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A sinédoque de Sieyes ou o terceiro estado como a nação francesa

TERCEIRO ESTADO?

5.4 A sinédoque de Sieyes ou o terceiro estado como a nação francesa

A proposição contida no texto de Sieyes, publicado em 1789, tem como principal objetivo atentar contra os privilégios existentes na sociedade francesa de então. Neste sentido é que sua defesa do Terceiro Estado é feita, atribuindo a ele o espírito e o destino da nação como um todo:

“Quem ousaria dizer que o Terceiro estado não tem em si tudo o que é preciso para formar uma nação completa? Ele é o homem forte e robusto que está ainda com um braço preso. Se se suprimisse as ordens privilegiadas, isso não diminuiria em nada a nação; pelo contrário, lhe acrescentaria. Assim, o que é o Terceiro estado? Tudo, mas um tudo entravado e oprimido. O que seria ele sem as ordens de privilégios? Tudo, mas um tudo livre e florescente. Nada pode funcionar sem ele, as coisas iriam infinitamente melhor sem os outros.” (p. 68)

Como se vê, Sieyes diz acima que não somente as ordens privilegiadas não são necessárias como elas são nocivas para os assuntos de interesse da nação. Se somente o Terceiro Estado não é a ordem privilegiada da sociedade francesa, e se é interesse da nação que se combatam os privilégios, isto quer dizer que o Primeiro e o Segundo Estados possuem interesses contrários aos nacionais: “A partir do instante em que um cidadão adquire privilégios contrários ao direito comum, já não faz mais parte da ordem comum. Seu novo

52Sobre a influência de Rousseau: “Sieyes mentions Rousseau on his Works by name only a handful of times

in his unpublished notes, and he refers to him only once, without actually naming him, in his published writings. Despite this disappointing pucity of direct references, and the lack of any sustained anlysis by him of Rousseau´s writings, there can be little doubt that Sieyes was thoroughly familiar with them. This is obvious not only from the style of the notes – in one of them Sieyes refer simply to ‘J-J’, in another re refers em

passant to Rousseau´s ideas on music, while in two other he cites a Latin tag taken from Rousseau´s Discours

interesse se opõe ao interesse geral” (p. 74). Ora, se quem possui privilégios já não pode fazer parte da ordem comum, isto quer dizer que primeiro e segundo estados devem ser excluídos da nação, daí Sieyes utilizar a expressão “nação depurada” (p. 72) para se referir à situação proposta por ele, em que o Terceiro Estado coincida com a própria nação. Neste sentido, as ordens privilegiadas se constituem como verdadeiros inimigos da nação:

“Nunca será demais repetir que todo privilégio se opõe ao direito comum. Portanto, todos os privilegiados, sem distinção, formam uma classe diferente e oposta ao Terceiro estado”. (p. 74).

“Os privilegiados certamente não se mostram menos inimigos da ordem comum que os ingleses dos franceses em tempos de guerra.” (p. 83) O estabelecimento das ordens privilegiadas como inimigos do Terceiro Estado e, portanto, da nação, já coloca presente o conflito político e temos de analisar como este é tratado por Sieyes nesta obra que estamos analisando.

A oposição de interesses entre o Terceiro Estado e o resto da nação apontada por Sieyes certamente se encaixa na concepção de conflito que adotamos inicialmente nesta tese. Mas vejamos onde exatamente ela se situa. Sieyes, como vimos, fala em “nação depurada” e que aqueles que possuem privilégios não devem fazer parte da ordem comum, ou seja, devem ser excluídos. Claro que em qualquer república os privilégios devem ser abolidos, mas Sieyes nem mesmo considera possível a defesa dos interesses daqueles que não fazem parte do Terceiro Estado. Na verdade, não há possibilidade de conflito entre o Terceiro e os demais Estados. O que há é o choque entre interesses privilegiados e os interesses da nação. Estes são os legítimos, os outros devem ser expurgados:

“Sieyes formulated a tenet that was to weigh heavily on the course of the Revolution. The affirmation of national sovereignty – of the unitary general will – could be accomplished only by the exclusion from the political area of all those considered enemies of the nation.” (BACZKO, 1988, 108)

when he was living in Chartres, and fro m the strong echo of Rousseau´s words that are to be found in some of the products of Sieyes´ pen.” (FORSYTH, p. 59)

Os interesses legítimos do terceiro estado não são considerados interesses parciais, mas interesses do todo.

Complementemos isso com a concepção de representação de Sieyes. 53Para ele, um deputado eleito não representa os interesses de quem o elegeu, mas o interesse da nação como um todo:

“os deputados de um distrito não são unicamente representantes do bailiado que os nomeou; foram chamados para representar, também, os cidadãos em geral, a votar por todo o reino. Faz-se necessária, pois, uma regra comum, e condições que – por mais que o desagradem certos comitentes – possam assegurar a totalidade da nação contra o capricho de alguns eleitores.” (pp. 85-86)

Com esta concepção de representação, não há espaço, na assembléia de representantes de Sieyes, para o conflito de interesses. Todos são representantes da nação. Embora os representantes de Sieyes ajam em nome da nação, as divergências entre eles tornam necessário que as decisões sejam tomadas pela maioria. Em nenhum momento é necessária a unanimidade. A batalha de Sieyes é para que não haja possibilidade de que a vontade de uma minoria prevaleça sobre a da maioria:

“Na origem encontram-se sempre vontades individuais, e elas formam seus elementos essenciais; mas consideradas separadamente, seu poder seria nulo. Só existe no conjunto. Faz falta à comunidade uma vontade comum;sem a unidade de vontade ela não chegaria a ser um todo capaz de querer e agir. Mas é certo também que este todo não tem nenhum direito que não pertença à vontade comum.” (p. 115)

“Pois uma nação nunca pode estatuir que os direitos inerentes à vontade comum, quer dizer, à maioria, passem para a minoria. A vontade comum não pode se destruir a si mesma. Não pode mudar a natureza das coisas e fazer com que a opinião da minoria seja a opinião da maioria” (pp. 125- 126)

Depreende-se, das citações acima, que a vontade comum não passa de uma soma das vontades individuais e que ela coincide com a vontade da maioria. Neste aspecto, Sieyes diverge completamente de Rousseau, para quem, como vimos, a vontade

53 Pasquino aponta as relações entre a teoria da representação de Sieyes e sua concepção de divisão do

geral é distinta da soma das vontades individuais, não podendo ser reduzida nem mesmo à unanimidade das vontades, que dirá da maioria. Sieyes não tem qualquer pretensão de que seja obtida, a partir de um terreno comum das vontades individuais, uma vontade ou interesse geral que possa ser qualificado de comum, em oposição a interesses particulares. Isto é reforçado por outras passagens, que julgamos pertinente citar aqui:

“As vontades individuais são os únicos elementos da vontade comum. Não é possível privar o número maior do direito de expressá-la, nem tampouco decretar que dez vontades só valem uma, contra outras dez que valerão por trinta.” (p. 126)

“é uma evidência que vontade comum é a opinião da maioria e não a da minoria” (p. 126)

“De fato, a maioria não se separa do todo; haveria contradição nos termos, pois, para tanto, seria preciso que ela se separasse dela mesma. Somente a minoria pode se permitir não se submeter ao voto da maioria e, por conseguinte, fazer uma cisão.” (p. 137)

Com isto, tem-se que a principal razão para que o Terceiro Estado, embora seja parte da nação, seja considerado coincidente com o seu todo não é somente a natureza de seus interesses54, mas também uma questão numérica, como vimos acima. Ele comporta a maioria da nação. Além disso, e principalmente, sua vontade coincide com a vontade nacional:

“O Terceiro estado pode considerar-se, pois, sob dois aspectos. No primeiro se vê como uma ordem. Neste caso é melhor, então, não livrar- se completamente dos preconceitos da antiga barbárie. Admite duas outras ordens no Estado, sem se lhes atribuir, entretanto, outra influência além da que pode conciliar-se com a natureza das coisas. Tem por elas todas as considerações possíveis, consentindo em duvidar de seus direitos até a decisão do juiz supremo.

Já no segundo aspecto, ele é a nação. Como tal, seus representantes formam a Assembléia Nacional: têm todos os seus poderes. Como são os únicos depositários da vontade geral, não têm necessidade de consultar seus constituintes sobre uma dissensão que não existe.” (p. 139)

Diante de tudo isto, vemos que para Sieyes o Terceiro Estado, por ser a maioria, detém interesse e vontade que coincidem com o interesse e a vontade da

nação. É com esta formulação que Sieyes defende que o Terceiro Estado deixe de ser nada, que é o que ele é, para ser tudo na nação francesa. Esta é a maneira como Sieyes resolve o problema político da existência de mais de um interesse no interior da república. Mas o autor ainda realiza, rapidamente, uma breve sistematização dos tipos de interesses existentes nos indivíduos:

“Assinalemos no coração dos homens três espécies de interesses: 1º) aquele pelo qual os cidadãos se reúnem: apresenta a medida exata do interesse comum; 2º) aquele pelo qual um indivíduo se liga somente a alguns outros: é o interesse do corpo; e, finalmente, 3º) aquele em que cada um se isola pensando unicamente em si: é o interesse pessoal”. (p. 142)

Como em todos os autores que serão estudados aqui, a preocupação de Sieyes é destinada para os interesses do segundo tipo acima, ou seja, interesses de grupos, que formam partes em relação ao todo. Estes são os mais perigosos, segundo ele, pois são os que geram os inimigos mais temíveis em relação à nação. Sieyes não chega a formular as razões para isso de forma mais detida, mas é bastante claro que é da ação de grupos que podem se constituir os privilégios, pois dificilmente um cidadão, isoladamente, conseguirá obtê- los unicamente para si.

No combate ao privilégio e na defesa de que o Terceiro Estado tenha politicamente a relevância que já tem economicamente na nação, Sieyes enuncia suas idéias a respeito de como se organizam os interesses na nação. Neste aspecto, vale ressaltar ainda que a legislação, para o abade, é justamente a enunciação dos interesses gerais e do que há de comum entre os cidadãos, estando excluídos dela quaisquer tipos de privilégios:

“A lei não concede nada; protege o que existe até o momento em que o que existe começa a prejudicar o interesse comum.” (p. 145)

“como a união social só pode ser feita por pontos comuns, somente a qualidade comum tem direito à legislação” (p. 146)

“tudo o que sai da qualidade comum do cidadão não deverá participar dos direitos políticos. A legislação de um povo só está encarregada do interesse geral.” (p. 147)

54 Sobre a natureza dos interesses do Terceiro Estado, ver PASQUINO, 1998, p. 61; FORSYTH, 1987,

Temos, então, que para Sieyes há um interesse comum nacional que coincide com o interesse da maioria, e a legislação deve expressar esse interesse comum. Nesta organização bastante simples, os interesses diversos se encontram de fora da dinâmica da vida da república, devendo aqueles que se tornarem importantes o suficiente para ameaçar a unidade nacional serem eliminados. Desta forma, o conflito entre interesses é visto em sua forma mais extrema, sendo incompatível com a vida ordinária da república. A política republicana de Sieyes é, portanto, sem interesses e sem conflito.