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CAPÍTULO 4 – Princípios de uma regulação financeira heterodoxa

2. Elementos para uma proposta de regulação keynesiana

2.2. Porque regular um sistema financeiro não-neutro e ativo?

Na abordagem keynesiana, a condição de moeda endógena e não-neutra e de incerteza no sentido Knight-Keynes implica, necessariamente, num sistema financeiro não-neutro e ativo. Assim caracterizado, as instituições financeiras que o formam administram ativamente seus balanços, podendo impulsionar ou contrair a oferta de crédito, impactando no produto e no emprego da economia.

Nessa atividade, elas se confrontam diretamente com a preferência pela liquidez nos seus balanços ao criarem crédito e ao intermediar fundos. Convivem, assim, com a pressão por liquidez dos agentes no lado passivo – sobretudo os bancos comerciais cujos passivos representam moeda criada via depósito –, ao mesmo tempo em que enfrentam a incerteza de possuir ativos que não podem ser convertidos em moeda rapidamente. Ou seja, os papeis da incerteza e da moeda percebidos na abordagem keynesiana tornam a atividade financeira mais complexa e arriscada, com consequências que se estendem para toda a sociedade. Nesse contexto, a resposta à indagação de porque regular essa atividade do ponto de vista keynesiano envolve necessariamente a consideração das implicações da relação entre incerteza e o acesso à moeda na esfera financeira.

Liquidez como bem público

O fato de os passivos dos bancos comerciais serem amplamente aceitos como equivalentes à moeda torna a natureza da atividade bancária peculiar e a coloca no centro das atenções regulatórias. Tal atributo confere a essas instituições a capacidade de criar moeda privada e, assim, de interferir no acesso da sociedade aos meios de pagamento. Essa interferência ocorre principalmente em duas direções. Primeiro, por meio da administração do sistema de pagamentos da economia, baseado na transferência de depósitos à vista entre bancos comerciais. Segundo, via criação de crédito e liquidez operando no chamado sistema de reserva fracionada.

Em relação ao sistema de pagamentos, a grande maioria das transações econômicas realizadas pelos agentes não bancários é liquidada por meio da transferência de direitos sobre depósitos à vista mantidos nos bancos comerciais. Normalmente, os economistas não são treinados para perceber a importância desse mecanismo, concentrando-se na entrega da

moeda física ou de alguma outra mercadoria na liquidação das obrigações, quando na verdade o processo é muito mais complexo e arriscado, já que consiste principalmente no reconhecimento e na transferência de direitos sobre os passivos bancários (Carvalho, 2005; pág. 4).

Com efeito, os depósitos à vista são obrigações privadas de características peculiares: maturidade zero e valor fixado na paridade de um para um com a moeda emitida pelo governo. Ao contrário dessa última, que tem aceitação obrigatória, o uso dos depósitos como meio de pagamento é voluntário e depende da confiança do público quanto à capacidade dos bancos comerciais de honrar as suas obrigações respeitando aquelas características, ou seja, de entregar dinheiro vivo sempre que o titular desses depósitos assim desejar. A eventual perda, ou mesmo abalo desta confiança, pode levar todos os depositantes a tentarem converter os seus depósitos em moeda, numa busca por liquidez frente à incerteza que pode fragilizar a relação ativo-passivo do banco e acarretar a quebra da instituição. No limite, quando esse quadro se espalha para todo o sistema financeiro num movimento de contágio, tem-se a chamada corrida bancária e surgem problemas sistêmicos.

A segurança requerida pelos depositantes não pode ser oferecida apenas pelos próprios bancos comerciais privados, uma vez que a atividade dessas instituições não se restringe à custódia simples de depósitos, mas envolve, principalmente, a criação de poder de compra para a oferta de empréstimos. Essa atividade, segundo meio de intervenção do sistema financeiro no acesso da sociedade à moeda, consiste numa operação essencialmente contábil na qual os bancos criam depósitos à vista em nome do tomador do empréstimo e registram o valor emprestado nos seus ativos como crédito. Como normalmente apenas uma pequena fração dos depósitos existentes é de fato resgatada em moeda pelos depositantes, os bancos podem criar depósitos (ou crédito) em montantes muito acima das suas reservas monetárias. Essa é a essência do regime de reserva fracionada e base do finance enquanto crédito rotativo descrito por Keynes (1936).

Por conta dessas operações, os balanços bancários normalmente exibem nos seus passivos depósitos em valores muito superiores ao de suas reservas em caixa na forma de moeda, ou seja, operam alavancados, tornando-se extremamente vulneráveis em um eventual quadro de reversão das expectativas e de aumento da demanda por liquidez. Assim, a atividade normal dos bancos comerciais expõe os depósitos a um elevado risco de crédito do qual os depositantes, em geral, não são muito conscientes (Carvalho, 2005; pág. 5). Por isso, a substitutibilidade percebida pelos agentes entre moeda emitida pelo governo e depósitos à

vista constitui atributo fundamental para a integridade e estabilidade de todo sistema bancário na abordagem keynesiana, que reconhece a preferência pela liquidez como refúgio diante da incerteza. Tal paridade, no entanto, somente é possível quando o risco de crédito associado aos depósitos é percebido como equivalente ao da moeda, ou seja, zero.

Dada a importância dessa equivalência, Dow (1996) explica que a liquidez, por ela definida como moneyness120, dos passivos bancários é, na essência, um bem público, ou seja, um bem ao qual o acesso não pode ser impedido e cujo uso por uma pessoa não impede seu uso por outra121, e cuja provisão possui externalidades positivas. Essa característica constitui justificativa basilar para a intervenção financeira que, justamente, deve ter entre os seus propósitos o de assegurar que os ativos bancários sejam suficientemente líquidos para honrar qualquer redução dos depósitos e, principalmente, para desestimular que a própria redução aconteça.

Ao fazer isso, a regulação fortalece a confiança do público no sistema bancário, o que não pode ser alcançado pelas instituições privadas, sujeitas à falência. Segundo Dow (1996), o Estado produz originalmente moneyness ao inspirar confiança na capacidade da moeda por ele emitida de reter valor, e essa confiança está na base do papel da moeda como meio de pagamento, de reserva de valor, e de unidade de conta e denominador dos contratos122. Esses atributos da moeda somente podem ser estendidos aos depósitos bancários pelo próprio Estado, agindo por meio de intervenções regulatórias que eliminem a incerteza em torno da conversibilidade desses depósitos em moeda e, assim, assegurem a percepção de risco de crédito nulo. Nesses termos, a regulação é, portanto, necessária e deve ser novamente conduzida pelo Estado.

Estabilidade financeira como bem público

De acordo com Keynes, ao lidar com processos inerentemente incertos, a sociedade recorre à convenção como base para a formação das expectativas, o que, frequentemente, consiste em supor que a situação presente irá se manter por tempo indeterminado, a menos que haja razões concretas para esperar uma mudança (Keynes, 1936; pág. 152). Isso implica assumir que o futuro próximo será parecido com o presente e que a avaliação corrente do

120 A expressão pode ser entendida como capacidade de conversão de algo em moeda sem perda significativa de valor, ou

seja, liquidez. No texto em questão, o significado da expressão também envolve a noção de confiança dos agentes na equivalência entre depósito à vista e moeda.

121 A autora afirma que ―[…] moneyness (rather than any particular money asset) satisfies the conditions of non-rivalry-in- consumption and non-excludability-in-exchange‖ (Dow, 1996; pág. 698).

122 Wray (2000) afirma ainda que ―the State chooses the unit of account in which obligations to the state are denominated, it imports moneyness (or liquidity) to those things it accepts in payments, and it ensures all this by imposing money- denominated liabilities (for example, taxes)‖ (pág.6 ).

mercado é correta em relação ao conhecimento que os indivíduos têm dos fatos, assunção que se perpetua enquanto tal conhecimento não é alterado e enquanto perdura o estado de confiança naquela avaliação original123.

Esse comportamento convencional, na linguagem de Keynes (1936), embora não elimine a incerteza, permite aos agentes lidar com ela sem ignorar a possibilidade de que um evento tido como imprevisível possa ocorrer. No entanto, ao aceitar a possibilidade de eventos inesperados, os agentes estabelecem uma confiança limitada nas suas avaliações, o que torna as expectativas em geral sujeitas a mudanças repentinas conforme varia o grau de confiança nas convenções. O desejo (ou preferência) por liquidez dos agentes funciona na realidade como um parâmetro de seu grau de desconfiança nos próprios cálculos e convenções em relação ao futuro, sendo a mudança no estado das expectativas o elemento desencadeador da dinâmica instável que caracteriza o sistema econômico na abordagem keynesiana.

Com efeito, o crescimento da fragilidade financeira descrito por Minsky (1980, 1982, 1986) resulta de um processo endógeno de aumento generalizado da confiança na continuidade das condições vigentes durante as fases de prosperidade da economia que se manifesta na redução da preferência pela liquidez e dos riscos percebidos pelos agentes. O aumento dos compromissos financeiros estimulado por esse quadro é acompanhado da ampliação da vulnerabilidade das posições credoras e devedoras dos indivíduos e instituições ao longo do ciclo econômico e, por conseguinte, da maior suscetibilidade do sistema à reversão das expectativas. A crise que pode se seguir a essa fragilização financeira da economia é desencadeada exatamente por uma mudança no julgamento convencional sobre os valores dos ativos dos bancos e de outras instituições, financeiras ou não, na fase de declínio.

Essa dinâmica das expectativas determinadas por convenção também explica a instabilidade nos mercados de capitais provocada pelo fenômeno das ‗bolhas‘ nos preços dos ativos financeiros que, na visão keynesiana, acompanha o processo endógeno de aumento do estado de confiança dos agentes e desencadeia, nas fases de expansão do ciclo econômico, comportamentos especulativos e, consequentemente, preços artificialmente elevados, falsa abundância de liquidez e equilíbrio artificial dos balanços dos participantes do mercado contaminados por preços inflados. Trata-se da dinâmica especulativa descrita por Keynes (1936)124.

123 Importante lembrar que, segundo Keynes ―[o estado das expectativas], upon which our decisions are based, does not solely depend, therefore, on the most probable forecast we can make. It also depends on the confident with we make this forecast […]‖ (Keynes, 1936, pág. 148).

124 Segundo Keynes, na dinâmica especulativa, os investidores profissionais e os especuladores do mercado de capitais não

Importante ressaltar a interação que se estabelece entre os ciclos reais e financeiros nessa dinâmica de fragilidade. Da mesma forma que a valorização exagerada dos preços dos ativos no mercado de capitais e a forte expansão do crédito bancário e do endividamento alimentam a euforia dos agentes e impulsionam, endogenamente, o ritmo de crescimento econômico, a ruptura no setor financeiro fatalmente é transmitida para o resto da economia, podendo arrastá-la consigo para a crise. Na reversão do ciclo de prosperidade, a paralisia do sistema bancário pode contagiar toda a economia dada a sua importância na operacionalidade do sistema de pagamentos e na provisão de crédito e de liquidez. Ao mesmo tempo, a expansão do crédito para o financiamento da atividade produtiva é desviada para atividades improdutivas, num movimento de aquisição de ativos líquidos no mercado de capitais apenas com o objetivo de proteção (Dow,1996). Em razão desses efeitos negativos que a natureza instável do sistema financeiro não-neutro provoca sobre a economia real, a estabilidade financeira constitui, em si, um bem público (Carvalho e Kregel, 2010) e, como tal, justifica a atuação da regulação para buscá-la.

Para fins regulatórios, é importante apreender que, tal como ocorre com o moneyness, a regulação financeira conduzida pelo Estado também é justificada pela sua capacidade singular em promover a estabilidade num sistema intrinsecamente incerto e instável. Isso porque, assim como a moeda é parte fundamental dos processos econômicos, o Estado é essencial para a evolução estável das convenções e das instituições financeiras sob incerteza. De fato, quando amparadas pelo Estado, tais convenções criam elementos de estabilidade que auxiliam na tomada de decisão dos agentes (Dow, 1996); é o que ocorre, por exemplo, com a adoção da moeda, com o sistema legal e de contratos, com o uso dos depósitos como meio de pagamento, entre outros (Dymski, 2012; Oreiro, 2001a; Dow, 1993). Além de amparar as expectativas, a intervenção estatal via instrumentos regulatórios concorre para impor um comportamento mais prudente às instituições e aos investidores financeiros e, assim, promover a solidez num ambiente onde o incentivo natural é agir com imprudência.

Seguindo esse ângulo de análise, a regulação financeira estatal na abordagem keynesiana pode ser entendida como um componente quase inerente ao funcionamento do sistema financeiro. Moeda e Estado são construções sociais que caminham juntas, não passíveis de serem dissociadas sem o desmoronamento das balizas essenciais que sustentam a realização das trocas nas economias capitalistas. Isso torna o sistema financeiro também

valor que o mercado lhe atribuirá dentro de meses ou um ano (hoje poderiam ser dias, horas ou minutos) sob a influência da psicologia de massa. Esse comportamento seria a consequência inevitável de um sistema financeiro organizado em torno da liquidez (Keynes, 1936; pág. 154-5).

dependente do aparato estatal. Como discutido antes, na ausência do Estado, apenas as convenções não seriam capazes de suportar o caráter alavancado da atividade bancária, da mesma forma que o funcionamento normal dos mercados de capitais, na ausência de intervenções estatais contracíclicas, poderia levar a níveis de instabilidade insustentáveis para a economia e para a sociedade. Para garantir a estabilidade necessária para o funcionamento do sistema financeiro, são assim fundamentais a regulação e a supervisão, bancária e financeira, promovidas pelo Estado.

Sistema financeiro funcional como bem público

Na visão keynesiana, a avaliação sobre a conveniência da regulação financeira deve considerar não somente a ótica da eficiência alocativa, mas, como vimos, também a essencialidade do moneyness e da estabilidade para o próprio funcionamento do setor. Além disso, entre os teóricos da tradição keynesiana, o próprio significado de eficiência financeira assume conotação diferente da defendida pelo pensamento ortodoxo, e incorpora a preocupação com a funcionalidade do sistema. Um sistema funcional, segundo Studart (1995), é aquele capaz de promover o finance e gerar o funding no circuito do investimento, suportando um crescimento da economia real financeiramente estável sem aumentar a fragilidade financeira nos termos de Minsky. Nessa interpretação, a expansão sustentável e consistente da economia real depende do modo como o setor financeiro opera.

Assim definida, a funcionalidade do sistema também pode ser pensada como um bem público e, assim como a liquidez e a estabilidade, justificam a ação regulatória do Estado. Como explica Studart, nem a disponibilidade de finance nem a existência de mecanismos de

funding, ambos cruciais para o crescimento, podem ser asseguradas pelas forças simples da

livre concorrência, o que confere à regulação financeira estatal um papel decisivo na sua promoção.