• Nenhum resultado encontrado

O PENSAMENTO REPUBLICANO CONTEMPORÂNEO

TERCEIRO ESTADO?

9. O PENSAMENTO REPUBLICANO CONTEMPORÂNEO

Depois de Hannah Arendt, ainda restam algumas rápidas observações sobre o pensamento republicano contemporâneo. Neste caso, estamos nos referindo a J.G.A. Pocock, a Quentin Skinner e a Philip Pettit. Na obra de Pocock, centrada bastante num esforço historiográfico, embora apresente insights teóricos de grande monta, como o que deu o ponto de partida para esta tese, temos que o conflito não foi uma categoria central em sua análise. Embora ele tenha em algumas passagens mencionado o conflito, este não foi uma categoria central em sua análise que, ao estabelecer relações com o interesse, esteve muito mais voltada para a virtude, como sabemos. Mas há uma passagem da obra de Pocock que gostaríamos de citar, por corroborar uma de nossas teses sobre Os Artigos

Federalistas:

"Interest and faction are the modes in which the decreasingly virtuous people discern and pursue their activies in politics; but in Madison´s thought two consequences soon follow. In the first place, the checks, balances and separations of powers, to be built into the federal structure, ensure as we have seen that interest does not corrupt, so that the full rhetoric of balance and stability can still be invoked in praise of an edifice no longer founded in virtue, and the very fact that it is no longer so founded can easily be masked and forgotten. In the second place, there are passages which strikingly indicate that the capacity of this structure for absorbing and reconciling conflicting interests is without known limits."(POCOCK, 2003, p. 522, negrito nosso)101.

Nesta passagem, Pocock percebe a reconciliação de conflitos operada pelos americanos, mas não a problematiza. Seu foco se encontra justamente sobre os interesses, aliás, como a maior parte da literatura que lida com o projeto fundacional americano.

Quanto a Skinner e Pettit, o foco de ambos foi muito mais sobre a questão da liberdade republicana, como algo a ser diferenciado da liberdade liberal. No caso de Pettit temos, ainda, em relação aos Artigos Federalistas mais uma vez a mistura, também operada por Hannah Arendt, entre a revolução e os Artigos. Para defender no projeto republicano americano a existência de uma liberdade como "não-dominação" Pettit

101 Esta análise de Pocock está ancorada nas análises de Gordon Wood, especialmente sobre o Artigo

invoca questões ligadas ao movimento de independência. No entanto, sabemos que o projeto republicano americano, e isso se reforça se considerarmos unicamente Os Artigos

Federalistas, não tinha como preocupação principal a não-dominação. A não ser que admitamos que a construção de qualquer corpo político tem em vista a não-dominação, afinal, nenhuma comunidade que se constitui pretende não ser dominada, do contrário, obviamente, não se constituiria. O que poderia fundamentar essa interpretação de Pettit é a sua visão de republicanismo, exposta sinteticamente da seguinte forma:

"I defend a consequentialist version of republicanism. This republican doctrine, as we shall see, is a consequentialism with a difference: it allows us to say that the institutions which promote people´s freedom as non-domination go to constitute that freedom, not to cause it" (PETTIT, 1997, p. 81).

De fato, se aplicarmos esta definição de "republicanismo conseqüencialista" ela parece se ajustar ao caso americano, no sentido de que a liberdade ali não foi gerada pelas instituições, mas era anterior a elas. No entanto, sabemos que a liberdade ali instituída não era apenas como não-dominação. Aliás, como vimos aqui, inspirados em Gordon Wood, o que existia, em primeiro lugar, no território americano, e precisava ser organizado, era o poder. A liberdade era posterior às esferas de poder existentes na sociedade americana pós-independência. Neste aspecto, vários autores concordariam: Arendt, Wood e Peterson, já citados aqui.

Não tratamos do tema liberdade nesta tese, como anunciamos no segundo capítulo, mas podemos indicar que, ao menos no caso americano, a liberdade republicana de Pettit, como não-dominação parece não se ajustar.

Estes breves comentários foram feitos apenas para deixar indicado que o conflito não é um tema no pensamento republicano atual que, na maior parte das vezes, assume um caráter de historiografia do pensamento republicano. Neste sentido, devemos lembrar as críticas já citadas aqui de Joyce Aplleby, que afirma que o triunfo do republicanismo contemporâneo está calcado numa idéia de consenso, e não de conflito (APPLEBY, 1992, p. 193) e de McCormick, que apontava a interpretação "moderada" daqueles que ele denominava de escola de Cambridge. Esse caráter moderado, calcado no consenso e, de uma certa forma, historiográfico, é mantido para reivindicar uma espécie de

origem única do pensamento político como republicana e que, portanto, essa corrente de pensamento seria muito mais adequada para entender, interpretar e, até mesmo, modificar o mundo. Não acreditamos que isso possa ser assim, até porque, com a operação feita pelos americanos, o que nos parece é que, ao invés de o republicanismo ser um manto que cobre toda teoria política, o que ocorreu é que o liberalismo se apropriou das principais temáticas republicanas e as converteu em um registro a partir do individualismo.

Se o republicanismo se pretende uma alternativa ao liberalismo, talvez o passo seja diferenciar-se de fato, buscando onde, nas suas raízes, era inequivocamente irredutível a qualquer problemática liberal. Neste caso, talvez tenhamos que retornar a Maquiavel. E, neste retorno, resgatar principalmente o conteúdo político de sua concepção de lei, que certamente nada tem a ver com qualquer concepção liberal. É certo que a formulação de Maquiavel a respeito das leis contrasta inclusive com os demais autores analisados aqui, mas sem dúvida seu oposto é o conceito liberal de lei segundo o qual ela só deve limitar a ação dos indivíduos e estabelecer garantias para os mesmos e não ser um produto da política e, ao mesmo tempo, um estímulo de exercício da política.