• Nenhum resultado encontrado

Uma república de indivíduos

TERCEIRO ESTADO?

7. A REPÚBLICA PLURAL AMERICANA

7.4 Uma república de indivíduos

Com as justificativas teóricas para uma república de grandes dimensões, federada, e que devesse possibilitar a manifestação dos mais diversos interesses no interior da república, estava preparado o terreno para que os Federalistas levassem a cabo seu real projeto: o de inviabilizar a confederação de repúblicas, ou a União de Estados proposta pelos Anti-Federalistas e de erigir uma república de indivíduos.

A contraposição entre república de Estados e república de indivíduos é estabelecida de forma explícita na discussão dos Artigos 15 a 22 e é assim enunciada, pela primeira vez: "O vício enorme e radical na construção da Confederação atual está no princípio da legislação para Estados ou governos em seu caráter de corporações ou

coletividades, em contraposição à legislação para os indivíduos que os compõem" (AF 15, p. 160). Esta enunciação irá se desdobrar na demonstração de o quanto um governo de Estados gera forças centrífugas em relação ao conjunto como um todo, na medida em que possibilita ações que somente são levadas a cabo por corpos coletivos, e não o seriam por indivíduos (AF 15, p. 163).Neste sentido, conclamam os Federalistas: "temos de abandonar o projeto inútil da legislação para os Estados como coletividades; devemos estender as leis do governo federal aos cidadãos individuais da América" (AF 23, p. 202).

O mecanismo institucional mais eficaz para que o governo observe, julgue e sancione as condutas é a justiça criminal e civil, que deve ser voltada para os indivíduos e é este cimento que impede que uma união de grandes dimensões não caia na

anarquia. Isto enseja a crítica feita à Confederação de não ter instituído um judiciário (AF 22, p. 198). A defesa do judiciário está associada à defesa da própria autoridade da constituição e da unidade de fonte emanadora de autoridade (AF 16, pp. 167-8; AF 22, p. 198; AF 22, p. 200; AF, 25, p. 214), como podemos ver nas seguintes passagens:

“uma soberania sobre soberanias, um governo sobre governos, uma legislação para comunidades, em contraposição a uma legislação para indivíduos, se é um solecismo na teoria, na prática subverte a ordem e culmina na guerra civil, introduzindo a violência no lugar da moderada e salutar coerção da magistratura”. (AF 20, p. 187)

"O plano apresentado pela convenção, ao estender a autoridade do comando federal aos cidadãos individuais dos vários Estados, permitirá ao governo empregar a magistratura comum de cada um desses Estados na execução de suas leis. É fácil perceber que isto tenderá a destruir, na percepção geral, toda distinção entre as fontes de que as leis possam proceder; e dará ao governo federal a mesma vantagem de obter uma devida obediência à sua autoridade que é gozada pelo governo de cada Estado" (AF 27, p. 222).

Se para impedir a tirania da maioria que poderia vir do Legislativo foi previsto o poder de veto do Executivo, o Judiciário, reforçado pela existência de uma Suprema Corte, garante que os indivíduos é que sejam os destinatários das leis da União, e os direitos individuais estejam garantidos contra maiorias, e também contra as "coletividades" dos Estados. Com isto, a solução institucional da União apresentada pelos Federalistas fortalece os poderes Executivo e Judiciário, enfraquecendo o Legislativo. Este enfraquecimento é ainda reforçado pela importância dada à Constituição e sua superioridade em relação às leis:

"A importante distinção, tão bem compreendida na América, entre uma Constituição estabelecida pelo povo e inalterável pelo governo, e uma lei estabelecida pelo governo e alterável pelo governo, parece ter sido pouco compreendida e menos observada em qualquer outro país. Supõe-se neles que, onde quer que resida o poder de legislar, reside também pleno poder para alterar a forma de governo. Até na Grã-Bretanha, onde os princípios da liberdade política e civil mais foram discutidos, e onde mais se ouve falar dos direitos da Constituição, afirma -se que a autoridade do Parlamento é transcendente e ilimitável, em relação tanto à Constituição como às matérias usuais de deliberação legislativa." (AF, 53, p. 358).

É claro que a idéia de supremacia da Constituição em relação à legislação ordinária não é privilégio da proposta norte-americana. Todo constitucionalismo europeu, inclusive com a formulação de Sieyes, separando o poder constituinte originário do poder constituinte derivado, postula por tal supremacia. Mas não é inapropriado destacar que tal idéia, somada às soluções do veto do Executivo sobre o Legislativo, e a idéia de uma Suprema Corte guardiã da Constituição e de um Judiciário voltado para a proteção do direito dos indivíduos, constitui um elemento de enfraquecimento do poder Legislativo na república americana. Tudo isto para que o indivíduo fosse protegido.

Com a defesa de que devem ser viabilizados, no interior da república, os mais diversos interesses, quantos e quais forem eles, a unidade mais elementar para a medida do interesse é sem dúvida, o indivíduo. E, se o maior temor é o das facções ou de que uma minoria seja tiranizada por uma maioria, mais uma vez é o indivíduo que tem de estar no foco das preocupações na instituição da república.

Mas o que exatamente isso representa em relação às demais teorias, ou às demais experiências republicanas.? Talvez a observação de Paul Peterson, comentando as observações feitas por Gordon Wood nos dê uma pista: "In America, constitutions were seen as charters of power given by liberty rather than, as in Europe, charter of liberty granted by power" (PETERSON, 1979, p. 72). Nessa sugestão, se na Europa tínhamos a liberdade como conseqüência do poder, na América passamos a ter o poder em decorrência da liberdade. Faz sentido. No caso europeu, temos a liberdade, se vista como algo coletivo, como decorrência do próprio poder conferido ao povo; se vista como algo individual, como direitos decorrentes de legislação emanada do poder legislativo. No caso americano, temos o poder, organizado por um povo livre, organizado de forma a pulverizar suas fontes e impedir justamente que o poder de uma maioria possa inviabilizar os direitos (liberdades) de uma minoria. De fato, na América a liberdade parece preceder o poder. Como não vamos desenvolver isto aqui, ficamos com a sugestão para afirmar que a república de indivíduos proposta pelos americanos tem como fundamento a liberdade do povo, que acabou de se tornar independente da Inglaterra e dos indivíduos, que devem ter seus direitos garantidos inclusive contra maiorias. Isto é o que significa a república de indivíduos.