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5.2 EPIDEMIOLOGIA: A CONSTRUÇÃO DO OBJETO PARA

5.2.2 A teoria da determinação social do processo saúde-

Nas diferentes escolas de interpretação epidemiológica o objeto é a "saúde-doença coletiva" que integra "dialeticamente o social e o natural", processo complexo que não pode ser reproduzido em laboratório ou em cálculos devido à sua relação com as forças sociais do contexto e a manipulação ideológica. A epidemiologia é uma ciência que interpreta e sustenta a causa de problemas sensíveis que afetam à população. No entanto, o conhecimento construído por ela pode ser utilizado para explicar a doença como um fenômeno individual e descontextualizado atendendo ao interesse da classe hegemônica que explora a força de trabalho e deteriora a qualidade de vida da maioria da população (Breilh, 1990).

Ao compreender a determinação social do processo saúde-doença busca-se reconhecer quais são os processos de produção e consumo daquela sociedade em determinado tempo histórico e que são determinantes nas formas de viver dos diferentes grupos sociais que ali se encontram, definindo os potenciais de fortalecimento e de desgaste da saúde expressos no processo saúde-doença, individualmente ou coletivamente. A historicidade do processo saúde-doença para Laurell (1983) é expressa em estudos que comprovam como tal processo ocorre nas coletividades humanas e não em casos clínicos individuais, pois é na coletividade que se percebe o desgaste do indivíduo pela sua inserção na produção, em determinada sociedade, em um determinado tempo.

A preocupação de Ayres (1997) na adoção da racionalidade epide- miológica apoiada no referencial da práxis científica é que esta pode levar à compreensão de que as relações se estabelecerão pela racionalidade da produção/re-produção social, esquecendo que nessas mesmas relações existe o caráter abstrato da epistemologia lógico-formal – intersubjetividade. O autor, baseado em Habermas, refere que:

[...] um tratamento que desconsidere as relações trabalho/interação tenderá a oscilar entre duas alternativas igualmente insatisfatórias: ou toma a racionalidade da ciência como necessariamente associada a uma dada direção produtiva ou, inversamente, como agregado de princípios e conceitos que se organiza casualmente em torno de tais finalidades. Só assim seria plenamente pertinente a autonomia de uma "lógica da produção" como referência última, absoluta. Uma alternativa mais adequada [...] será apreender a práxis científica, assim como qualquer ação racional, como a resultante (aparentemente) una de construções (necessariamente) múltiplas de sujeitos diversos, portadores de diferentes projetos de mundo e poderes no mundo, em contínua e imprescindível interação material e simbólica. Em suma, nem determinismo material absoluto, nem espontaneidade relativista: a razão deve ser procurada (e, de preferência encontrada) na unidade produzida e produtiva na multiplicidade das "vozes" socialmente constituídas [...] (Ayres, 1997, p.31-2, grifos do autor).

Assim, para compreender o processo saúde-doença do indivíduo, deve-se ir além de dados que o caracterize pessoalmente e no seu grupo familiar, buscando-se também compreender a sua história e o significado das questões para o sujeito e as determinações da realidade observada nas suas diferentes dimensões. Portanto, considerando que a abordagem epidemiológica é definidora do modelo de assistência a ser implantado, acredita-se que compreender o indivíduo na sua totalidade é central para a definição da assistência integral, na qual se considera a transformação da realidade, assim como de sua determinação.

A partir de uma óptica progressista, pode-se asseverar que uma das lições hoje aprendidas por nós, cientistas de consciência crítica que trabalhamos no campo da saúde coletiva e da epidemiologia, é que nosso maior desafio, no momento atual, é o de aperfeiçoar nossa 'consciência objetiva' acerca dos novos problemas de uma realidade muito complexa e caracterizada por uma espiral de 'iniqüidade' crescente, mas fazê-lo trabalhando simultaneamente em prol de uma 'consciência da subjetividade' como ferramenta do impulso coletivo. E então, assim como reconhecemos a necessidade de incorporar no paradigma contra-hegemônico, de maneira mais rigorosa, toda a complexidade da realidade e as relações de produção- propriedade e de poder, como condições 'objetivas' da materialidade social que determinam a saúde, começamos também a entender melhor a importância de trabalhar o tema da 'subjetividade social' como chaves para fortalecer o sujeito da ação, integrando forças e culturas contra-hegemônicas e construindo um poder simbólico e alternativo, sem o que é impossível sustentar um avanço emancipador (Breilh, 2006, p.24-5).

A diferença entre linhas teóricas explicativas do processo saúde- doença é que, mesmo nas teorias com base positivistas, o fenômeno é compreendido na realidade observada, mas a questão é que nestas linhas, apesar da realidade ser explorada nas diferentes dimensões – estrutural, particular e singular –, não se evidenciam as contradições que existem entre as dimensões da realidade objetiva, assim como as contradições na própria dimensão. As explicações tendem a tomar a realidade a partir do concreto observado explicando-a por meio dos fatores que a determinam. Logo, para intervir nos problemas de saúde, opta-se pela seleção do fator de maior peso (unicausalidade) ou por mais de um fator que caracteriza um conjunto de determinantes de maior peso (multicausalidade). Neste caso retorna-se à redução do pensamento para compreender tal realidade, pois não há compreensão sobre a participação dos processos de determinação do processo saúde-doença, ainda que este ocorra de forma articulada e hierarquizada (Breilh, 2006; Barata, 2005).

Os estudos com referencial da epidemiologia social desenvolvidos na América Latina para compreender a determinação do processo saúde- doença têm utilizado a categoria de classe social como conceito básico, porém Breilh (2006) reflete que esta categoria não contempla outros processos que determinam as inequidades sociais dessas realidades. Para o autor, as relações de poder nas sociedades latino-americanas são estruturadas pelas categorias: classe social, gênero e etnia. Logo, para compreender a determinação dos processos de inequidades sociais há que se perceber a determinação dos processos de concentração de poder nas sociedades que estão relacionados a estas três categorias. Destaca a categoria gênero como a que antecede as outras duas nas relações de poder na sociedade, que se originou da apropriação privada de riqueza por grupos étnicos que se encontravam estrategicamente em vantagem no momento histórico. Nesse sentido conceitua inequidade como:

A 'ineqüidade' é uma categoria analítica que dá conta da essência do problema, ao passo que a 'desigualdade' é uma evidência empírica que se torna ostensiva nos conjuntos estatísticos, para cuja compreensão adequada é preciso desvendar a ineqüidade que a produz. A desigualdade é uma injustiça ou iniqüidade (com

'i') no acesso, na exclusão produzida com respeito à fruição, uma disparidade na qualidade de vida, ao passo que a ineqüidade (com 'e') é a falta de equidade, ou seja, é a característica inerente a uma sociedade que impede o bem comum e instaura a invisibilidade de uma distribuição humana que outorgue a cada um conforme sua necessidade, e lhe permita contribuir plenamente conforme sua capacidade (Breilh, 2006, p.210-1).

A expressão dessas relações de poder pode ser identificada nas classes sociais nas sociedades, pois estas conformam os indivíduos em grupos homogêneos que estão alocados em determinadas posições sociais de acordo com a dinâmica e historicidade do contexto em que vivem. Barata (2005, p.15) afirma que "[...] pessoas com determinada renda não são alocadas aleatoriamente em determinadas posições sociais, mas chegam a elas através de trajetórias dinâmicas de vida moldadas pelo contexto no qual vivem [...]". E ainda que em estudos nos quais se abordam a realidade como algo complexo, composto de partes isoláveis que são possíveis de serem decompostas para se perceber a ação específica de cada parte no fenômeno observado, há um engano, pois desse modo recairiam no conceito de causalidade. Ao contrário, no conceito de determinação social os processos sociais não necessitam isolar completamente as variáveis envolvidas e "[...] a maioria das relações são contingentes [...] nem necessárias nem suficientes em si mesmas".

Samaja (2003) defende a construção de um modelo explicativo para a epidemiologia que permita explorar a dinâmica da realidade por meio da perspectiva dialética sobre as relações das populações com o meio ambiente, uma proposta que busca aproximar os conhecimentos da geografia marxista com a determinação social do processo saúde-doença. Afirma que tanto a epidemiologia como a geografia têm como esforço pensar histórica e concretamente a existência humana em sua totalidade, em um determinado espaço. O espaço, no caso território, é definido pelo autor baseado no referencial de Milton Santos, geógrafo brasileiro que defende a reintrodução do sujeito nos espaços e nos objetos da geografia, uma vez que este vem sendo desconhecido no movimento de globalização da economia. Nesse movimento identifica o afastamento da visão crítica dos conhecimentos desenvolvidos em disciplinas científicas, pois isso influencia o desenvolvimento de pesquisas,

tornando-as puramente pragmáticas no sentido de atender aos interesses de instituições financiadoras em detrimento do interesse da população em geral.

Para contrapor esse pensamento e para atender ao interesse da população, deveriam ser desenvolvidos estudos baseados na epidemiologia crítica e estes deveriam ser utilizados para a organização dos serviços de saúde. Nesse sentido, as intervenções e a implementação de políticas no setor buscariam reverter a determinação do processo saúde-doença identificado em diferentes grupos. Fundamentados na proposta teórica da Epidemiologia Crítica e dos princípios do Sistema Único de Saúde, o Planejamento em Saúde permitiria, a partir da realidade encontrada, intervir para transformar as situações indesejáveis com ações intersetoriais acessíveis por meio de um sistema de saúde de fato universal e equânime, o que significa mudar o enfoque no risco de desenvolver doenças e agravos do atual modelo assistencial que privilegia ações curativistas e individuais, para um modelo que identifique os processos de determinação do processo saúde doença, assim como da vida em determinados territórios.

Para Breilh (2006), esses processos, individuais ou coletivos, podem ter facetas que são consideradas como benéficas/protetoras (saudáveis) ou destrutivas/deteriorantes (insalubres) para a vida em uma determinada sociedade. E ainda que "[...] pode corresponder a diferentes dimensões e campos da reprodução social e pode, além disso, tornar-se protetor ou destrutivo, conforme as condições históricas em que se desenvolva a coletividade correspondente" ( p.203).

As facetas protetoras ou deteriorantes estão juntas no mesmo processo e muitas vezes estão invisíveis na realidade. A invisibilidade ocorre porque uma das facetas pode estar atenuada ou dominada em um determinado momento na realidade. Para a epidemiologia, é necessário reconhecer qual faceta do processo predomina no modo de vida de uma formação social porque esta é determinante para a saúde e para a definição da ação que será desenvolvida. A ação para evitar ou se contrapor a processos destrutivos é de prevenção de adoecimentos e a ação para fomentar as facetas protetoras é de promoção da saúde. A epidemiologia atua com processos e

por isso muitas vezes promove mudanças profundas sem necessariamente atuar com as pessoas por intervir na determinação-chave da saúde.

A epidemiologia empírica e o paradigma dos fatores de risco, ao reduzirem a realidade ao plano empírico, ao deterem o movimento e ao fracionarem essa realidade, ficam inaptos a conhecer o movimento da determinação e a ligação dos processos com a vida social em seu conjunto, e tanto uma limitação quanto a outra têm conseqüências importantes na atividade epidemiológica. O fato de não se permitir a compreensão da gênese dos processos e de se ficar reduzido aos fenômenos 'terminais' é um grave obstáculo [...] o fato de não se articularem diagnósticos que integrem as determinações de saúde leva a uma lógica da focalização que contradiz uma visão da saúde coletiva como âmbito de emancipador (Breilh, 2006, p.205).

5.3 SERVIÇOS DE SAÚDE: PLANEJAMENTO E PROGRAMAÇÃO