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CAPÍTULO 4 – Princípios de uma regulação financeira heterodoxa

2. Elementos para uma proposta de regulação keynesiana

2.1. A singularidade do sistema financeiro na visão keynesiana

Uma das principais implicações da concepção de moeda na visão keynesiana é que ela contribui para tornar o setor financeiro singular em relação aos demais setores da economia.

115 A auto-regulação, por envolver decisões sujeitas a interesses conflitantes, possui limitações impossíveis de serem

corrigidas ou contornadas. Vários autores discutem esses problemas: Kregel (2011; 2012); Mendonça (2012); Persaud (2012), entre outros.

Para os economistas ortodoxos, para quem a função do sistema financeiro é apenas a de alocar capital escasso para investimentos que possam consumi-lo de forma mais produtiva e lucrativa e a moeda não passa de um véu que não interfere nessa alocação, a singularidade não faz sentido. A referência ao termo capital não se dá por acaso, dado que na visão ortodoxa de moeda ocorre a aproximação semântica daquele termo com a ideia de instrumentos concretos de produção – ferramentas, insumos, ou a própria fábrica. Carvalho e Kregel (2010) explica que na noção ortodoxa do sistema financeiro garantindo a transferência de capital dos poupadores para os investidores está implícito que ―os mercados financeiros são tão importantes para a operação eficiente do sistema econômico quanto, por exemplo, os supermercados, que disponibilizam mercadorias para os consumidores‖ (Carvalho e Kregel, 2010; pág. 11).

No entanto, diferentemente do que é sugerido pelos economistas ortodoxos, os sistemas financeiros não lidam com moeda pensada em termos de capital físico, mas, sim, em termos de liquidez. As instituições financeiras criam e transacionam títulos nominais sobre a renda, que também servem de meios de pagamento, em um ambiente no qual todos os agentes desejam liquidez, ou acesso rápido à moeda. Ao tornar aqueles títulos líquidos ou ao criar depósitos via crédito, o sistema influencia as condições monetárias da economia e satisfaz aqueles anseios por liquidez, fornecendo diretamente poder de compra aos investidores e, indiretamente, controle sobre recursos econômicos reais. Na base dessa atividade está a operacionalização de uma rede complexa de compromissos financeiros formada, principalmente, por transações envolvendo a criação e a comercialização de direitos e obrigações futuras e por transações próprias ao sistema de pagamento, executadas por meio de transferências de depósitos à vista entre bancos comerciais.

Essas transações monetárias são frequentemente sustentadas por posições alavancadas dessas instituições e dos demais agentes financeiros, conformando ligações tanto internas, com participantes do próprio setor financeiro, como externas, dado que as instituições financeiras assumem relações com todos os setores da economia. Em ambos os casos, a confiança, entendida como percepção subjetiva do público acerca da solvência dos agentes financeiros, exerce um papel fundamental na manutenção daquele sistema de compromissos. Vale lembrar que, na perspectiva keynesiana, a própria concepção de moeda e a aceitação do depósito bancário como equivalente a ela no sistema de pagamento são apoiadas em relações de confiança entre o Estado, os bancos e a sociedade116. A confiança imprime um caráter

sistêmico ao ambiente financeiro keynesiano: uma vez que os agentes financeiros estão interligados por transações monetárias em um ambiente de preferência pela liquidez, o aumento da percepção de risco em uma determinada instituição financeira pode levantar dúvidas sobre o estado de outras instituições, desencadeando uma corrida por ativos líquidos que pode levar à perda de confiança em todo o sistema financeiro. A moeda enquanto liquidez tem implicações sistêmicas; já enquanto capital, não. Tem-se aqui, portanto, uma característica específica do funcionamento do sistema financeiro quando comparado aos outros setores da economia: a existência do chamado risco sistêmico, caracterizado pela possibilidade de contágio.

Na maioria dos setores econômicos, a responsabilidade principal pelas perdas recai sobre o agente privado que conduz o negócio e toma as decisões; do mesmo modo que a apropriação dos ganhos também se dá de forma essencialmente privada. Assim, quando uma loja de sapato, um supermercado, ou uma empresa automotiva vai à falência, os outros estabelecimentos do setor normalmente prosperam com a saída do concorrente. Mesmo que exista certa profusão de modos de socialização das perdas em economias empresariais, ela tende a ser relativamente pequena. Este, porém, não é o caso do setor financeiro. O fracasso de uma instituição desse setor, ao invés de suscitar a ocupação do espaço vazio deixado por um concorrente, tende a causar o fracasso de outras instituições numa reação em cadeia à perda de confiança do público. Historicamente, essa possibilidade de contágio é mais evidente nos episódios de falência dos bancos, cuja atividade é caracterizada por inter-relações extensas e profundas, estabelecidas ao gerar crédito, ao operar o sistema de pagamentos da economia ou ao participar do mercado interbancário de empréstimos. Esse entrelaçamento entre os bancos e entre eles e os demais setores econômicos coloca a atividade bancária como altamente sistêmica, característica que, nos anos recentes, cada vez mais tem deixado de se restringir apenas aos bancos. Por exemplo, dois casos envolvendo a quebra de fundos de investimento ressaltaram para o mundo o poder de ruptura sistêmica destas entidades: o colapso do Long-Term Capital Management (LTCM) em 1997117, e de dois fundos do banco Bear Stearns118, cujas quebras em 2007 marcaram o estopim da crise eclodida em 2008.

Não se deve regular, e normalmente não se regulam, os setores empresariais da mesma forma que as instituições financeiras, em especial as bancárias. Em geral, ―[n]ão se obrigam as companhias fabricantes de armas, tabacos, bebidas e medicamentos a terem montante

117 Para entender o caso do LTCM na história das crises financeiras ver Farhi (1998) e WGFM (1999).

118 Os dois fundos da Bear Stearns Asset Management são analisados em FCIC (2011). Uma breve discussão sobre este

mínimo de capital ou serem cotadas em bolsa‖, mas se exige isso dos bancos em função de características particulares ao mundo das finanças ressaltadas antes (Persaud, 2012; pág. 295). Entretanto, é justamente isso o que muitos dos controles e regras regulatórias em vigor procuram fazer, apoiados no ideal ortodoxo de restaurar no setor financeiro a regra central de disciplina de mercado pela qual as empresas são livres para utilizar como desejarem os capitais privados, mas pagam sozinhas pelos custos de decisões que vierem a se revelar inadequadas no futuro.

Nessesentido,oreguladorortodoxodeveria,idealmente,tornaressaresponsabilização possível, e limitar-se à tarefa de sinalizar ao público, com o intuito de preservar a confiança dos consumidores, que problemas em uma instituição financeira são isolados e não colocam em risco o restante do sistema (Carvalho, 2005). No entanto, visto que esse ideal de fazer com que as instituições arquem individualmente com os seus erros sem contagiar terceiros se revela impossível na prática, a estratégia second best nessa concepção tem sido a de minimizar a frequência com que as instituições financeiras se vêem às voltas com posições financeiramente frágeis. Isso reorienta o foco da regulação para as próprias instituições e não para suas inter-relações e/ou processos de transmissão das fragilidades pensadas em termos de liquidez. Daí porque utilizar os coeficientes de capital, tanto para sinalizar ao público a ―saúde‖ das instituições como para inibi-las de assumir riscos exagerados.

Já a perspectiva keynesiana não busca induzir a adoção de mecanismos regulatórios que assumem no setor financeiro a mesma lógica de mercado verificada em outros setores empresariais. Tal empreitada tende a se revelar infrutífera em razão do caráter peculiar do sistema financeiro, em que se criam e comercializam ativos representativos de compromissos monetários cuja oferta e demanda possuem características distintas das de outros mercados119, e a sua estrutura regulatória deve estar preparada para lidar com essa peculiaridade. Particularmente, a noção de que os mercados se auto-regulam com sucesso, com os consumidores sendo capazes de averiguar rapidamente a qualidade das empresas e/ou dos produtos ofertados, trocar de fornecedor ou prestador de serviço, e reparar a compra malograda, duvidosa na maioria dos mercados, definitivamente não é verdadeira na comercialização de produtos financeiros. Também não parece realizável na prática a ideia de

119 Nesse sentido, Stigliz (1994), por exemplo, reconhece haver diferença entre o setor financeiro e outros setores

econômicos. No entanto, esse reconhecimento ocorre sem negar um dos pressupostos básicos que distinguem o pensamento ortodoxo do heterodoxo, qual seja, o de que o sistema financeiro é, por pressuposto, eficiente, e apenas deixa de exibir esse atributo quando sujeito a falhas de mercado que devem ser corrigidas. O que ocorre é que, os mercados financeiros, para Stiglitz, são especialmente suscetíveis a resultados sub-ótimos como consequência da presença daquelas falhas, principalmente problemas de informação assimétrica. ―Accordingly, financial markets - whose essential role is to

obtain and process information - are likely not only to differ from markets for conventional goods and services but to differ in ways that suggest that market failure will be particularly endemic in financial markets‖ (Stiglitz, 1994; pág. 24).

controlar o risco de contágio e de induzir as instituições financeiras a executar uma gestão responsável do risco por meio da ameaça de uma reação punitiva do consumidor. De fato, o comum são os investidores de varejo realizarem um pequeno número de grandes e esporádicas operações financeiras, como a aquisição de uma hipoteca ou a adesão a um fundo de pensão, não reversíveis facilmente e com baixo custo no curto prazo.

Do mesmo modo, a noção de que empresas individualmente seguras conformam um setor integralmente também seguro não é válida para o setor financeiro, onde se verifica a falácia da composição na dinâmica dos riscos. Isto porque uma prática aparentemente prudente e segura do ponto de vista individual dos consumidores ou instituições deixa de assim ser quando é multiplicada e generalizada em todo o sistema. Em Minsky (1986), o acúmulo de posições financeiramente frágeis é explicado pela homogeneização das condutas dos participantes do mercado tidas como seguras pelos parâmetros de controle individual de risco. Em razão dessa característica ―[a] regulação das finanças não é o mesmo que regular a indústria de gás, em que o ato de impor padrões comuns reduz o risco [sistêmico]‖ (Persaud, 2012; pág. 297). Medidas percebidas como benéficas na ótica ortodoxa, como é o caso da eliminação de taxações financeiras visando ao declínio dos custos de negociação, podem incentivar o acúmulo de exposições sistemicamente frágeis e socialmente disfuncionais na perspectiva keynesiana. Já desta perspectiva, e pelo contrário, as taxas sobre operações financeiras, defendidas brevemente por Keynes na sua Teoria Geral (Keynes, 1936), tendem a reduzir a fragilidade sistêmica provocada por esse tipo de exposição à custa de reduzir modestamente os retornos dos investidores ou consumidores de produtos financeiros.

A problemática das crises no setor financeiro também não pode ser tratada pelos reguladores da mesma maneira que as crises no setor automobilístico, na construção civil, ou em qualquer outro. Nos demais ramos empresariais, em que a maior parte do ônus de uma má conduta é privada, pode fazer sentido esperar que os gestores invistam em prevenção de riscos nos seus processos operacionais com o fim de reduzir a probabilidade de perdas. Além disso, nesses casos, processos mais arriscados nem sempre estão associados a maiores retornos financeiros, mas, sim, podem refletir tecnologias defasadas e maior desperdício de insumos. Assim, tanto a introdução de instrumentos regulatórios que simplesmente busquem restabelecer a disciplina de mercado, como a própria auto-regulação do comportamento dos agentes, podem de fato contribuir para reduzir a instabilidade dos mercados.

Já no setor financeiro, o raciocínio é praticamente o inverso. Por um lado, quanto maior o risco de uma operação, mais elevado são os retornos esperados associados a ela.

Nessa lógica, o aumento na probabilidade de ganhos elevados permitida pelo uso de estratégias especulativas tende a desestimular os gestores financeiros a dedicar esforços suficientes para conter os riscos de perdas. Por outro lado, como os custos sociais da ruptura de uma instituição financeira (principalmente bancária) superam, e muito, os custos privados, os gestores financeiros são inclinados a investir de forma insuficiente, do ponto de vista social, na prevenção de falências. Por conta desses desincentivos, todo o setor financeiro é propenso a operar persistentemente fragilizado.

Esse quadro é ainda agravado pela tendência endógena dos mercados a se moverem de estados robustos para os de fragilidade nos moldes de Minsky (1986). Nesse caso, sendo a fragilização financeira um processo endógeno, ela somente pode ser parada por algum elemento exógeno ao sistema; e o Estado, cujas decisões assumem um caráter normativo definidor do próprio sistema, possui, parcialmente, essa característica. Assim, ao contrário dos demais setores econômicos em que algumas soluções de auto-regulação são possíveis ao menos em parte do tempo, no setor financeiro o formato da regulação, na perspectiva keynesiana, deve necessariamente depender da intervenção governamental. Isto porque somente os governos são capazes de confrontar a lógica impulsionadora de posições especulativas e de prover a confiança como bem público necessário para que o sistema financeiro possa contribuir para a expansão da atividade econômica.

Importante lembrar que a própria função da atividade financeira de suportar o processo de investimento num mundo de moeda endógena e não-neutra como o keynesiano já é intrinsecamente arriscada; poucos setores econômicos exibem riscos tão elevados quanto o financeiro. Não por acaso, quando analogias entre o setor financeiro e outros setores da economia são possíveis, esta é para ilustrar o risco daquele setor. Nesse sentido, Warren Buffet comparou alguns instrumentos financeiros a armas de destruição em massa, e Carvalho e Kregel (2010; pág. 9), modificando aquele paralelo, comparou a atividade financeira à produção de energia nuclear que, embora seja extremamente útil, possui riscos igualmente extremos. Por conseguinte, tal como o uso da energia nuclear, a atividade financeira requer regulação rigorosa, muito mais profunda do que aquela implícita na proposta de corrigir ―falhas‖ no funcionamento dos mercados.

Ainda que arriscados, entretanto, se os investimentos são socialmente desejáveis como enfatizado na abordagem keynesiana, é preciso, para fomentá-los, criar estruturas que minimizem em algum grau as incertezas. Ao contribuir para esse objetivo, a regulação financeira se coloca não como restrição ou impedimento ao funcionamento do sistema

financeiro, mas como elemento central para seu desenvolvimento, o que ficará mais claro nas discussões a ser realizadas na próxima seção.