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A república republicana de Montesquieu

TERCEIRO ESTADO?

6. A REPÚBLICA PLURAL DE MONTESQUIEU

6.1 A república republicana de Montesquieu

A caracterização da república é feita por Montesquieu na primeira parte de O Espírito das Leis no âmbito da conhecida tipologia feita por ele, classificando as formas de governo em monarquia, república e despotismo. Nesta tipologia, república e democracia são consideradas na maioria das vezes como sinônimos. Em algumas passagens, Montesquieu parece dividir os governos republicanos em duas modalidades: aristocracia e democracia56. Mas isto não desfaz a tipologia tríplice feita pelo autor. Nesta tipologia, o que mais importa a Montesquieu é menos a natureza dos governos, e mais o princípio que os move57. Este é o seu motor, o seu espírito, que dará a tônica das instituições (leis) que deverão ser instituídas no âmbito de cada um. Se o espírito da monarquia é a honra e o do despotismo é o medo, o espírito da república é a virtude de seus cidadãos. Mas o que significa isso? Que em todas as repúblicas os cidadãos são virtuosos? Não. E Montesquieu é bastante explícito nisso: esse é o espírito que deve mover as repúblicas, para que elas funcionem bem58. Sem a virtude dos cidadãos, como o poder de cada cidadão é igual ao do outro, o que predominam são as facções e a disputa de poder entre elas. Veja-se o exemplo dado por Montesquieu:

“Foi um espetáculo deveras interessante, no século passado, assistir aos esforços impotentes dos ingleses para estabelecerem entre eles a democracia. Como aqueles que participaram dos negócios não tinham virtude, como sua ambição estava acirrada pelo sucesso daquele que tinha sido mais ousado, como o espírito de uma facção só era reprimido pelo espírito de outra, o governo mudava sem cessar; o povo espantado procurava a democracia e não a encontrava em lugar algum. Enfim, após muitos movimentos, choques e sacolejos, foi necessário voltar para aquele governo que tinha sido proscrito” (EL, p. 32).

56 Esta divisão é adotada e assumida por Renato Janine Ribeiro em sua apresentação à edição brasileira da

obra (MONTESQUIEU, 2000, pp. XXXII)

57

Eis a clássica definição de Montesquieu do que seria a natureza e o que seria o princípio de um governo: “Existe a diferença seguinte entre a natureza do governo e seu princípio: sua natureza pe o que o faz ser como é, e seu princípio o que o faz agir. Uma é sua estrutura particular; o outro, as paixões humanas que o fazem mover-se” (EL, p. 31). Como serão muitas as citações da obra neste capítulo, optamos por indicar as referências pelas iniciais EL seguidas da página de cada referência.

58 “Tais são os princípios dos três governos: o que não significa que, em certa república, se seja virtuoso; e

A virtude é definida por Montesquieu como o amor maior pelo interesse público do que pelo próprio interesse. Nas repúblicas (democracias), como o poder é confiado a todos os cidadãos, estes têm de apresentar esta virtude para não corromper tal forma de governo. O amor pelo interesse público se traduz pelo respeito às leis e pelo amor à pátria (EL, p. 46). Para isto, a educação dos cidadãos é imprescindível. Segundo Montesquieu, o desejo pela honra, necessário às monarquias, está completamente afinado com as paixões humanas, com o desejo de glória e o de distinção. Da mesma forma, o medo necessário ao despotismo decorre das simples ameaças feitas por aqueles que comandam tal tipo de governo. A renúncia do interesse particular em nome do interesse público, ao contrário, é contra a natureza das paixões humanas, pois importa numa renúncia de si mesmo, e não decorre de um simples modo de governo, sendo necessário que continuamente seja transmitido por meio da educação, e daí a importância da educação republicana.

Esta forma de governo, que exige dos cidadãos uma renúncia de si mesmo e, portanto, vai na contra-corrente das paixões humanas, é o governo da moderação59. Esta característica estará presente não somente em seus cidadãos, como também em suas instituições. Do ponto de vista social e não apenas individual, a república é o governo da igualdade real entre os cidadãos. Desigualdades extremas entre os cidadãos e desigualdade entre os que governam são as causas de perdição dos governos aristocráticos (EL, p. 63). Para o estabelecimento desta igualdade é necessário que haja leis e que as mesmas sejam obedecidas. Estas leis também serão o instrumento para o estabelecimento da moderação entre os cidadãos. Montesquieu admite que a combinação é difícil:

“Para formar um governo moderado, devem-se combinar os poderes, regulá-los, temperá-los, fazê-los agir, dar, por assim dizer, maior peso a um deles, para colocá-lo em condições de resistir a outro; é uma obra- prima de legislação, que o acaso cria raramente e que raramente se deixa à prudência. Um governo despótico, pelo contrário, salta, por assim dizer, aos olhos; é uniforme por toda parte: como só precisamos de paixões para estabelecê-lo, todos são bons para isso.” (EL, p. 74)

particular se tenham temores, e sim que seria necessário tê-los, sem o que o governo seria imperfeito” (EL, p. 40).

Aqui já temos um esboço da idéia de balanceamento dos poderes e do freio de um pelo outro que está associada à teoria da separação de poderes de Montesquieu. Mas adiemos um pouco este tema. Ainda é preciso caracterizar melhor a república. É o governo de homens iguais, mas iguais pela lei: “No estado de natureza, os homens nascem realmente na igualdade; mas não poderiam nela permanecer. A sociedade faz com que a percam, e eles só voltam a ser iguais graças às leis” (EL, p. 123). Portanto, embora Montesquieu afirme ser a democracia o governo da igualdade real, o que faz essa igualdade real ser possível fora do estado de natureza é a elaboração de leis que estabeleçam tal igualdade. A igualdade real de que fala Montesquieu, então, nada tem a ver com igualdade natural, mas com a igualdade artificial e civil que somente as leis podem estabelecer. Além das leis, é preciso que os cidadãos sejam virtuosos o suficiente para obedecê-la, como já visto, e também que haja juízes que sejam apenas a boca pela qual fala a lei:

“Quanto mais o governo se aproxima da república, mais a forma de julgar se torna fixa; e era um vício da república da Lacedemônia que os éforos julgassem arbitrariamente, sem que houvesse leis para dirigi-los. Em Roma, os primeiros cônsules julgaram como os éforos: sentiram os inconvenientes disto e criaram leis precisas.

No governo republicano, é da natureza da constituição que os juízes sigam a letra da lei. Não há cidadão contra quem se possa interpretar uma lei quando se trata de seus bens, de sua honra ou de sua vida.” (EL, p. 87) Não só o abuso dos direitos individuais é que deve ser combatido numa república, também o deve ser o despotismo de muitos, caracterizado quando muitos despojam o poder que é lícito a poucos exercerem. Este é o caso quando o povo usurpa o poder do senado (EL, p. 125) e, com isto, adquire uma liberdade extrema, por não se encontrar limitado por leis moderadas: “O lugar natural da virtude é ao lado da liberdade; mas ela não se encontra mais próxima da liberdade extrema do que da servidão”. (EL, p. 124)60

Com a dificuldade de que se crie essa legislação balanceada, esse conjunto de instituições que garanta a obediência da legislação, sem o despotismo de muitos ou o privilégio de poucos, e que se tenha, no povo, um conjunto de cidadãos

60 Aqui é evidente a semelhança da preocupação de Montesquieu com a dos Federalistas com a “tirania da

virtuosos Montesquieu admite que somente em países pequenos é viável a forma republicana de governo:

É da natureza da república que ela só possua um pequeno território; sem isto não pode subsistir. Numa república grande, existem grandes fortunas e conseqüentemente pouca moderação nos espíritos; existem depósitos muito grandes para colocar entre as mãos de um cidadão; os interesses particularizam-se; um homem sente, primeiro, que pode ser feliz, grande, glorioso, sem sua pátria; e, logo, que pode ser o único grande sobre as ruínas de sua pátria.” (EL, p. 132)

Numa república grande, o bem comum é sacrificado em prol de mil considerações, está subordinado a exceções, depende de acidentes. Numa república pequena, o bem público é mais bem sentido, mais bem conhecido, mais próximo de cada cidadão; os abusos são menores e, conseqüentemente, menos protegidos. (EL, p. 132) Isto faz com que Montesquieu não veja a república como a melhor forma de governo: “Se uma república for pequena, ela será destruída por uma força estrangeira; se for grande, será destruída por um vício interior” (EL, p. 141). Neste sentido, a monarquia apresenta vantagens em relação à república, pois, embora não seja formada por cidadãos tão virtuosos, é institucionalmente viável em territórios grandes e, com isto, pode resistir melhor ao ataque estrangeiro. A forma de governo ideal seria, então, a que combinasse as características internas da república e a força externa de uma monarquia.

Montesquieu soluciona isso com sua formulação de república federada. E é a defesa desta forma de governo que inicia a Segunda Parte de O Espírito das

Leis:

"Assim, parecia muito provável que os homens fossem afinal obrigados a viver sob o governo de um só, se não tivessem imaginado uma forma de constituição que possui todas as vantagens internas do governo republicano e a força externa da monarquia. Estou referindo-me à república federativa.

Esta forma de governo é uma convenção segundo a qual vários Corpos políticos consentem em se tornar cidadãos de um Estado maior que pretendem formar. É uma sociedade de sociedades, que formam uma nova sociedade, que pode crescer com novos associados que se unirem a ela. (EL, p. 141)

Composto por repúblicas, goza da excelência do governo interior de cada uma; e, quanto ao exterior, possui, pela força da associação, todas as vantagens das grandes monarquias." (EL, p. 142)

Com isto, Montesquieu caracteriza a sua “forma ideal”61 de governo, que combina a virtude da república e a presteza e a excelência da monarquia. A virtude confere o sucesso interno do governo e a dimensão grande que a monarquia possibilita confere ao mesmo governo uma segurança militar que agrada a Montesquieu. Neste sentido, ele se encontra muito próximo aos demais autores republicanos aqui analisados na importância dada ao aspecto militar das repúblicas. E, se a monarquia, com sua presteza e excelência (EL, p. 67), é a forma de governo que possibilita a grandeza militar, a virtude republicana é necessária para a formação dos cidadãos-soldados62. Este continua sendo também para Montesquieu um aspecto essencial para a segurança e a grandeza das formas republicanas de governo (WOLFE, 1977, p. 435). A segurança militar está relacionada com a própria liberdade da república (WOLFE, 1977, p. 438), na medida em que, como veremos no próximo tópico, a liberdade de Montesquieu está fortemente ligada à segurança de cada cidadão de que não será violado por outros cidadãos, ou, no caso da república como um todo, por outros Estados. Definida sua forma preferida de governo, o autor passa a discutir como devem ser as instituições no interior dessa república confederada e, agora, podemos nos aprofundar no seu pensamento “republicano”. E aqui fica ainda mais claro que a república de Montesquieu é o governo das leis.