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O Republicanismo dos Artigos Federalistas

TERCEIRO ESTADO?

7. A REPÚBLICA PLURAL AMERICANA

7.1 O Republicanismo dos Artigos Federalistas

O primeiro aspecto a ser analisado é o caráter republicano dos

Artigos Federalistas. Se em Montesquieu, predecessor dos Federalistas em vários aspectos, já falávamos em república liberal, aqui essa qualificação ganha mais força. Aliás, talvez aqui a expressão realmente ganhe sentido. A pertinência do texto dos Artigos Federalistas a esta ou aquela tradição do pensamento político se confunde com a interpretação dos eventos históricos a eles relacionados. Assim, mais do que uma análise da filiação teórica dos Federalistas, foi feita, no contexto do debate americano, sempre uma análise das idéias que predominaram na formação política americana. Em 1955 foi publicado o principal livro de filiação americana à tradição liberal, de Louis Hartz: The Liberal Tradition in América:

An Interpretation of American Political Thought since the Revolution. Nesta obra, a tese principal do autor é a de que teria predominado nos Estados Unidos, desde a Revolução Americana, as teorias liberais, principalmente a de John Locke. Esta interpretação consolidou algo que já era corrente na bibliografia sobre a revolução americana e sobre a fundação constitucional, de que o pensamento político fundante dos EUA seria liberal.

Em 1967, foi publicado The Ideological Origins of the American

Revolution, de Bernard Bailyn, que deu o pontapé inicial de uma corrente de interpretação da formação política dos EUA como sendo republicana. Esta linhagem de interpretação tem ainda duas obras seminais, que são The Creation of the American Republic, publicada em 1969, de Gordo n Wood, e The Machiavellian Moment, 1975, de J.G.A. Pocock74. Além dessas obras, uma grande autora que integra o rol dos republicanos, Hannah Arendt, anteriormente a todos eles, em 1963, com On Revolution, se apropriou das formulações dos Federalistas para a sua própria teoria, o que, ainda que a autora não inaugure expressamente essa linha de interpretação, até mesmo porque seu trabalho não pode ser classificado como

74 Para uma revisão da linhagem republicana de interpretação da fundação americana, ver "Republican

historiográfico, a coloca como reforço à interpretação dos Federalistas como autores republicanos75.

Joyce Appleby, como já apontado no Capítulo 2 desta tese, reconhece o valor e indica limites de tal interpretação republicana. Segundo ela, embora tal linhagem de interpretação tenha o mérito de ter arejado o debate sobre a tradição predominante do pensamento político americano, que até então era dominado pela corrente liberal, apresenta o problema de ter se tornado uma espécie de terreno onipresente, em que estariam situadas quaisquer posições ou linhas de interpretação no debate político americano. Essa onipresença faz com que as disputas entre tais interpretações sejam mitigadas.

Além da crítica apresentada por Appleby, o debate liberalismo x republicanismo entre os americanos não esgota todas as questões em disputa nas interpretações relevantes que se sucederam desde a Revolução Americana. As principais questões foram mapeadas por Alan Gibson, em seus dois recentes livros Interpreting the

Founding (2006) e Understanding the Founding (2007) e, além do republicanismo/liberalismo, são:

- o debate em torno do caráter econômico dos interesses em disputa na Convenção de Filadélfia, que se deu principalmente a partir de An Economic Interpretation

of the Constitution of United States, de Charles Beard;

- o debate sobre o quão democrática foi a Constituição ratificada, o que varia de acordo com o conceito de democracia que se toma e, de uma certa forma, é feito até recentemente, como demonstra o livro de Robert Dahl How Democratic is

the Constitution;

- a herança escocesa, principalmente de David Hume, que tem como expoente principal Douglass Adair e, recentemente, Mark Spencer, com um trabalho minucioso, resgatando fontes históricas para demonstrar a influência do escocês sobre os Federalistas (2005);

75 Para um exame sobre as idéias republicanas presentes no debate político sobre a revolução americana numa

tentativa de ir além do que Bailyn e Wood foram, ver o empolgado artigo de SHALHOPE, Robert . "Republicanism and Early American Historiography. " The Willian and Mary Quarterly, 3rd. Ser., Vol. 39,. No. 2 (Apr. 1982), pp. 334-356.

- a tentativa de resgate dos founding fathers esquecidos, ou seja, grupos que participaram da fundação americana, mas por serem grupos que historicamente foram alijados do protagonismo histórico, não são considerados fundadores, como o dos nativos americanos e o das mulheres (neste último caso, sugere-se a expressão founding mothers).

O primeiro debate acima indicado é o principal deles e está associado a um grande debate que de uma certa forma permeia todos eles que é o da linhagem Progressiva, na qual se incluem Charles Beard e todos aqueles que, de alguma forma, reivindicam a existência do conflito social no contexto da revolução e da fundação constitucional americanas, e a Não-Progressiva ou Consensual, formada por aqueles autores que ou não reconhecem os conflitos existentes no mesmo contexto ou diminuem sua importância. O livro de Charles Beard é provavelmente o mais debatido de todos os escritos sobre a formação política americana. Sua tese, a de que, na convenção de Filadélfia, na verdade estavam em jogo a disputa de interesses econômicos dos proprietários rura is e os de uma "classe" comercial, foi o ponto de referência para a medida do quanto os founding

fathers estavam realmente preocupados com questões da fundação política e do interesse da nação. Suas afirmações constituíram um marco na literatura sobre o tema, e se tornou uma referência obrigatória. Ainda que não se adote o mesmo método que o dele - o de investigar os interesses reais que moveram os fundadores -, as suas afirmações contribuem para questionar a afirmação da linha de interpretação consensual de que, nos debates da formação americana, os conflitos sociais não estavam presentes porque eles não existiam, ou simplesmente foram deixados em segundo plano para a busca do interesse maior da nação. Este questionamento terá impacto indireto em nosso trabalho, como veremos. Na linhagem progressiva, ainda, quem ocupou uma posição de destaque e esteve presente neste debate em diversos momentos foi Merrill Jensen que aqui está presente em artigos de 1937, 1957 e 1970. Embora não tenhamos examinado seu trabalh o fundamental, The Articles of

Confederation: An Interpretaton of the Social-Constitutional History of The Amercian Revolution, 1774-1781¸ estes artigos dão uma boa noção da força de sua posição no debate e os títulos já indicam sua pertinência no segundo debate acima indicado. O fato de nosso foco de análise ser o conflito de interesses poderia indicar uma filiação imediata a esta

corrente. No entanto, embora sejamos bastante simpáticos a ela, nossas preocupações são outras. Não estamos interessados em analisar, como já dissemos, no contexto social americano do final do século XVIII a existência ou não de classes sociais, ou de segmentos em conflito. Estamos preocupados com, no texto dos Artigos Federalistas, como o conflito de interesses foi tratado. Estas obras apenas nos auxiliam a verificar que não necessariamente há uma justificativa simplesmente factual para o que foi defendido naqueles artigos76. Aliás, é difícil acreditar que um Estado em formação que, mais tarde passou por uma guerra de secessão entre norte e sul, baseada entre outras, numa questão racial, não tivesse conflitos sociais a serem resolvidos. Se os fatos não justificam simplesmente o texto, há opções teóricas, que serão aqui analisadas.

O segundo debate, a respeito do caráter democrático da constituição americana, está muito associado à interpretação da disputa entre federalistas e anti- federalistas e o papel que estes desempenharam no debate político daquele momento. Muitos dizem que estes é que eram democráticos, estes é que eram republicanos. Na disputa entre federalistas e anti- federalistas, bastante abrangente é a coletânea de artigos organizada por Gordon Wood, The Confederation and the Constitution. Cecilia Kenyon, buscando defender, ainda no momento em que escreve, os Federalistas dos ataques anti- federalistas, afirma que os Anti- federalistas eram homens de pouca fé no governo representativo (KENYON, 1973) e, com isto, não poderiam defender uma república de grandes extensões, como propunham os Federalistas, que foram vencedores e mo straram e comprovaram a viabilidade de seu empreendimento. O que a análise de Kenyon acrescenta ao debate corriqueiro é que os Anti- federalistas eram também grandes constitucionalistas e que, portanto, o debate ali não se dá em torno da qualidade técnica das propostas institucionais, mas da "fé" na sua viabilidade real77.

76 Apenas para indicar mais uma referência bibliográfica, Brown e Fehrenbacher sugerem perspectivas para a

interpretação da revolução americana: a perspectiva da tradição, que tem como foco a sacralização e imortalização dos founding fathers e daquele momento histórico; a perspectiva do conflito que situa a revolução americana no contexto das rebeliões sociais americanas e inglesas; e a da modernização, que coloca a revolução como um evento singular na história das revoluções, significando sua "modernização". (BROWN e FEHRENBACHER, 1977).

77 Ressaltando a qualidade teórica dos textos dos Anti-federalistas, considerando alguns deles inclusive

superiores aos Artigos Federalistas, ver a obra de Vernon L. Parrington Main Currents in American Thought:

An Interpretation of American Literature from the Beginnings to 1920 (PARRINGTON, 1958). Para um comentário sobre tais observações, ver o artigo de Douglass Adair "The Tenth Federalist Revisited" (ADAIR, 1951, p. 64).

O terceiro debate tem especial importância para esta tese por dizer respeito à influência teórica que é pano de fundo para a nossa análise feita a partir do conceito de conflito de interesses. Hume é provavelmente a principal fonte teórica dos Federalistas neste tema, e muito do debate sobre sua recepção está associado ao próprio debate sobre o tratamento do interesse nos Artigos. Atualmente, a influência escocesa é inegável, sobretudo em relação a Madison, que teve John Whiterspoon como professor, sendo este, na condição de escocês, um dos principais receptores da obra de Hume na América naquele período.

O quarto debate tem como principal foco enfatizar a importância dos Anti- federalistas reivindicando também para estes a posição de founding fathers. Com este objetivo, Christopher Duncan escreveu o seu trabalho The Anti-Federalists and the Early

American Political Thought, indicando que as propostas por eles defendidas eram muito mais democráticas e condizentes com o espírito da revolução americana. Digno de nota também é o artigo de Annie Mitchell a respeito de um dos "autores" dos Anti-Federalist Papers: A Liberal Republican "Cato" .

Além destes debates, temos de apontar, na autoria dos Federalistas, uma tensão entre as idéias de Hamilton e de Madison. Para a análise desta tensão muito esforço foi feito para a identificação da autoria dos Artigos e, neste aspecto, são capitais e praticamente definitivos os artigos publicados por Douglass Adair em 194478. Mas esta tensão tem se esfriado79 principalmente porque passou a haver uma espécie de consenso de que Madison, embora não tenha escrito a maioria dos Artigos Federalistas, é o principal autor e o grande "teórico político"80. A explicação para isto está relacionada à própria análise do caráter mais democrático ou expansionista das propostas dos Artigos, que estaria associada a um lado mais democrático e propriamente político (Madison) em oposição a outro lado mais vigoroso e enérgico (Hamilton) (KRAMNICK, 1988), mas não entraremos

78 Mas ainda restam dúvidas sobre a autoria de alguns artigos. Ver: KESLER, 2003, p. xiii. (Introdução aos

The Federalist Papers).

79 Esfriou, mas não deixou de existir. Ver artigo de Colleen A. Sheehan: "Madison v. Hamilton: The Battle

over Republicanism and the Role of Public Opinion" (SHEEHAN, 2004).

80 Para uma análise sobre a valorização das figuras da Convenção de 1787, ver o tra balho de Richard Maxwell

Brown e de Don E. Fehrenbacher, em que destacam a sacralização de Washington no momento pós- revolucionário, e apontam a emergência de Madison como a grande figura do período após a II Guerra Mundial. Os autores apontam que, nas décadas de 50 e 60 o Artigo Federalista n. 10 foi mais analisado que a própria Declaração de Independência, se tornando o texto histórico americano mais debatido naquele período (BROWN e FEHRENBACHER, 1977, p. 38).

aqui neste debate. A valorização de Madison ou de Hamilton diz respeito, além de uma avaliação dos impactos teóricos das formulações de um e de outro, a aspectos da vida política americana que não puderam ser objeto desta tese.

Como se vê, estes debates extrapolam a filiação dos Artigos

Federalistas, que é o nosso objeto aqui. No entanto, a sua breve sistematização nos ajuda a problematizar a filiação republicana dessa obra, que será assumida aqui por terem sido os Artigos incorporados pelos autores republicanos contemporâneos como integrantes relevantes dessa tradição de pensamento. Isto não será feito sem críticas, mas tal admissão é necessária, até para que as críticas sejam feitas.