha a Ill.ma Snrª D. Henriqueta Balbina de Souza Leva pª Sinal huma fita larga de mtas cores”227

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222

Ver Sinal nº 730 de 1865. Ver Apêndice, Estampa 19.

223 Ver Sinal nº 1370 de 1864. 224 Ver Sinal nº 446 de 1865. 225 Ver Sinal nº 2192 de 1862. 226 Ver Sinal nº 1581 de 1864. 227 Ver Sinal nº 1725 de 1858.

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Perante este bilhete, a SCML solicitou ao padre da dita paróquia que confirmasse as informações nele contidas. Eis o teor da resposta:

“Ill.mo e Ex.mo Snr Derector Do Hospital dos Expostos. Ill.mo e Ex.mo Snr

Em cumprimento ao Officio (…) tenho a honra de dizer a VExª que é verdade, qu’a Parteira Maria Luisa da Conceição veio no dia 13 do corr.e Septembro pelas 8 horas da Manha a esta Egreja com uma creança para eu baptizar, e que me disse ser filho de pais incógnitos. Baptizei-a immediatamente por filha de Pais incógnitos, por-se-lhe o nome d’Adolfo Henrique Baptista, e foi Padrinho Franc.o de Saude Salema, menor de 5 annos, morador em Thomar, e actualmente residente n’esta Freguezia, digo, na de S. Julião, e Madrinha D. Henriqueta Balbina de Sousa, solteira, moradora na ditta Freguesia de S. Julião, com casa d’Hospedaria. É o que tenho a honra d’informar VExª.

Deos guarde a VExª

Parochial Igreja de N. Senhora da Conceição de Lisboa 15 de Septembro de 1858 % Pe Francisco Marques Pereira”.

Apesar destas pesquisas, Adolfo Henrique Baptista teve o mesmo percurso que outros milhares de crianças. Morreu em casa da ama que dele tratava em 11 de dezembro desse mesmo ano. O que levou a SCML a tomar esta medida? Certamente a proximidade dos intervenientes e a sua identificação clara. Mas para além de o teor do bilhete ser confirmado, o padre nada acrescenta de substancial que possa levar a SCML a devolver a criança à família. Mas estas duas folhas revelam a outra face de um sinal.

O padrinho tratado no sinal por Ill.mo Snr Françisco da S.de Salema tem 5 anos (o que não deixa de ser estranho, dada a sua menoridade), é uma criança e a madrinha a Ill.ma Snrª D. Henriqueta Balbina de Souza, é D. Henriqueta Balbina de Sousa, solteira, estalajadeira. Teria a criança alguma relação familiar com a estalajadeira? Saberia o padre destas ligações? A criança nasceu à uma hora da noite, é batizada 7 horas depois. É difícil aceitar que o padre nada soubesse sobre o assunto.

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