• Nenhum resultado encontrado

Uma república de interesses: a república federada de grandes dimensões

TERCEIRO ESTADO?

7. A REPÚBLICA PLURAL AMERICANA

7.3 Uma república de interesses: a república federada de grandes dimensões

O título deste item é tomado do livro de Cathy Matson e Peter Onuf:

A Union of Interests - Political and Economic Thought in Revolutionary America. Embora os aspectos ali levantados não sejam os principais aspectos que nos interessam aqui, pois foram levantados a partir do foco econômico da análise dos autores, o título é bastante sugestivo sobre como o interesse, que quase sempre abarca aspectos econômicos, é tratado pelos Federalistas.

Como vimos até aqui, várias das idéias apresentadas pelos Federalistas podem ser consideradas intensificações ou aprofundamentos de algumas possibilidades que já haviam sido sinalizadas por Montesquieu. E a república de interesses proposta pelos Federalistas é uma dessas intensificações. Mas para que isso ocorresse, foi necessária a fonte de mais um autor, sem o qual a formulação americana provavelmente não seria possível: David Hume.

A influência de Hume sobre os Federalistas e especialmente sobre James Madison não é explícita no texto dos Artigos, mas já é consagrada entre os comentadores. O principal artigo de análise dessa influência é o clássico, de Douglass

Adair, "That Politics May be Reduced to a Science": David Hume, James Madison, and the

Tenth Federalist, publicado em 1957. Tal análise foi recentemente reforçada com o livro de Mark Spencer David Hume and the Eighteenth Century America, em que Spencer, além de buscar indícios inequívocos da influência de Hume sobre Madison, a partir das fontes escocesas da formação deste, e sobre a elite intelectual americana de época pré-revolução de independência, sugere também razões para a quase ausência de seu nome no texto dos

Artigos. Embora o estudo de Spencer seja bastante minucioso, principalmente em relação às fontes históricas que utiliza, o texto de Adair, para os propósitos teóricos de nossa tese, continua sendo o mais fecundo. Nem mesmo o artigo de Edmund Morgan, de 1986, que apresenta a vantagem, em relação ao de Adair, de usar como fontes mais textos de Madison, além do Artigo 10, torna as análises de Adair menos úteis para nós. Vejamos.

O principal texto de Hume a ser verificado é o "Idea of a Perfect Commonwealth", em que aponta os malefícios das facções no parlamento inglês e a defesa de uma república de grandes dimensões para saná-los. Estas reflexões sobre facções certamente inspiraram Madison, como Adair, Morgan e Spencer apontam. É de Hume a idéia de que, num governo de grandes dimensões, é mais fácil manter a estabilidade contra as facções, pois o impacto que cada uma pode vir a ter na república como um todo é bem menor (ADAIR, 1957, 349; HUME, 2003, pp. 280-1). Um dos méritos de Adair é sua excelente pontaria ao destacar onde Madison foi além de Hume, que é justamente levar a sério as razões econômicas para a formação de facções que são as diversas aptidões para adquirir propriedade. Para que estas diversas aptidões fossem respeitadas, sem que uma facção se sobrepusesse a outra, seria necessário uma grande república que tornasse a união de indivíduos com interesse comum se não impossível, insignificante no impacto em relação ao todo da república.

Com isto, se com Hume era possível, no interior de uma república de grandes dimensões, que todos os interesses partidários pudessem conviver e se manifestarem sem riscos de facciosismos com potência para destruir a estabilidade da república, com os Federalistas, foi possível que não somente os interesses partidários, mas os interesses econômicos (que são a principal fonte para a formação de facções) pudessem se manifestar sem reservas e sem pôr em risco a estabilidade.

Por isto os Federalistas puderam ir além também de Montesquieu, que somente de forma tímida havia esquematizado a sua república de grandes dimensões e comercial. Somente as idéias de Montesquieu poderiam ser fonte para as idéias que, na verdade, os Anti-Federalistas defendiam. A idéia de república confederada, que seria uma união de repúblicas e que, portanto, preservaria a vantagem interna que as repúblicas apresentam, que é a virtude de seus cidadãos, está muito mais próxima da república confederada proposta pelos Anti-Federalistas do que a defendida pelos Federalistas. São as idéias acerca da república comercial de Montesquieu, somadas às idéias de Hume sobre as facções que tornaram possível que a formulação dos Federalistas fizessem sentido e não, de todo, contrariassem as idéias de Montesquieu. Note-se que ser fiel ou não às idéias de Montesquieu era um ponto crucial no debate, pois era consenso naquele momento que uma república deveria ter um governo moderado e, portanto, com separação de poderes. Neste sentido, é preciso lembrar que mesmo na França, a forma republicana constituída após a Revolução Francesa,que teve como uma das fontes teóricas Rousseau, e a unidade soberana, é a da separação de poderes84.

Com os Federalistas, não é somente porque o comércio apazigua os ânimos, torna os povos menos bárbaros e mais amenos os costumes que a virtude republicana pode ser substituída. É porque, com a defesa de diversos interesses econômicos, espalhados no interior de uma república de grandes dimensões, as facções e os perigos delas decorrentes estão afastados, que a virtude republicana teve de ceder lugar ao interesse. Numa república de grandes dimensões, só interesses diversificados e pulverizados podem viabilizar a manutenção de sua estabilidade.Não é necessário, e talvez nem mesmo conveniente, que cada um abra mão de seu interesse em nome de um interesse geral. A busca pelo interesse individual contribui para o alcance do interesse geral.

É por isso que dizemos que os Federalistas intensificaram algo que estava somente em potencial em Montesquieu. Vimos que em O Espírito das Leis já estava aberta a possibilidade de uma república de grandes dimensões com a república federada, e já estava aberto também o campo para que a virtude não fosse mais o espírito da república, com o fortalecimento dos hábitos comerciais. Também estava presente em Montesquieu a

84 Obviamente, havia uma contradição entre a unidade de soberania de Rousseau e a aplicação da separação

de poderes como mecanismo institucional da mo deração do sistema de governo. Apontando e analisando esta contradição, ver ROSANVALLON, 1994.

divisão de poderes, por meio da formulação clássica da separação de poderes e da república confederada. Mas com os Federalistas tudo isso ganhou maior potência, e se manifestou institucionalmente de forma muito mais clara. Nos Federalistas, o interesse ganha uma dimensão que não estava presente em Montesquieu, que é o de se constituir num elemento que favorece a expansão da república e, com o sistema de freios e contrapesos, sugerido por Montesquieu, mas bem mais detalhado pelos Federalistas, Pocock aponta de maneira explícita o caráter expansivo do interesse. Segundo ele, o interesse é tanto uma força limitadora quanto expansiva:

"Interest and faction are the modes in which the decreasingly virtuous people discern and pursue their activities in politics; but in Madison´s thought two consequences soon follow. In the first place, the checks, balances and separations of powers, to be built into the federal structure, ensure as we have seen that interest does not corrupt, so that the full rhetoric of balance and stability can still be invoked in praise of an edifice no longer founded in virtue, and the very fact that it is no longer so founded can easily be masked and forgotten. In the second place, there are passages which strikingly indicate that the capacity of this structure for absorbing and reconciling interests is without known limits. There is no interest which cannot be represented and given its place in the distribution of power - only the most peculiar of institutions, it has seemed to historians in the Federalist tradition, was to prove an exception to this rule - and should the growth and change of the people generate new interests, the federal republic can grow and change to accommodate them." (POCOCK, 2003, pp. 522-3).

Após esta observação certeira que, de uma certa forma, foi um dos pontos de partida para esta tese, Pocock observa, citando Wood que, aqui, está presente uma guinada do republicanismo para o liberalismo. Guardemos essa observação.

Pelo temor das facções é que o poder dos Estados teve de ser enfraquecido, em nome de uma União centralizadora. Mas a resposta ao temor às facções não é uma república unitária, pois outra questão estava em jogo para os Federalistas: a expansão da república. Esta era outra razão para que fosse constituída uma república de grandes dimensões. Como Montesquieu já havia apontado, uma das vantagens da república federada é a força externa que ela consegue ter, obtendo, assim, a grande vantagem da monarquia. Mas a força externa que os Federalistas queriam garantir não era somente a de defesa contra possíveis inimigos externos, mas também a de expansão da república. Para

essa expansão, não bastava que houvesse uma república confederada, era necessário que os Estados não fossem a unidade elementar dessa república.

Neste sentido, mais uma vez é necessário frisar que os Federalistas aprofundaram o que Montesquieu havia apenas começado e sugerido. Em Montesquieu, com sua inspiração inglesa, a liberdade e a segurança individuais são garantidas pela divisão de poderes, que ainda continua sendo, de alguma forma, feita a partir de unidades coletivas. Nos Estados Unidos, esta equação se inverte: é a liberdade, afirmada pelo movimento de independência que fundamenta o poder, que se pulveriza de uma tal maneira, que tem como fonte o indivíduo. Isto é demonstrável por uma passagem, bastante citada, do Artigo Federalista n. 10:

“Enquanto a razão do homem for falível, e ele for livre para exercê-la, diferentes opiniões se formarão. Enquanto subsistir o vínculo entre sua razão e seu amor-próprio, suas opiniões e paixões influirão umas sobre as outras; e as primeiras serão objetos a que as últimas se apegarão. A diversidade das aptidões humanas, que está na origem dos diretos de propriedade, não é um obstáculo menos insuperável a uma uniformidade de interesses. A proteção dessas aptidões é a primeira finalidade do governo. Da proteção de aptidões diferentes e desiguais para adquirir propriedade resulta imediatamente a posse de diferentes graus e tipos de propriedade; e da influência disto nas atitudes e idéias dos respectivos proprietários emerge uma divisão da sociedade em diferentes interesses e partidos” (AF 10, p. 134).

Destrinchemos esta passagem. A sua temática é bastante comum a dois autores, um deles já brevemente estudado aqui: Locke e Harrington. Em Locke, a garantia da propriedade é colocada como a principal função da cons tituição da sociedade e do governo. No entanto, não há a preocupação de que seja protegida (e estimulada) a capacidade de adquirir propriedade em sua diversidade e quantidade. O estímulo se dá pela própria garantia do título: se tenho meu título garantido, faz sentido que procure acumular mais propriedade. Isto é diferente em Harrington, que nos interessa mais aqui: as distinções de interesses baseadas na propriedade são resolvidas no momento da instituição da república. Esses interesses, mais do que protegidos, devem ser equilibrados. Harrington estava preocupado principalmente com a quantidade de propriedade de cada um, e com os problemas decorrentes da desigualdade que as diferentes quantidades de propriedade poderiam causar para a vida equilibrada da república. Com isto, Harrington está preocupado, sim, em

proteger as diversas propriedades, em sua quantidade, mas está mais preocupado em criar regras de equilíbrio para que a república possa sobreviver apesar dessas diferenças nos títulos de propriedade. A resposta dos Federalistas às distinções decorrentes dos títulos de propriedade será bem diferente:

“Publius distinguishes two kinds of divisions which result from property: men differ according to the amount of property they hold, but also according to the kind of property they hold. The difference according the amount of property, between rich and poor, was the basis of the fatal class struggles of small republics. But Publius sees in the large commercial republic the possibility for the first time of subordinating the difference over amount of property to the difference of kind of property. In such a republic the hitherto fatal class struggle is replaced by the safe, even salutary struggle among different kind of propertied interests. In such a republic a man will regard it as more important to himself to further the immediate advantage of his specialized trade, or his specialized calling within trade, than to advance the general cause of the poor or the rich. The struggle of the various interests veils the difference between the few and the many. In particular, the interest of the many as such can be fragmented into sundry narrower, more limited interests, each seeking immediate advantage. In such a republic and with such citizens, 'you make it less probable that a majority of the whole will have a commom motive to invade the rights of other citizens.' In such a republic, popular majorities will still rule but now 'among the great variety of interests, parties, and sects which it embraces, a coalition of a majority of the whole society could seldom take place on any other principles than those of justice and the general good.'” (DIAMOND, 1973, pp. 154-5)

O deslocamento do debate sobre a quantidade para o tipo de propriedade é determinante na constituição do debate americano. Ora, identificar conflitos a partir das quantidades e identificar patamares toleráveis de desigualdade de quantidades de propriedade é algo que faz parte das noções mais elementares de justiça, e estava bastante explícito em Harrington, como vimos. Bastante diferente é a situação se a ênfase recai sobre o tipo de propriedade, pois, ao que é diverso não se compara, apenas se aceita, ou tolera. Com isto, o que foi possível com este deslocamento foi trazer, para algo que tem impactos econô micos muito concretos, a lógica da tolerância e da aceitação da diversidade, e não a de que há desigualdades que não podem ser toleradas. A questão da propriedade vira um fundamento para a "opinião" e não para um interesse que se colocará em divergência com os demais e, nesta divergência, poderá se colocar em oposição a outros

interesses e, nesta medida, terá sua sobrevivência no interior da república questionada. Com isto, o que ocorreu foi que a desigualdade se tornou não só aceitável, mas de uma certa forma protegida, pois ela se traduz em diversidade: diversidade de títulos de propriedade, e, aí, não há como não invocar a certeira observação de Judith Shklar: "in a society that accepts inequality as desirable or inevitable the enforcement of minority rig hts is indeed the essence of liberty" (SHKLAR, 1969, p. 191). E tudo isto é feito pelos americanos invocando a falibilidade da razão do homem. Manifestação dos interesses são manifestações racionais falíveis que devem ser garantidas livremente na vida da república. Esta liberdade inicial é o ponto de partida para qualquer configuração de interesses na vida no interior da república. E esta liberdade infinita é que dá a garantia de que, numa república de grandes extensões, a possibilidade de que qualquer interesse se manifeste e exista: "Amplie-se a esfera e se obterá maior variedade de partidos e interesses; torna-se menos provável que uma minoria do todo vá ter um motivo comum para violar direitos de outros cidadãos" (AF 10, pp. 138-9). Aqui já está a antecipação da solução institucional que será dada para o controle das "maiorias" apresentada no Artigo Federalista 51. Neste artigo, fica claro que a finalidade do governo é impedir que os interesses de uma maioria sufoque os direitos das minorias e, para isso, o mais indicado é que "o interesse pessoal de cada indivíduo possa ser a sentinela dos direito públicos". Tendo isto em vista, é proposta a organização institucional da União ali defendida: um legislativo que perde sua força em favor de um poder Executivo , que terá o poder de veto sobre os atos emanados pelo primeiro. O interesse comum, que pode caracterizar uma maioria no legislativo, pode ameaçar direitos de minorias, e cabe ao Executivo conter isso. O Executivo é, assim, uma espécie de garantidor da fragmentação da sociedade na "república federal dos Estados Unidos": "Nela, enquanto toda autoridade emanará da sociedade e dela dependerá, a própria sociedade estará fragmentada em tantas partes, interesses e categorias de cidadãos que o direitos dos indivíd uos, ou da minoria, serão pouco ameaçados por combinações interesseiras da maioria" (AF 51, p. 352)85.

Aqui, é preciso destacar a relação que temos entre a pulverização do poder, iniciada com Montesquieu, e a intensificação dessa pulverização aqui operada. Na

85 A força do Executivo na Constituição americana foi objeto de intenso debate, inclusive entre os próprios

república federada americana, quanto mais interesses diferentes houver, mais o poder estará fragmentado, e menos chance de que uma maioria oprima uma minoria haverá, ou seja, "quanto mais ampla for a sociedade, desde que ela abranja uma esfera viável, mais capaz de auto-governo ela será" (AF 51, p. 353). Auto-governo e fragmentação de poder estão, portanto, associados numa relação diretamente proporcional.

O tratamento dado ao facciosismo, então, está bastante relacionado ao tratamento dado ao interesse e à pulverização do poder. A solução para o facciosismo, como vimos, não é a unidade, mas o poder ainda mais pulverizado, no menor nível possível. A menor unidade para esta pulverização é o indivíduo. Passemos a ele.