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CAPÍTULO 4 – Princípios de uma regulação financeira heterodoxa

3. Princípios de uma regulação financeira keynesiana

3.1. Princípio geral da não-neutralidade do sistema financeiro

Defende-se aqui que o princípio geral de uma regulação financeira heterodoxa de inspiração keynesiana é o da não-neutralidade do sistema financeiro, que se contrapõe à visão ortodoxa dominante na qual a esfera financeira é vista como incapaz de afetar o nível de produção e de investimento na economia. Nessa perspectiva prevalece a visão de autores como Eugene Fama, Robert Lucas, Franco Modigliani, Merton Miller, entre outros, em favor da neutralidade daquela esfera e da segregação entre o mundo real e o das finanças. Contrariando-a diretamente, o paradigma keynesiano parte da ideia de que a não-neutralidade vale para a moeda e, consequentemente, para o sistema financeiro enquanto criador de liquidez. Nesse sentido, as forças financeiras interagem com a produção, o consumo e o investimento e determinam o estado assumido por variáveis reais-chave da economia: o produto, o emprego e os preços (Minsky, 1977). Batizada de Wall Street por Minsky, a teoria de Keynes desconstrói a noção de neutralidade do sistema financeiro tanto na dimensão micro como na macroeconômica: na primeira aponta a importância das instituições financeiras, sobretudo bancárias, na determinação das condições de financiamento do investimento; já na segunda, assinala o caráter endógeno da instabilidade do sistema financeiro.

Na dimensão microeconômica, essa teoria mostra como as instituições financeiras, em especial as bancárias, afetam as condições de financiamento do investimento e, por isso, desempenham papel fundamental no processo de transição de um quadro de baixo nível de atividade econômica para outro com alto nível de atividade (Keynes, 1937a; pág. 668). A capacidade de criação ativa de crédito por parte do setor bancário é essencial para atender a demanda por fundo rotativo na abordagem keynesiana e, assim, desencadear o processo de investimento na economia. Essa capacidade não está atrelada ao montante de poupança previamente existente; diferentemente, o aumento do crédito bancário requer uma redução da preferência pela liquidez por parte dos bancos, ou seja, requer uma decisão de elevar a proporção de empréstimos, instrumentos pouco líquidos, nos seus balanços patrimoniais totais. A depender de essa decisão ser tomada ou não, a economia pode se deparar com o congestionamento na provisão de crédito e a elevação da taxa de juros, ambos interruptores do processo de investimento. Na essência dessa caracterização está a visão keynesiana dos

bancos enquanto instituições capazes de, ao criar depósitos, aumentar a oferta de moeda. Essa visão explica a atenção dos teóricos heterodoxos com o comportamento das instituições financeiras e o discurso em defesa da intervenção regulatória que incorpora a preocupação de promover o desenvolvimento de um sistema financeiro cujo desempenho seja funcional, no sentido de Studart (1995), ao crescimento econômico.

Também atrelada à dimensão micro está a relação entre os investidores e o mercado de capitais. A visão keynesiana observa o efeito ambíguo do mercado de capitais sobre a decisão de investimento ao atuar tanto no sentido de prover liquidez aos ativos financeiros transacionados (títulos representativos de dívida e/ou ações), função essencial para a realização do funding no processo de investimento, como na direção de estimular a atividade especulativa (Keynes, 1936; cap. 12). No primeiro caso, o mercado de capitais encoraja a disposição para investir dos empresários ao conferir certa reversibilidade à decisão de investimento em capital fixo, algo importante para os inversores que tomam decisões num contexto de incerteza. No segundo caso, a ação dos especuladores, guiada pelas expectativas em relação ao comportamento dos preços futuros dos ativos e não pelo retorno esperado das inversões produtivas, frequentemente contribui para o aumento da volatilidade dos preços observados pelos empresários e, portanto, para a queda do volume de investimento realizado. Para reduzir essa volatilidade, Keynes propõe a introdução de um imposto sobre a transferência de ações no mercado financeiro de forma a aumentar o custo da especulação (Keynes, 1936), ideia que está no cerne das primeiras propostas em defesa do que é hoje chamada de ―taxa Tobin‖, imposto sobre transações financeiras com o intuito de reduzir o incentivo às operações altamente alavancadas de natureza essencialmente especulativa130.

Já na dimensão macroeconômica, a hipótese da instabilidade financeira elaborada por Hyman Minsky forneceu os fundamentos para a visão sistêmica da esfera financeira e, por conseguinte, para as discussões iniciais sobre a denominada ‗regulação macroprudencial‘, atualmente em evidência. Concebida sobre o alicerce da teoria do investimento de Keynes dos ciclos de negócio, a hipótese de Minsky explica a tendência do sistema financeiro a gerar crises como resultado do seu funcionamento normal, ou seja, a gerar instabilidade de forma endógena. O autor fornece com isso uma nova estrutura de análise do setor financeiro que observa a interação entre as instituições individuais e o setor como um todo, proporcionando um referencial teórico para justificar a intervenção regulatória em geral e a regulação prudencial em particular.

130 Uma discussão sobre esse tema é apresentada por Cintra et. al. (2010) a partir da compilação de artigos de diferentes

Isso é extremamente necessário uma vez que a abordagem ortodoxa, alicerçada na teoria do equilíbrio auto-ajustado, não oferece espaço para discutir a possibilidade de crise financeira sistêmica e tende a se concentrar no plano micro (Kregel, 2014), ou seja, no comportamento de cada instituição vista isoladamente. Como nessa abordagem teórica a possibilidade de ocorrência endógena de uma crise sistêmica simplesmente não existe, a regulação não se preocupa com o conjunto do sistema, devendo apenas monitorar e, se for preciso, eliminar aquelas instituições financeiras ―mal comportadas‖. Para isso, ela utiliza procedimentos de regulação e de supervisão que requerem apenas a avaliação das atividades das instituições no plano individual. Segundo Kregel (2014),

―[i]t was thus extremely difficult to formulate Prudential regulation to respond to a financial crisis if one could only occur as the result of random, external shocks, or what Alan Greenspan would consider idiosyncratic, nonrational (fraudulent) behavior. The only basis for regulation would be to concentrate on the eradiction of the disruptive behavior of bad or

mismanaged financial institutional‖ (pág. 4).

Essa limitação da abordagem ortodoxa na capacidade de analisar o setor financeiro de forma sistêmica tem gerado uma das principais críticas direcionadas, por exemplo, às propostas de regulação bancária internacional no âmbito dos acordos de Basiléia131.

Já no caso da abordagem keynesiana, que pensa a regulação sob a ótica da não- neutralidade financeira, essa limitação não existe. A não-neutralidade do sistema financeiro, nessa perspectiva, possui claramente o que se pode chamar de uma dimensão Keynes – preocupada em assegurar a não interrupção do financiamento adequado do investimento – e uma dimensão Minsky – voltada para a redução da instabilidade financeira da economia por meio de um aparato regulatório de cunho macroprudencial.

Inicialmente, poder-se-ia pensar que, ao menos na dimensão Keynes, ou microeconômica, haveria alguma convergência entre as abordagens keynesiana e ortodoxa, dado o foco microprudencial da segunda. No entanto, os objetos a serem regulados nas abordagens ortodoxa e keynesiana são distintos, e ambas as dimensões da não-neutralidade do sistema financeiro estão fadadas a ser ignoradas pelo regulador ortodoxo, o que se dá por dois motivos. Em primeiro lugar, a dimensão Minsky, de natureza macro, é desconsiderada em razão do caráter microprudencial da regulação ortodoxa. Em segundo, mesmo a dimensão Keynes é largamente desprezada pela ortodoxia, que somente busca garantir a eficiência e neutralidade na alocação dos recursos, sem a preocupação com o aspecto funcional do sistema financeiro no sentido de Studart (1995). Ao fazer isso, retira de seu foco a busca pelo

131 As críticas nesse sentido têm como alvo principalmente os documentos Basileia I e II, uma vez que o acordo de Basileia

III incorpora alguns elementos da regulação macroprudencial, ainda que essa tentativa ainda pareça modesta aos olhos dos estudiosos keynesianos. Ver, por exemplo, Carvalho (2010a), Kregel (2011) e Mendonça (2012)

funcionamento adequado das funções financeiras determinantes para o processo de investimento em Keynes, quais sejam, a criação de finance pelo setor bancário e a execução do funding pelo mercado de capitais.

Com efeito, o foco ortodoxo na manutenção de instituições bem administradas e comportadasnãogarantequeelaspromovamasfunçõesnecessáriasaocrescimento econômico de forma estável. Além disso, a maior parte da regulação financeira existente, com viés predominantemente ortodoxo, tem falhado em identificar a evolução dos riscos no interior dos sistemas financeiros, não apenas no plano macro, já esperado, mas, inclusive, no interior das instituições individuais. Foi assim, por exemplo, nos anos 1980, com as rupturas dos bancos norte-americanos Penn Square Bank, Continetal Illinois e Seatlle First, nos anos 1990, com a quebra do fundo Long Term Capital Market (LTCM) e, recentemente, no âmbito da crise de 2008, com a quebra de dois hedge-funds do banco Bear Sterns e, posteriormente do próprio banco, além da sequência de falências que se seguiu ao colapso do Lehman Brothers.

Passados os episódios de ruptura dos mercados, normalmente o arcabouço regulatório é alterado para prevenir a ocorrência de ―problemas‖ em algumas instituições nos moldes dos que já aconteceram, porém sem a preocupação de entender e corrigir os fatores sistêmicos que desencadearam o estado de fragilidade nessas instituições e em todo o sistema. Embora a importância da interação entre elas na criação de choques sistêmicos tenha sido reconhecida em todas essas ocasiões, os eventos produziram alterações apenas modestas nos procedimentos de supervisão. Na prática, os reguladores e supervisores continuam enfrentando a mesma limitação ao tentar adotar uma abordagem prudencial ‗macro‘ sem qualquer suporte teórico acerca das causas das crises sistêmicas que os guie na formulação de uma regulação para preveni-las. ―It pretends to provide regulation to deal with systemic issues

without any clearly articulated theory of the causes of systemic crisis or the cyclical behavior of the financial system‖ (Kregel, 2014; pág. 5).

O princípio da não-neutralidade do sistema financeiro está presente, enquanto diretriz basilar, em todos os aspectos da abordagem regulatória keynesiana. Assim, ao analisar os princípios específicos tratados a seguir deve-se ter em mente que eles são abarcados pelo princípio geral da não-neutralidade e são também dele suporte.