• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 – Sistema financeiro na ortodoxia e na heterodoxia

1. Sistema financeiro na ortodoxia: passivo, neutro e estável

1.1. Sistema financeiro passivo e neutro

A intermediação simples e neutra de recursos entre agentes superavitários e deficitários pressuposta na TFE é realizada por um sistema financeiro igualmente neutro na ortodoxia. Isso significa que a conduta das instituições financeiras não afeta as condições e o volume de financiamento do investimento, nem as decisões de gasto dos agentes. Assim como a moeda é neutra, o sistema financeiro que a transaciona acompanha essa característica e, sendo neutros os agentes na intermediação financeira, não exercem influência sobre a determinação da taxa de juros, do produto e doemprego.Logo,não interferem nas condições de funcionamento da economia que permanecem determinadas unicamente por fatores reais.

Também no âmbito da TFE, o pressuposto da moeda exógena retira a possibilidade teórica de os bancos criarem de fato depósitos e, assim, aumentarem, de forma ativa, o volume de crédito sem lastro na poupança ou nos depósitos à vista pré-existentes. Isso porque, embora os bancos sejam concebidos como criadores de depósitos porque podem criar moeda via multiplicador bancário, o banco central é percebido como capaz de impedir ou controlar esse movimento já que o multiplicador bancário é visto como estável e previsível ou calculável, de modo que a autoridade monetária pode neutralizá-lo55. As instituições bancárias são, portanto, apreendidas como agentes passivos no sistema, recebendo depósitos conforme as preferências dos depositantes e os transferindo conforme as condições de demanda dos investidores, sem, no entanto, alterar as condições dessa intermediação ou emprestar além do montante que os depositantes lhes confiaram anteriormente56. Esse funcionamento das instituições financeiras enquanto intermediários passivos de recursos é apenas consistente

55 Agradeço a professora Maria de Lourdes R. Mollo por essa observação sobre a visão do multiplicador bancário na

ortodoxia.

56 Essa interpretação é baseada em Keynes (1930a), para quem a criação de depósitos pode ocorrer de duas formas, passiva

ou ativa. Na forma passiva, os depósitos surgem quando os agentes depositam seus recursos nos bancos de acordo com as suas próprias preferências, sem que os bancos possam influenciar no seu volume ou nos prazos da aplicação – são denominados de ‗depósitos primários‘. Na forma ativa, os bancos criam os chamados ‗depósitos derivados‘ quando, numa operação contábil, expandem seusativospormeiodeempréstimos ou financiamentos de investimento, adiantando recursos na forma de depósitos à vista não restritos ao montante de poupança ou depósitos recebidos anteriormente. Esses depósitos derivados, quando transferidos para outros bancos, são recebidos normalmente por eles como depósitos primários.

dentro de um paradigma que entende o investimento financiado somente por poupança prévia e a moeda como exógena.

Transferência de poupança prévia

O argumento da poupança prévia na ortodoxia, por preestabelecer os recursos financeiros disponíveis para suportar as despesas com investimento na economia, nos prazos e volumes por elas requeridos, não vê os bancos como criadores de moeda, ou depósitos, via crédito sem lastro nos passivos por eles anteriormente captados e, nesses termos, entende a moeda como necessariamente exógena. Nesse esquema analítico, o único papel possível do sistema financeiro é o de um agente passivo e neutro na canalização daquela poupança ex-

ante para o investimento, como descrito anteriormente.

Essa caracterização está na base da abordagem neoclássica da intermediação financeira descrita originalmente por Gurley e Shaw (1955), na qual os bancos, ao ―criarem depósitos‖, estão apenas intermediando a transferência de poupança das unidades superavitárias para as unidades deficitárias, o que estabelece um limite natural à escala das operações de crédito realizadas pelo setor. Mais especificamente, os bancos, com base na sua carteira de depósitos, atuam na concessão de empréstimos para as unidades deficitárias recebendo em contrapartida títulos de dívida que são substituídos por títulos de emissão própria nas negociações nos mercados secundários. Operando dessa forma, as instituições bancárias substituem os poupadores na tarefa de avaliar os riscos envolvidos no financiamento direto, promovendo a transferência eficiente dos recursos poupados previamente para as oportunidades de investimento produtivo, porém, sem alterar as características básicas da intermediação financeira direta57.

O equilíbrio competitivo da atividade bancária ocorre no ponto em que o tamanho das suas operações ativas, dependente da demanda por empréstimos (presumidamente) para investimento no setor produtivo, se iguala ao seu passivo, constituído pelos depósitos dos poupadores que, na essência, refletem as preferências do público, respeitada a sua restrição orçamentária. Com isso, a exploração das oportunidades de aplicação dos recursos pelos bancos é restringida pela disponibilidade de depósitos prévios, o que torna os balanços

57 Importante lembrar que essa intermediação pode ocorrer de forma direta, com as unidades superavitárias adquirindo

diretamente os títulos emitidos pelas unidades deficitárias no mercado, ou indireta, com a participação de instituições financeiras, por exemplo, bancos, na recepção dos recursos das unidades superavitárias e, posteriormente, na comercialização de ativos financeiros no mercado de capitais, efetivando a transferência para as unidades deficitárias.

bancários resultado somente das decisões dos agentes depositantes58 e dos demandantes de recursos, ou seja, condicionados unicamente por fatores reais exógenos àquelas instituições. As palavras de Fama (1980) são bem ilustrativas dessa abordagem que exalta a passividade e a neutralidade da intermediação financeira:

[...] the portfolio management decision of the entire banking sector are of no consequence. (...) the banking sector is at most a passive force in the determination of prices and real and real activity‖ (Fama, 1980; pág. 45). ―Since banks just respond to tastes and opportunities of demanders and suppliers of portfolio assets, banks are simple intermediaries, and the role of a

competitive banking sector in equilibrium is passive (Idem, pág. 46).

O caráter passivo do sistema financeiro se mantém mesmo quando, com a introdução nosmodelosdafiguradomultiplicadorbancário,émaisdifícil justificá-lo. Isso foi observado criticamente por Tobin (1987), que definiu os bancos como criadores ‗quase técnicos‘ de moeda. Analisando o que ele chamou de ‗velha visão‘ da firma bancária neoclássica, o autor identifica na concepção do multiplicador a melhor descrição de um processo autônomo de criação de moeda comandado em última instância pela autoridade monetária. Isso porque, nessa concepção, o volume de depósitos à vista, ou a quantia de recursos monetários que o sistema bancário pode emprestar, é definido como função da variação do nível de reservas bancárias que está sujeito a frações de retenção exigidas pela autoridade monetária. Assim, ainda que os bancos sejam capazes de criar moeda sob a forma de depósitos à vista, a autoridade monetária controla efetivamente a oferta ao definir os percentuais mínimos de reserva a serem mantidos obrigatoriamente pelos bancos, conferindo-lhes apenas a função de meros ajustadores passivos das suas operações a uma dada exigência de reserva.

Contudo, a visão de instituições financeiras cumprindo um papel neutro e passivo nas economias não é alterada na chamada ‗nova visão‘ da atividade bancária neoclássica definida por Tobin, que incorpora o comportamento das instituições descrito pela teoria tobiana da seleção de portfólio (Tobin, 1958) a uma lógica de gerenciamento dos balanços bancários por meio da escolha de ativos e passivos com o intuito de redução dos riscos de liquidez e de maximização das receitas. Assim como ocorre na teoria da seleção de portfólio, as escolhas de composição ótima dos balanços bancários ocorrem em um ambiente de moeda exógena e de riscos quantificáveis, portanto, de ausência de incerteza do tipo keynesiana, o que deixa as características da função bancária neste caso muito próximas às da intermediação de recursos da visão anterior. Segundo Paula (2011), essa nova visão dos bancos inaugurada por Tobin, base dos modelos neoclássicos posteriores da firma bancária, por certo traz avanços em

58 Parte-se do pressuposto de que o volume de depósitos nos bancos é função das decisões de alocação intertemporal da

relação ao enfoque mecanicista da visão antiga, porém, não abandona a assunção básica da intermediação financeira neutra e passiva dessa última.

Assim, em que pese o grau de sofisticação desses modelos neoclássicos, as soluções de equilíbrio por eles alcançadas permanecem restritas ao possível dentro de um sistema neutro e passivo. Fama (1980) descreve habilmente o papel dos bancos como simples gerenciadores de portfólio nesse sistema:

The basic constraints on portfolio opportunities are defined by the real production-investment decisions of firms. The way they are refinanced by intermediaries, including banks, neither expands nor contracts the set of portfolio opportunities available to investor. In this world, banks hold portfolio on behalf of their depositors because this probably allows them to provide transaction services (the accounting system of exchange) more efficiently, but portfolio management activities of banks affect nothing, including prices and real activities (Fama, 1980; pág. 46).

Uma consequência lógica dessa neutralidade do sistema financeiro é a insignificância da sua estrutura na literatura financeira de cunho ortodoxo. No ‗princípio da irrelevância da estrutura de capital‘ de Modigliani e Miller (1958) tem-se implícita a noção de que a forma de financiamento das firmas, seja por emissão direta de títulos, característica dos sistemas estruturados em torno dos mercados de capitais, seja por meio de empréstimos indiretos, próprios dos sistemas baseados no crédito bancário, não altera o valor de mercado das companhias, ou seja, não impacta o preço na economia real. Mais recentemente, essa visão é observada no âmbito do debate sobre qual dessas duas formas59 é a mais adequada para apoiar a dinâmica das economias, e na inclinação dos teóricos em aceitar a chamada visão de serviços financeiros (financial services view), que minimiza a importância da distinção entre as diferentes estruturas do sistema ao defender que a disponibilidade de serviços financeiros é, de longe, mais importante que a forma em que são entregues (Arestis, 2006).

Avançando ainda mais explicitamente nessa ideia da neutralidade dos fatores financeiros, Allen (2001) afirmou existir uma visão amplamente aceita entre acadêmicos de que os intermediários financeiros, em razão de não produzirem efeitos reais na economia, podem até mesmo ser ignorados. Tais intermediários seriam vistos por esses acadêmicos como um véu, cujo comportamento não afeta os preços dos ativos ou a alocação dos recursos. Essa interpretação reproduz as condições teóricas da troca direta em mercados perfeitos, onde

59 Os dois modelos mencionados remetem à taxonomia popularizada por Zysman (1983) que dividiu a estrutura dos

sistemas financeiros em dois grandes tipos: o sistema financeiro com base no mercado de capitais (capital market-based

system) e o sistema financeiro com base no crédito bancário (credit-based financial system). No primeiro tipo, observa-se

a maior participação de instrumentos diretos de financiamento de longo prazo (emissão de títulos de dívida e ações) e de outros instrumentos financeiros diversificados negociados em mercados de capitais organizados. Já no segundo tipo, verifica-se o predomínio do financiamento direto via crédito bancário como principal fonte de financiamento na economia.

as instituições não influenciam a precificação dos ativos e têm, portanto, um papel residual. Nas palavras do autor:

[...] However, such lay people might be surprised to learn that institutions play little role in financial theory. Last year‘s Papers and Proceedings issue of Journal of Finance contained excellent survey of asset pricing, continuous time finance, and corporate finance […]. Financial institutions were only mentioned in passing, usually to say that they would be ignored.

The absence of financial institutions is particularly marked in the field of asset pricing, both in its discrete and continuous time forms. Risk-averse investors use their funds to buy financial assets directly in markets. The focus is on the relationship between risk and return. The justification for ignoring financial institutions is that they are a veil and have no real effect (Allen, 2001; pág. 1.166).

As ideias discutidas até aqui em que se baseiaoidealdeinstituiçõesfinanceiras vistas como neutras e passivas e o raciocínio de que podem ser ignoradas na análise econômica60 trazem duas dificuldades para os teóricos da ortodoxia. Primeiro, a de especificar o processo de determinação dos preços dos ativos transacionados enquanto sinalizadores eficientes do destino da poupança prévia. Segundo, a de explicar a existência das próprias instituições financeiras e a sua funcionalidade numa realidade de equilíbrio estável. Essas questões norteiam as discussões adiante.