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CAPÍTULO 1 – A dimensão monetária e financeira na economia

2. Moeda não-neutra e endógena e a dimensão financeira em Keynes

2.1. Ausência de equilíbrio na dimensão financeira keynesiana

Em um mundo incerto como é o keynesiano, mesmo após esgotado o processo de geração de poupança a posteriori, não há garantia da consolidação dos passivos no sistema, uma vez que a possibilidade de funding está condicionada à propensão dos indivíduos de adquirir títulos de longo prazo e à capacidade do sistema financeirodeconciliar os diferentes horizontes de aplicação dos investidores produtivos e dos poupadores de riqueza35. De fato, em situações de elevada incerteza, quando a preferência pela liquidez dos agentes está aguçada e não existem instrumentos financeiros adequados para canalizar a poupança para os ativos de longo prazo, esses recursos tendem a ser deslocados apenas para a compra de ativos financeiros de curto prazo, inviabilizando aquela consolidação (Paula, 2013; pág. 379). Ou seja, a presença de incerteza sobre as condições futuras pode gerar um sentimento de aversão ao risco no mercado de títulos estimulando os poupadores a se manterem líquidos e, consequentemente, atravancando o funding.

Keynes não discorreu sobre as razões da defasagem temporal entre a geração de poupança e o surgimento da demanda dos poupadores por ativos de longa maturação, nem elaborou hipóteses para justificar a sua extensão; da mesma forma que também é vago sobre a questão de como os poupadores decidem embarcar em investimentos de longo prazo (Carvalho, 1997; pág. 469). Aquela defasagem, sugere-se, reflete a influência da incerteza na formulação de estratégias de acumulação dos poupadores. De fato, em sua ausência, o circuito financiamento-poupança-funding seria completado concomitantemente ao processo de multiplicação da renda, ao passo que, num mundo incerto, o desenvolvimento completo do multiplicador não assegura a alocação adequada da poupança, pois o funding permanece condicionado à propensão do público a adquirir títulos de longo prazo ou ações ao longo do processo de multiplicação da renda (Studart, 1993; Davidson, 1986).

É também principalmente em razão da incerteza que o funding pode se revelar uma fonte de fragilidade no processo de investimento em meio à dificuldade do sistema financeiro de promover a adequada dispersão dos riscos num contexto de elevada demanda por liquidez no mercado. Nesse cenário, o perigo da não consolidação das obrigações de longo prazo permanece concentrado no passivo dos agentes inversores que tomaram crédito de curto prazo (finance) para comprar ativos de capital de longa vida no circuito do investimento keynesiano,

35 Studart (1993) observa que a coordenação dessas decisões dos diferentes agentes não ocorre necessariamente, já que o

horizonte temporal dos investidores produtivos é geralmente distinto dos poupadores ou proprietários de riqueza. Assim, é na acomodação desses horizontes contraditórios que a infraestrutura institucional – instituições e mercados financeiros – assume um papel fundamental.

elevando a probabilidade de inadimplemento frente à necessidade de amortizar dívidas antes da completa maturação dos investimentos.

A fragilidade no processo de investimento pode surgir também em razão da ação, nos mercados financeiros, de especuladores cujo comportamento é ambíguo: por um lado, têm o efeito positivo de elevar a liquidez dos títulos transacionados nos mercados secundários; porém, por outro lado, têm o efeito negativo de disseminar uma dinâmica especulativa de operações de curto prazo que inibe a oferta de recursos para ativos mais longos com o potencial de gerar fragilidade. Esse trade-off entre liquidez e especulação na organização dos mercados financeiros é observado por Keynes ao discorrer sobre o caráter especulativo do investimento (Keynes, 1936; cap. 12).

Assim, numa economia monetária de produção, marcada pela incerteza e pela moeda endógena e não-neutra, a dimensão financeira exibe um lado potencialmente vulnerável e causador de instabilidade sobre a economia real, em nada semelhante à natureza neutra e estável que é concebida pela ortodoxia, que tende a ignorar o potencial do sistema financeiro para gerar fragilidade. É por isso que, na abordagem keynesiana, não faz sentido analisar a economia sem examinar o mercado monetário e, indiretamente o setor financeiro. Esse ponto é defendido por Keynes, que identifica dois circuitos de circulação monetária – a circulação industrial e a circulação financeira36.

Naprimeira, amoeda possuiopapeldemeiodetroca,em que amanutenção de saldos monetários é justificada somente por motivos transacionais, ou seja, para a antecipação de compras rotineiras de bens e serviços, estando diretamente relacionada com a renda corrente. Isso leva o conceito de circulação industrial a incorporar uma visão de moeda muito próxima da definida pela TQM. Na segunda, a circulação financeira, a moeda exerce a função de fazer circular os ativos em um ambiente que agora incorpora operações com ativos financeiros. A sua dinâmica não está atrelada à renda corrente, mas sim às decisões dos agentes sobre a alocação dos recursos, guiadas pelas expectativas sobre os retornos esperados desses ativos. Dada essa característica, a circulação financeira atua como fonte de recursos, ou de finance, para os especuladores absorverem os títulos emitidos pelos investidores em troca de fundos destinados a amparar seus gastos em bens de capital, com o que se estabelece uma interação entre o circuito industrial e o financeiro. O mesmo ocorre quando, diante de movimentos adversos nos preços futuros, se torna aconselhável (e é viável) reter moeda ao invés de

36 Embora Keynes posteriormente (Teoria Geral) abandone essa caracterização da economia em dois circuitos, optou-se por

retratá-la nesse trabalho por ressaltar a preocupação do autor com o impacto da dinâmica do sistema financeiro na economia real.

realizar investimentos, provocando uma alteração na velocidade de acumulação na economia e reduzindo o ritmo da circulação industrial. Logo, a instabilidade originada em um circuito é fácil e rapidamente transmitida para a outra esfera de circulação.

Por outro lado, a percepção de um mundo incerto implica na imprevisibilidade no comportamento das variáveis na economia e na não garantia da estabilidade dos processos no tempo. Conforme será discutido no capítulo segundo, diferentemente do que ocorre na ortodoxia, no modelo keynesiano o tempo é unidirecional ou irreversível, o que impede aos agentes de visualizarem como os processos econômicos funcionam no futuro, voltarem ao passado e adaptarem os seus comportamentos no presente. Isto não sendo possível, nada garante que as perturbações observadas na realidade econômica representem situações de desequilíbrio apenas no curto-prazo, ou que desviem os mercados apenas momentaneamente das suas tendências ao equilíbrio num tempo mais distante.

Num quadro de irreversibilidade temporal também as expectativas assumem um papel substancialmente diferente daquele desempenhado na ortodoxia. Como discutido anteriormente, sua incorporação no paradigma ortodoxo ocorre com a preocupação de assegurar o alcance de uma posição de equilíbrio assumida como existente, em que elas exercem a função de determinar a trajetória de ajuste de um período para outro até que o pleno equilíbrio seja atingido. Já na concepção keynesiana as expectativas também determinam o comportamento corrente das variáveis, porém em um contexto de permanente ausência de equilíbrio. Elas não são elementos adicionados ao modelo para garantir o equilíbrio, mas sim, uma característica a ele intrínseca (Dow, 1985).

O sistema financeiro inerente a uma dimensão que constantemente está ou tende ao equilíbrio é necessariamente diferente daquele característico de um mundo incerto em que o equilíbrio está ausente. Neste capítulo discutimos como as distintas concepções da moeda conduzem a essas diferentes visões da dimensão financeira. Para esse resultado, entretanto, contribui decisivamente o papel da incerteza que também é tratado, como veremos a seguir, de forma distinta em cada um dos paradigmas teóricos analisados neste trabalho.