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CAPÍTULO 4 – Princípios de uma regulação financeira heterodoxa

3. Princípios de uma regulação financeira keynesiana

3.5. Princípio específico da dinamicidade

O quarto princípio específico é o da dinamicidade do sistema financeiro. Sua pertinência deriva de que a atividade normal dos agentes financeiros em busca de novas fontes de ganhos leva a constantes inovações no sistema financeiro que, por sua vez, se manifestam em vários de seus aspectos: produtos, processos, estrutura, dimensões de atuação e, mesmo, no padrão de financiamento para empresas, famílias e governo. Para se manter eficaz nesse ambiente dinâmico, o aparato regulatório precisa também ser mutável na forma a se conservar coerente com a evolução dos mercados e das estruturas financeiras.

Na perspectiva keynesiana, esse dinamismo do sistema financeiro objeto da regulação pode ser observado nas dimensões macro e microeconômica. A dimensão macroeconômica reconhece a natureza cíclica das interações geradas pelas relações financeiras na economia, teorizada por Minsky (1986) e expressa na forma de uma tendência endógena e inerente das estruturas financeiras capitalistas em se mover de estados de robustez para o de fragilidade ao longo do tempo, podendo tornar o ambiente financeiro instável e suscetível a crises. A dimensão micro compreende a habilidade dos participantes do sistema de se adaptar e inovar frente a novas circunstâncias, criando novas práticas e estabelecendo diferentes formas de intermediação financeira e de organização institucional que, no plano sistêmico, produzem a tendência à fragilidade.

No tocante à regulação, a dimensão macroeconômica, apoiada na hipótese da fragilidade financeira de Minsky que explica as causas das crises financeiras e orienta a formulação da regulação para preveni-las, incorpora uma abordagem macroprudencial e

dinâmica. A ausência desse embasamento teórico é uma das principais críticas de Minsky à regulação ortodoxa com enfoque microeconômico estruturada nos anos 1960, mas que ainda se mantém na atualidade195.

Na perspectiva microeconômica, o desafio do desenho regulatório não está em formular ou implementar regras específicas, ou ainda em supervisionar o seu cumprimento, mas em desenvolver uma abordagem que seja sensível à capacidade dos agentes econômicos de se adaptar e de inovar no sistema financeiro, frequentemente com o impulso de evitar e burlar a estrutura da regulação colocada em prática visando restringir ou estimular determinado comportamento de tais agentes. Essa habilidade prejudica a eficácia da intervenção nos mercados, ao tornar as regras obsoletas para disciplinar a conduta mutante dos seus participantes. Segundo Minsky (1994b),

[…] the perennial quest for the profits that successful innovators earn, energizes entrepreneurs. New financial and banking institutions and new financing patterns for business, households and government units emerge and their users prosper. Over time the initially apt pattern of regulation and supervision becomes increasingly inept: the inherited structure of regulation and supervision first becomes not quite right and late becomes perverse. A cumulative effect of the institutional and usage changes that occur is that the institutions which are supposed to contain the endogenous disequilibrating forces of our

economy lose much of their power to do so (Minsky, 1994b; pág. 4-5).

Para lidar com essa natureza, Minsky insiste que a regulação e a supervisão financeira precisam ser frequentemente revisadas e readaptadas em relação às mudanças em andamento no sistema financeiro que alteram as práticas dos agentes no plano individual, a fim de preservar a sua eficácia196. ―What is an appropriate strucuture of regulation and supervision

of banking and finance at one point in time will become inappropriate as time goes by

(Minsky, 1994b; pág. 6) Isso significa que os mecanismos regulatórios e de supervisão devem ser ajustados à evolução das instituições que supervisam e dos mercados nos quais essas instituições operam.

Para acompanhar a natureza cíclica dos mercados, a construção do aparato regulatório na abordagem keynesiana tem de ser, portanto, um exercício igualmente dinâmico, caracterizado por revisões contínuas nas suas práticas com o propósito de não apenas refletir

195 Kregel (2014) observa que uma das principais críticas de Minsky ao viés microeconômico da regulação estruturada nos

anos 1960, qual seja, a ausência desse embasamento teórico que explique a dinâmica sistêmica, poderia ser aplicado à abordagem regulatória atual que tenta lidar com o aspecto macro dos mercados. Nas palavras do autor: ―[h]owever, the

same criticism that Minsky leveled against the formulation of the ―micro‖ regulation of the 1960s applies today to the ―macro‖ prudential approach, since it is lacking any underlying theoretical framework of the causes of systemic crises that would support formulation of regulations to prevent them. It pretends to provide regulation to deal with systemic issues without any clearly articulated theory of the causes of systemic crises or the cyclical behavior of the financial system‖ (Kregel, 2014, pág. 5).

196 ―Therefore if regulation is to remain effective, it must be reassessed frequently and made consistent with evolving market and financial structures‖ (Minsky e Campbell, 19888, pág. 6). Ver ainda Minsky (1994b, 1986, 1987, 1988).

as condições econômicas correntes e esperadas, mas, sobretudo, as próprias instituições que constituem o sistema financeiro – como funcionam, interagem, se organizam e reagem às regras, independentemente das categorias eventualmente pré-estabelecidas às quais pertençam197. Tal exercício inclui ainda o monitoramento, pelas autoridades regulatórias (por exemplo, o Banco Central), dos impactos das políticas adotadas (regulatórias e outras, como a política monetária) sobre a estabilidade das instituições financeiras, num contexto de mudança institucional e operacional permanente no sistema.

Em termos práticos, Minsky (1975b e 1994) sugere examinar o sistema financeiro por meio de relatórios regulares baseados em análises das instituições financeiras e do mercado que permitiriam e obrigariam as autoridades (regulatórias e outras públicas) a estarem cientes das mudanças institucionais em curso e, indo além, investigarem como essas evoluções podem vir a afetar a estabilidade do sistema financeiro. Importante observar também que Minsky oferece poucos elementos para pensar em mecanismos e instrumentos efetivos ou práticos de regulação. Isso talvez decorrada sua própria ideia de regulamentação não estanque ou final,masemconstantemutaçãoapartirdastransformaçõesemcursonosistemafinanceiro. Ainda em relação a essa abordagem dinâmica da regulação, Minsky ressalta que não importa o quão esperto e perspicaz seja o regulador financeiro, o caráter especulativo e inovador dos agentes no sistema capitalista acabará por levar a práticas e relações financeiras desencadeadoras de instabilidade. Isso significa que, ainda que a estrutura regulatória consiga promover um padrão de sistema capaz de suportar uma expansão financeiramente estável da economia, é impossível que ele mantenha essas condições por longo tempo198, o que torna a formulação da regulação em busca da estabilidade um exercício não apenas constante e dinâmico, mas também sem fim. ―It is the strong endogenously determined evolutionary

tendencies at work in a capitalist financial system which assures that the task of getting money and finance right may well be a never ending struggle‖ (Minsky, 1994b; pág. 6). Com

isso, regimes regulatórios não podem ser vistos como eternos ou universais, devendo ser constantemente alterados para estar sempre em compasso com as transformações das estruturas financeiras para as quais foram pensados.

197 Para Minsky, tanto a estrutura da regulação e da supervisão financeira vigente, como os ajustes ou adaptações nela

realizadas, refletem a teoria subjacente sobre como a economia funciona. A ausência de um embasamento teórico que explique como a fragilidade se desenvolve endogenamente e as causas das crises sistêmicas explicaria a dificuldade da abordagem regulatória dominante, apoiada na teoria ortodoxa, de conceber uma regulação financeira dinâmica macroprudencial. Kregel (2014) traz uma discussão sobre essa visão em Minsky.

198 Minsky explica que ―[…][i]t becomes well might self-evident that it is virtually impossible for any monetary and financial regime to satisfy these standards over any substantial period of time, given the strong evolutionary properties of financial and banking system of capitalist economies‖ (Minsky, 1994b; pág. 6).

Nessa lógica, o contexto financeiro que culminou na quebra do banco Lehman Brothers em 2008 é farto em exemplos, em praticamente todas as dimensões do sistema – operações, processos, produtos, atividades ou funções, estrutura, modelo de negócio, serviços, organização institucional, utilização dos produtos, entre outros –, de como os agentes financeiros são criativos e engenhosos ao perseguir lucro. Nesse sentido, evidenciam como os agentes são capazes de burlar, com relativa facilidade, uma regulação não dinâmica e de como a regulação com viés ortodoxo, carente de embasamento teórico que explique o caráter dinâmico e desestabilizador dos mercados, é impotente para se manter eficaz frente à evolução dos mercados. Foge ao objetivo desse trabalho detalhar as inúmeras estratégias e inovações perseguidas pelos agentes financeiros nos anos anteriores à recente crise. Muitos autores já o fizeram199. Cabe apenas ressaltar que a manutenção daquele viés regulatório ortodoxo, que parece estar orientando as propostas de reforma do sistema financeiro pós-crise nas principais economias, tende a perpetuar a incapacidade da regulação de deslocar-se junto com as transformações futuras, e já em andamento, do sistema financeiro.