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Chamo o fundamentalismo religioso de elemento transversal, porque, na conjuntura do objeto analisado, ele está presente na nebulosidade da separação entre o privado e o público: a forma como essa nebulosidade acontece, a forma de secularização que existe no Brasil, que permite que esse tipo de manifestação religiosa aconteça, permite também que uma postura fundamentalista possa ser tomada. Desse modo, para o paradigma interpretativo dos discursos, é importante definir o que é fundamentalismo religioso, que é de fato um dos pontos-chave de minha pesquisa, que está amplamente presente nos objetivos. Entendo que fundamentalismo

não é uma doutrina. Mas uma forma de interpretar e viver a doutrina. É assumir a letra das doutrinas e normas sem cuidar de seu espírito e de sua inserção no processo sempre cambiante da história, que obriga a contínuas interpretações e atualizações, exatamente para manter sua verdade essencial. Fundamentalismo representa a atitude daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista (BOFF, 2002).

Habermas aponta que a racionalização é fundamental para o avanço da modernidade (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999) e Harvey, por sua vez, diz que o projeto da modernidade despertaria formas de “organização social e formas de pensamento racionais, [prometendo] a liberação da irracionalidade do mito, da religião, da supertição e o fim do uso arbitrário do poder, assim como do lado escuro de nossa própria natureza humana” (HARVEY, 1990, p. 27–28). Esse processo, como já apontei antes, apresentando as modernidades múltiplas, não se deu exatamente como previram os teóricos da modernidade, uma vez que temos, em plena modernidade tardia, manifestações de visões religiosas fundamentalistas, mesmo nos países ditos centrais da modernidade28, num processo de desprivatização da religião, nos dizeres de Casanova (1994, 2001). Ele assume que esse processo é a saída da religião da esfera privada e a ida dela à esfera pública, um processo inverso ao que a modernidade apontaria com a secularização.

A mobilização do fundamentalismo protestante e, até certo ponto, a mobilização católica contra o aborto, podem ser vistos como exemplos dessa primeira forma de desprivatização. Mesmo nos casos em que a mobilização religiosa pode ser explicada simplesmente como uma resposta tradicionalista à reação aos processos modernos da universalização, que são promovidos ou protegidos pelas intervenções jurídicas do Estado e que rompe, por exemplo, com a família patriarcal tradicional ou estabelece padrões de discriminação racial ou de gênero (CASANOVA, 2001, p. 1048).

Apesar das reservas já postas sobre sua noção de modernidade, Habermas traz reflexões valorosas sobre os ditos efeitos patológicos da modernidade.

As patologias da modernidade se devem, em última instância, aos dois processos de transformação de conotação negativa discriminados por Habermas: a dissociação e a racionalização. A dissociação implicou na “Entkoppelung” (desengate) do “mundo vivido” do “sistema”, já quase irreversível em nossos tempos. A racionalização não somente contaminou os dois subsistemas (economia e Estado) mas já se expandiu a certas instituições do mundo vivido. Isso leva Habermas a falar na “Kolonisierung” (colonização) do “mundo vivido” pelo sistema (FREITAG, 1995, p. 145).

Percebe-se que há um “enfraquecimento da esfera pública – dos espaços e práticas onde

28 Numa pesquisa feita nos Estados Unidos, “dois terços dos pesquisados falaram que o criacionismo, a ideia que Deus

criou os humanos na sua presente forma nos últimos 10 mil anos, é definitivamente ou provavelmente verdadeira. Mais da metade, 53%, disseram que a evolução, a ideia que humanos evoluíram desde formas menos avançadas de vida, é definitivamente ou provavelmente verdadeira. Entre todos, 25% afirmaram que tanto o criacionismo quanto o evolucionismo são definitivamente ou provavelmente verdadeiros” (LAWRENCE, 2007).

pessoas enquanto cidadãs deliberam juntas em questões de interesses sociais e políticos, provendo um canal da vida cotidiana29 ao sistema político” (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 86), e aqui há o problema grave quanto ao fundamentalismo religioso estar dentro da política, porque nós, vivendo a dissociação, em que o sistema político está influindo na sociedade, que apaticamente não reage, cada vez apresentamos menos agência nos sistemas a que nos submetemos. O problema é porque o fundamentalismo, se instaurado na política, promove uma dessecularização maior da sociedade, devido à reorganização da estrutura das relações de poder, o que pode levar a situações de cada vez menor democracia, sobretudo para alguns grupos como mulheres e LGBT, como já apresentado e discutido em Vital da Cunha e Lopes (2012).

Falando um pouco sobre o papel da sexualidade dentro das visões fundamentalistas às quais me refiro, cito o Pastor Nehemias Marien:

a Igreja tem a genitália no cérebro. Então, seus parâmetros, seus estatutos, seus dogmas, seus catecismos vêm todos encharcados com essa ideia básica da sexualidade. Para aqueles que pensam assim, a Bíblia é, portanto, o mais antigo e completo manual de sexualidade (GIUMBELLI, 2005, p. 78),

de tal modo que se um intérprete da Bíblia busca a justificativa para cada um dos comportamentos sexuais, “se o biblicista desejar abordar qualquer vertente da sexualidade, usa a Bíblia como manual e terá a fundamentação científica, teológica, eclesiástica e bastante humana. A Bíblia é um livro completo” (GIUMBELLI, 2005, p. 78), com as mais diversas possibilidades, até mesmo de tom antagônico: o mesmo livro sagrado pode servir para interpretar que ele condena a homossexualidade – “então, não sabeis que os injustos não herdarão o Reino de Deus? Não vos enganeis a este respeito! Nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os pederastas” (1Co 6, 9) – e para entender que toda forma de amar vale a pena, sem exceções – “Deus é amor: quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus permanece nele” (1Jo 4, 16). Desde o primeiro capítulo, citei uma série de religiosos que, no livro organizado por Emerson Giumbelli (2005), se colocavam como mais ou menos abertos à ideia da homossexualidade.

A ideia que está exposta aqui coaduna com a de que a sexualidade serve apenas para reprodução, cuidadosamente encerrada nos espaços específicos. De fato, desde a era vitoriana e até

29 Vida cotidiana como tradução mais próxima que achei para “lifeworld”, que significa especificamente, em termos

filosóficos, segundo o Oxford: “todas as experiências, atividade e contatos imediatos que fazem o mundo da vida de um indivíduo ou da coletividade” (OXFORD, 2015).

os nossos dias, a sexualidade

muda-se para dentro de casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo. No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa s discursos. E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira anormal: receberá este status e deverá pagas as sanções. O que não é regulado para a geração ou por ela transfigurado não possui eira, nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo tempo expulso, negado e reduzido ao silêncio (FOUCAULT, 1988, p. 11–12),

se transforma no que Oscar Wilde, ao ser condenado a dois anos de trabalho forçado devido ao então crime de sodomia, chama de “o amor que não ousa dizer seu nome”, acrescentando que

o amor que não ousa dizer seu nome é o grande afeto de um homem mais velho por um jovem como aconteceu entre David e Jônatas, e aquele de que Platão fez a base de toda a sua filosofia, é aquele amor que se encontra nos sonetos de Michelangelo e de Shakespeare. É aquela profunda afeição que é tão pura quanto perfeita. Ele inspira e perpassa grandes obras de arte, como as de Shakespeare e Michelangelo [...] Neste nosso século, é mal-compreendido, tão mal- compreendido que é descrito como o amor que não ousa dizer seu nome, e, por causa disso, estou aqui onde estou (MUCCI, 2016)

Wilde cita, inclusive, a própria Bíblia para argumentação sobre o relacionamento de Jônatas e David: “Jônatan se apegou a David e começou a amá-lo tanto quanto a si. [...] Quanta pena sinto por ti. Jônatan, meu irmão! Eu te amava tanto! Tua amizade era para mim maravilhosa, mais bela que o amor das mulheres” (1Sm 18,1; 2Sm 1, 26). Apesar de demonstrado que pode ser usado de várias formas como manual de sexualidade, numa hermenêutica diversa, o livro sagrado dos cristãos é usado, como instrumento de conservadorismo, deixando os rastros de discurso fundamentalista nos discursos que constituem o corpus desta pesquisa, num tom às vezes agressivo, como o do então candidato à Presidência da República Levy Fidelix, na campanha eleitoral de 2014 (UOL, 2014).

Por fim desta seção sobre fundamentalismo religioso, cito Habermas (2007, p. 57) novamente, sobre a relação que os religiosos devem ter com o Estado e vice-versa, que vai dizer que “os cidadãos secularizados não podem nem contestar em princípio o potencial de verdade das visões religiosas do mundo, nem negar aos concidadãos religiosos o direito de contribuir para os

debates públicos servindo-se de uma linguagem religiosa”, ao mesmo tempo que aponta a necessidade de que os religiosos desistam da “pretensão ao monopólio de interpretação e à forma abrangente de vida” (HABERMAS, 2007, p. 57). Discussões como essas são frutuosas para a realidade do Brasil e para os debates sobre o casamento igualitário. É também com esses pressupostos, sobre o que é o fundamentalismo e a maneira como ele se insere nas práticas discursivas na modernidade tardia, que eu observarei e discutirei o meu objeto, uma vez que há uma série de sinais de discurso fundamentalista nos discursos que estou estudando.