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A separação entre o público e o privado e a esfera pública

3.3 As modernidades múltiplas

3.3.1 A separação entre o público e o privado e a esfera pública

Começo falando do conceito de esfera pública para, depois, falar sobre a separação entre o público e o privado, que é inerente à modernidade. É interessante levar em conta que,

como Marx, Habermas vê um potencial emancipatório não realizado dentro da vida social como ela é. Ao contrário de Marx, ele localiza esse potencial nas formas de comunicação – na linguagem. [...] Nos seus primeiros trabalhos ele localiza o potencial nas formas históricas específicas da comunicação dentro da ‘esfera pública’ burguesa26 (os espaços sociais nos quais cidadãos deliberam em matérias de temas sociais e políticos), nos seus últimos trabalhos ele localiza isso nas propriedades da comunicação em si – as propriedades da ‘pragmática universal’ daquela forma de comunicação que é orientada para atingir o entendimento (‘ação comunicativa’) (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 84).

De fato, a priori Habermas trabalha com conceitos advindos fortemente da Escola de Frankfurt, depois dá uma guinada a partir da sua Teoria da Ação Comunicativa. Abordarei em linhas gerais o conceito de esfera pública e esfera privada dentro da obra de Habermas e tecerei críticas a ela, sem maiores aprofundamentos na genealogia do pensamento de Habermas e sem fazer uma exploração arqueológica muito profunda das críticas, mas trazendo à baila o essencial para a discussão deste trabalho.

Em linhas gerais, a esfera pública é “o domínio da vida social no qual pessoas atuam como cidadãs” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 221). Se há uma esfera pública, há uma esfera privada, que, entretanto, não necessariamente lhe é oposta e complementar.

Habermas discute a existência de uma multiplicidade de esferas públicas, em que os sujeitos estão permanentemente reestruturando suas relações e não apenas de uma esfera única totalizante. Há um grau de complexidade na sociedade que nos impede de vê-la de forma total. O fim do ideal da esfera pública única e singular faz com que passemos a observar a existência de arenas sobrepostas e conectadas, supranacionais, nacionais, regionais e locais (OLIVEIRA; FERNANDES, 2011, p. 127).

Aplicando aqui a noção de modernidades múltiplas, entendo que uma diferenciação entre a esfera pública e a privada pode ser parte de um determinado modelo de modernização, essa diferenciação não é, porém, aplicável a todos os casos e de todos os modos, como prevê a perspectiva das modernidades múltiplas. Sobre essa dicotomia público e privado, ainda é

26 A referência a “burguês” aqui vem do alemão “Bürgerlich”, que tanto pode significar habitante da cidade ou alguém

pertencente à classe média (HABERMAS, 1991, p. xv). É, também, um dos pontos de crítica ao trabalho do alemão, por ele considerar apenas a esfera pública como espaço burguês (LOSEKAN, 2009).

importante frisar que

distinções entre público e privado têm tido um papel central, especialmente na teoria liberal – “o privado” sendo usado para referir-se a uma esfera ou esferas da vida social nas quais a intrusão ou interferência em relação à liberdade requer justificativa especial, e “o público” para referir-se a uma esfera ou esferas vistas como geralmente ou justificadamente mais acessíveis (OKIN, 2008, p. 306).

Okin, autora da tradição dos estudos de gênero, segue numa defesa de que “os domínios da vida doméstica (pessoal) e da vida não-doméstica (pública) não podem ser interpretados isoladamente” (OKIN, 2008, p. 305). É muito mais aplicável à realidade brasileira um paradigma de nebulosidade entre o que é público e o que é privado do que um de distanciamento entre uma concepção ou outra, como a priori é entendido como proposta na obra de Habermas. Um exemplo claro disso foi a votação que julgou a admissibilidade do processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, do dia 17 de abril de 2016 (SIQUEIRA, 2016), onde os deputados justificaram os votos por motivos da esfera privada, mais que da esfera pública, a exemplo do que já ocorrera na instauração do impeachment do Presidente Collor, em 1992. Eu evoco as definições de Habermas sobre a separação entre o público e o privado, mas, como apresento na crítica de Okin (2008), há limites para aplicação de separação exata de uma esfera e de outra na realidade brasileira.

Seja como for, essa separação influi diretamente sobre a secularização e a laicidade, uma vez que a secularização e a laicidade são, em tese, a relegação da religião à esfera privada (mais à frente faço uma melhor descrição e explicação desse processo), deixando a esfera pública longe de definições religiosas, que passam a ser vistas como pessoais. Um caminho para entender como a religião se comporta na sociedade passa por

em vez de admitir como um pressuposto a privatização da prática religiosa — seu confinamento à esfera familiar —, trata-se de identificar as configurações específicas que as formas religiosas assumem em cada sociedade em função de seus modos particulares de produzir historicamente a diferenciação dessas esferas e articulá-las (MONTERO, 2006, p. 49).

Noutras palavras, e seguindo e voltando nas críticas sobre os autores da modernidade mais eurocentrada, embora uma leitura clássica possa apontar que se não houver uma separação entre o público e o privado firme, uma sociedade não é moderna, ou seja, o grau de modernidade de uma sociedade pode ser medido pelo modo da separação entre o público e o privado que ela manifesta.

qualificar nenhum desses cenários como mais ou menos representativo da modernidade”, mas apenas como diferenciações entre as sociedades. Diante disso, é assumindo para as modernidades múltiplas a possibilidade de diversas configurações da dicotomia público/privado, considerando essa nebulosidade que, como demonstrei parágrafos atrás, é essencial levar em conta para compreender a realidade do Brasil. Tavolaro coloca o escopo de Bryan Turner para frisar essa ampla possibilidade de entender as relações e os papéis do público e do privado:

No tocante aos variados padrões de separação entre o público e o privado, baseio- me no estudo de Bryan Turner (1990) em relação às diferentes definições e papéis dos dois domínios na dinâmica social moderna: a) o privado como âmbito de ação de indivíduos movidos pela busca de interesses subjetivamente definidos; b) o privado como domínio de códigos familiares de sociabilidade; c) o público entendido como resultante da vontade geral; e d) o público como esfera de sociabilidade controlada e definida pelo Estado (TAVOLARO, 2005, p. 13–14).