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1. AS BASES NACIONAIS

1.2 O MOVIMENTO ARMORIAL

1.2.5 A Terra, o Homem a Literatura

Pelos mundos nossa lenda. Mesmo que nunca se aprenda. Eu te ensino a fazer renda. Que mais posso te ensinar. Eu que não porto outra prenda. Que só sei dar vida à trama vã.

Caetano Veloso 1.2.5.1 Nordeste e o DeSertão, continente do armorial?

L‟Antiquité, on la dit, est chose nouvelle

Sainte-Beuve

O Sertão, com sua terra áspera e sua civilização fechada, com sua Cavalaria do Cangaço vestida de “armaduras de couro”, seus casos de honra e suas rebeliões, sempre exerceu sedução sobre alguns dos melhores espíritos [...]

Ariano Suassuna

Para alcançar plenamente o sertão brasileiro, esse que Ariano Suassuna escolhe para palco e personagem de sua literatura, parece válido retomar fatos da história sócio-política do país que sobre ele lança luzes. Em seu projeto artístico, Suassuna, e com ele, os artistas do Movimento Armorial, penetram essa terra em busca de raízes e dela emergem com os elementos que incorporam ao seu fazer artístico, sintonizado com a essência de seu tempo.

Até finais do século XIX, o Brasil mantinha uma divisão simplificada pela antinomia Norte e Sul. Espaços erigidos em torno de um discurso de diferenças e de um desconhecimento mútuo que excluía a ideia de unidade nacional, discurso plenamente motivado pelas leis cientificistas do determinismo e pela sociologia vigente que movia a pena de homens ilustres e eruditos de ambas as regiões. Entre eles, nordestinos como Silvio Romero, de Pernambuco e Capistrano de Abreu, do Ceará.

À medida que surgiam os fatores que motivavam um projeto de reconhecimento e de autorreconhecimento nacionais, acentuava-se ainda mais esse sentimento de estranhamento interno no país. Ao pensar a identidade nacional, as distintas populações assumiam que eram os seus, os costumes representativos desta nacionalidade e viam nos costumes alheios meras manifestações regionais, estranhas e diferentes do padrão cultural desejado para a nação. Com respeito às sub-regiões, tais como o sertão, no contexto do

Nordeste, o desconhecimento assumia proporções ainda maiores. Esse estranhamento foi responsável não apenas por divergências ideológicas profundas, mas conduziu o país a lutas inglórias, entre as quais, seu maior e mais cruento conflito armado: a Guerra de Canudos.

No final do século XIX, o discurso predominante e mais audível, dada a superioridade econômica do Sul sobre o Norte, ancorava-se fortemente nas teorias deterministas que reconheciam na ―pureza‖ da população sulista um índice de superioridade racial sobre a população ―mestiça‖ predominante no Norte. Através desse discurso de superioridade surgirá, paradoxalmente, um novo discurso, no âmbito da política. Desta vez, de desfavorecimento, um discurso reivindicatório feito pelas regiões do ―Norte‖.

Enfrentando os problemas resultantes das secas periódicas, e em especial, a partir da grande seca de 1877, o ―Norte‖ começaria a exigir recursos financeiros compensatórios ao país, para a construção de obras e a criação de órgãos e cargos públicos. Será por conta desses processos, conforme comenta Durval Muniz de Albuquerque Jr., que se dá a ―transferência de poder de uma área para outra‖ (2006, p. 59). Albuquerque Jr. aponta a seca e os fenômenos do cangaço e do messianismo a ela vinculados, direta ou indiretamente, como elementos construtores da imagem que se forma, a partir de então, dessa região específica que começa a se delinear dentro do recorte dualista anterior:

O discurso da seca, traçando ―quadros de horrores‖, vai ser um dos responsáveis pela progressiva unificação dos interesses regionais e um detonador das práticas políticas e econômicas que envolvem todos ―os Estados sujeitos a esse fenômeno climático‖. A descrição das ―misérias e horrores do flagelo‖ tenta compor a imagem de uma região ―abandonada, marginalizada pelos poderes públicos‖. [...] O cangaço e o messianismo, lidos pejorativamente tanto por ―nortistas‖ como por ―sulistas‖, surgem, no discurso da seca, ligados a esse fenômeno, tornando-se mais um argumento a favor dos ―investimentos e da modernização no Norte‖. (ALBUQUERQUE JR., 2006, p. 59).

O Nordeste começava a ter uma fisionomia própria traçada através de uma complexa teia de fatores, das mais diversas naturezas: antropológicos, sociais, religiosos, políticos. A região configurar-se-ia dentro do recorte maior

do Norte, na segunda década do século passado, como área sujeita ao fenômeno das estiagens constantes.

Embora se possam divisar claramente algumas imagens persistentes, outras serão reelaboradas, bem como o serão alguns enunciados construídos sobre o antigo Norte. Esta revisão de imagens e enunciados dar- se-á, primeiro sob o prisma do determinismo naturalista-positivista e, depois, por um determinismo culturalista, devido à crise dos paradigmas anteriores, vigentes até então.

Quanto à concepção do próprio nordestino sobre sua região, sabe- se que essa autonomia fisionômica logo se ancora numa ―tradição de pensamento, (n)uma imagística e (em) textos que lhe deram realidade e presença‖. (ALBUQUERQUE JR., 2006, p. 66). A literatura regionalista, na esteira do naturalismo do século XIX, dá notoriedade à região e ao seu ―ciclo das secas‖. Este será um tema comum que reúne um importante contingente de autores, díspares em sua expressão, do panorama nacional da literatura. Ligado a uma ética e a uma estética muito próprias, o Nordeste alcança um protagonismo inédito nesse panorama.

A realidade do Nordeste transformou-se muito nas últimas décadas, apesar da imutabilidade dos aspectos constitutivos de diversas de suas geografias (botânica, física, histórica...). E foi esse perfil natural da região que representou um fator decisivo para delinear também as diferenças culturais internas, pressentidas e destacadas ao longo do tempo por alguns autores, a despeito do predomínio de estereótipos uniformizantes, concebidos externo e internamente.

Considerando-se que na Região, como um todo, as condições climáticas foram fundamentais no curso de seu desenvolvimento, não será difícil entender que existam diferenças significativas entre suas diversas sub- regiões. A região da Zona da Mata, por exemplo, foi, desde os começos da colonização, responsável pelo incremento do povoamento do Nordeste e por seu desenvolvimento. Assim, ela é a sub-região mais povoada e a que conta com a população mais antiga e a mais urbanizada. No passado, a Zona da Mata abrigou a cultura açucareira, responsável por lhe dar um perfil específico, diferenciado com respeito, por exemplo, às regiões do agreste, do polígono das secas e do sertão. Estas, segundo Djacir Menezes, poderiam ser definidas

unicamente como sertão nordestino, ou, ―o outro Nordeste‖, expressão que ele cunhou e que nomeou sua obra, lançada em 1937. A falta de água nestas regiões está estampada em suas características físicas, humanas, econômicas e culturais.

A região do sertão com seu clima semiárido, tropical, seco, chuvas irregulares e escassas, cobre uma área extensa de clima semiárido que abarca vários estados nordestinos. Diferente da região litorânea, o sertão chega, no entanto, até o litoral, nos estados do Rio Grande do Norte e do Ceará. Seu solo raso e pedregoso e a escassez e má distribuição de chuvas limitam fortemente as atividades agrícolas e definem a caatinga como sua vegetação típica. Da adversidade do solo, o reconhecimento do que ele pode oferecer, direciona o habitante local à busca dos seus tesouros secretos. O cactus esconde água sobre seus espinhos, e nas partes mais úmidas, existem bosques de carnaubeiras, palmeira da qual tudo é aproveitado, por isso é chamada pelos sertanejos de ―árvore da providência‖. A árvore é benfazeja, como o é o Rio São Francisco, maior da região e única fonte perene de água para as populações ribeirinhas. Isso explica, não apenas a dimensão econômica deste rio, mas sua enorme dimensão simbólica. O São Francisco, ou velho Chico, como é apelidado, é um oásis no sertão. O rio é um dos grandes responsáveis, juntamente com os anos de bom inverno, pela transmutação apoteótica a que se referiu Euclides em Os sertões (1902). surpreso ao constatar que, ao cabo do período de estiagem, ocorre uma impressionante transformação da paisagem agreste, pinta-a de insuspeitado e surpreendente verde.

Há no sertão nordestino uma tradição pecuária e uma algodoeira que representam seus pilares econômicos. Essa tradição teve sua origem há muito tempo atrás. Sua época áurea foi chamada de civilização do couro, designativo que marca toda uma época em que a região tornou-se relativamente produtiva. Segundo o historiador cearense Capistrano de Abreu, que cunhou o termo e seu significado histórico, o futuro promissor do vale do São Francisco seria traço de união entre Norte e Sul. O autor cearense foi o primeiro a levar em consideração os fatores naturais para explicar os

fenômenos sociais62. Capistrano, cujo estudo sobre a ―civilização do couro‖ tornou-se célebre nos meios intelectuais da época, registrou:

[...] De couro era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, e mais tarde a cama para os partos; de couro todas as cordas, a borracha para carregar água; o mocó ou alforje para levar comida, a mala para guardar roupa, mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo em viagem, as bainhas de faca, as bruacas e surrões, a roupa de entrar no mato, os banguês para curtume ou para apurar sal; para os açudes, o material de aterro era levado em couros puxados por juntas de bois que calcavam a terra com seu peso; em couro pisava-se tabaco para o nariz. (ABREU, 1954, p. 149).

Além do São Francisco, o sertão tem muitos outros rios cujos baixos índices pluviométricos acabam transformando em rios temporários. Estes secam completamente durante a estiagem, deixando apenas uma fina areia lavada, como marca. O aspecto físico da Região nestes períodos, como já descreveu (e desenhou)63 Euclides, é o de ―uma paragem impressionadora‖. (CUNHA, 1982, p. 13). O sertão transforma-se em um deserto de estranhas catedrais soterranhas (locas, saliências, cavernas e extensos lajedos) que dominam a paisagem. Suassuna, que tem em Euclides um mestre, introduz essa visão ao leitor, transmudada na fala de Quaderna, narrador d‘ A Pedra do

Reino:

Daqui de cima, no pavimento superior, pela janela gradeada da Cadeia onde estou preso, vejo os arredores da nossa indomável Vila sertaneja. O Sol treme na vista, reluzindo nas pedras mais próximas. Da terra agreste, espinhenta e pedregosa, batida pelo Sol esbraseado, parece desprender-se um sopro ardente, que tanto pode ser o arquejo de gerações e gerações de Cangaceiros, de rudes Beatos e Profetas, assassinados durante anos e anos entre essas pedras selvagens, como pode ser a respiração dessa Fera estranha, a Terra - esta Onça-Parda em cujo dorso habita a Raça piolhosa dos homens. Pode ser, também, a respiração fogosa dessa outra Fera, a Divindade, Onça-Malhada que é dona da Parda, e que, há milênios, acicata a nossa Raça, puxando-a para o alto, para o Reino e para o Sol.[...] Daqui de cima, porém, o que vejo agora é a tripla face, de

62 Para expandir o tema, cf. GOMES DE MATOS, 2006, p. 223.

63 Em sua caderneta de anotações de campo, sob a guarda do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, Euclides da Cunha desenha o relevo dos terrenos, suas características físicas e detém na paisagem do Cambaio, onde detalha a formação rochosa. Esses desenhos foram reproduzidos na edição de 1982, da editora Francisco Alves, da página XIX à XXIII.

Paraíso, Purgatório e Inferno, do Sertão. Para os lados do poente, longe, azulada pela distância, a Serra do Pico, com a enorme e altíssima pedra que lhe dá nome. Perto, no leito seco do Rio Taperoá, cuja areia é cheia de cristais despedaçados que faíscam ao Sol, grandes Cajueiros, com seus frutos vermelhos e cor de ouro. Para o outro lado, o do nascente, o da estrada de Campina Grande e Estaca-Zero, vejo pedaços esparsos e agrestes de tabuleiro, cobertos de Marmeleiros secos e Xiquexiques. Finalmente, para os lados do norte, vejo pedras, lajedos e serrotes, cercando a nossa Vila e cercados eles mesmos por Favelas espinhentas e Urtigas, parecendo enormes Lagartos cinzentos, malhados de negro e ferrugem, Lagartos venenosos, adormecidos, estirados ao Sol o abrigando Cobras, Gaviões e outros bichos ligados à crueldade da Onça do Mundo.[...] Aí, talvez por causa da situação em que me encontro, preso na Cadeia, o Sertão, sob o Sol fagulhante do meio-dia, me aparece, ele todo, como uma enorme Cadeia, dentro da qual, entre muralhas de serras pedregosas que lhe servissem de muro inexpugnável a apertar suas fronteiras, estivéssemos todos nós, aprisionados e acusados, aguardando as decisões da justiça, sendo que, a qualquer momento, a Onça-Malhada do Divino pode se precipitar sobre nós, para nos sangrar, ungir e consagrar pela destruição. (SUASSUNA, 2005, p. 31-32).

A entranhável relação do sertanejo com sua terra, muitas vezes, não foi compreendida pelo resto do país. O homem, a fauna e a flora se adaptaram à realidade da escassez de água da região, mas não necessariamente de forma resignada. Essa adaptação desafia nos homens a engenhosidade e a tenacidade, nas plantas e animais, a resistência. Esse apego e bem-querer se transformam em ―código de cidadania‖, mas também em imagens literárias, em textos populares e eruditos, e em mote poético: ―enquanto a minha vaquinha, tiver o couro e o osso, e puder com o chocalho, pendurado no pescoço, eu vou ficando por aqui, que Deus do céu me ajude [...] só deixo o meu Cariri, no último pau-de-arara‖ (CORUMBA, VENANCIO, GUIMARÃES, 1958)64.

Traduzido às vezes como saudade da terra, esse sentimento é cantado pelo poeta popular cearense Patativa do Assaré em sua poesia Triste Partida:

Trabaia dois ano, Três ano e mais ano E sempre nos prano De um dia vortar

64 Os versos pertencem à canção Último pau de arara, composta em 1958 por José

Guimarães, Corumba e Venâncio, e consagrada na interpretação do compositor, cantor e acordeonista Luis Gonzaga.

Mas nunca ele pode Só vive devendo E assim vai sofrendo É sofrer sem parar Se arguma notíça Das banda do norte Tem ele por sorte O gosto de ouvir Lhe bate no peito Saudade de móio E as água nos óio Começa a cair Do mundo afastado Ali vive preso Sofrendo desprezo Devendo ao patrão O tempo rolando Vai dia e vem dia E aquela famia Não vorta mais não Distante da terra Tão seca mas boa Exposto à garoa A lama e o paú Faz pena o nortista Tão forte, tão bravo Viver como escravo No Norte e no Sul.

(PATATIVA DO ASSARÉ, 2006, p. 9-13).

Sob a realidade aparente da região sertaneja subjaz uma espessa camada de superposições histórico-culturais que amalgamadas esculpem um perfil mais ou menos homogêneo num país heterogêneo. O resultado dessa síntese amalgamatícia define a terra e o habitante do sertão. Mesmo quando se transforma em retirante, o sertanejo - nômade obrigatório pela falta de chuva, pelo estio que o expulsa de sua terra - guarda os traços que o identificam em meio às distintas populações. Se precisar migrar para subsistir em terra alheia, ele acalenta o sonho promissor de inverno farto para voltar a sua terra. Enquanto isso, parece levar consigo o sertão no pó da chinela e na cara. O sertão se espalha também nas cantigas e ladainhas que desfia nas intermináveis viagens em paus de arara, nos cordéis que viajam amarrotados na trocha de pano ou na memória, que no seu dizer, é recitação de cor.

Esse Nordeste, e nele o sertão, em particular, condena muitas vezes seu habitante ao êxodo involuntário e o arremete nas estradas e nos caminhos do não-lugar. É também uma região que marca seu habitante, atrelado por um viver, de certa forma, anacrônico, quando confrontado com as grandes cidades, o litoral e até o interior das localidades mais desenvolvidas da Região. A Cultura do sertão manifesta-se através de sua arte popular e encontra, especialmente, no cordel e na xilogravura, mas também na música desfiada por instrumentos primitivos, nas danças e nas vestimentas de seus cortejos, autos e festas, nas formas simples de uma arquitetura e esculturas pobres, seu suporte mais prestimoso, plasmação de sua criação, para dizer-se, para contar-se e mostrar-se. O sertão, definitivamente, é armoriável.

Pelo estranhamento ou pela familiaridade, essa região impressiona. A arte é prontamente seduzida pela paisagem física e humana desse estranho deserto (tornado oásis, quando o inverno vem e é bom!), incrustado entre vales, florestas, montanhas e mares do Brasil. Com sua áspera pobreza, seu monocromatismo, a gagueira de seus habitantes - avessos ao excesso de palavras - donos de um silêncio, na mais das vezes, realçado pela opulência sonora dos pássaros, o sertão converteu-se em espaço mítico da literatura, ao longo do século passado. Tornou-se terra de sedução e de rechaço, de estranhamento e da memória, da letra e da voz; fez-se sertão do destempo.

Se a historiografia guarda lacunas sobre o sertão – e menos lacunosa se mostra sobre o litoral –, a literatura, em contraponto, lança-lhe um olhar atento. Muitos autores se debruçam sobre os conflitos e a história do sertão remontando até o seu período colonial. Ronaldo Correia Brito recupera um pedaço dessa história, direcionando para a literatura sua mirada, fala do isolamento duradouro do sertão que justificou a permanência de seus hábitos alimentares, narrativas orais, cantos e danças. Aduz, parafraseando Borges – que afirmara haver encontrado o Oriente na Espanha –, que é possível encontrar no sertão um Portugal e uma Espanha que já não existem. Correia de Brito reflete, através de alguns autores nordestinos e brasilianistas, sobre as peculiaridades da Região65 às portas do século XVIII e suas tragédias, entre as

quais, as disputas de clãs:

65

As obras e autores sobre os quais fala Ronaldo Correia de Brito são: O Clã dos Inhamuns, do cearense Nertan Macedo; O Tratado Genealógico da Família Feitosa, do também cearense

A Ibéria se transpõe para as terras secas dos sertões cearenses. A Espanha representada por perjuros e Portugal, por insurrectos. Guerras e rivalidades seculares podem se continuar na paisagem de angicos, aroeiras, imbuzeiros, jucás e pereiros; e no leito seco de rios que só correm no inverno. Ao invés de castelos de ameias, casas de taipa de cumeeiras altas, só mais tarde substituídas por casarões alpendrados de tijolo, alguns com pedestais de mármore vindos da Itália. No lugar de armaduras e brasões de metal reluzente, roupas de couro rude, dos rebanhos apascentados no planalto. Os luxos de ouros e veludos só irão aparecer depois. No início, só existem a dureza da terra, a lei bárbara, a solidão. Matanças infindáveis para garantir o poder. A união proposta pelo casamento degenera em guerra. O velho sangue ibérico, diluído em gerações, é sempre o de espanhóis e portugueses, disputando pedaços de terra. (BRITO, 2010, s/p).

Ariano Suassuna pressente esses mistérios que envolvem a cronologia e o espaço do sertão. Conhece bem a estrutura social do Nordeste e a apresenta em seu Romance d´A Pedra do Reino: o fazendeiro, o vaqueiro, o cangaceiro, o líder messiânico, a terra, tudo e todos lá estão. Mas, essa presença, obediente à realidade, se rebela literariamente. Mesmos motes, tratamento inovador. Essa estrutura arcaica do sertão, que em grande medida subsiste anacronicamente e chega à época em que Suassuna ambienta sua história, emerge trasvestida numa prosa vigorosa que a evoca.

A literatura de Ariano Suassuna está plenamente ciente da história do Nordeste e de como se perfilam os dados da historiografia de maneira a afetar a Região e seus habitantes. Para dar conta de um projeto literário de recriação desse Nordeste, o autor lança mão de uma cultura erudita - fruto não apenas de sua formação acadêmica, mas também de um ambiente familiar que lhe propiciou o gosto pela leitura desde tenra infância - à qual se soma, acima de tudo, uma intimidade incomum com a região e com as mais diversas manifestações populares nela existentes, além de uma profunda identificação pessoal com certos valores que diz ainda encontrar nesse universo nordestino, especialmente em seu âmbito rural66. A essa história o escritor paraibano não

Leonardo Feitosa; e Os Feitosa e o Sertão dos Inhamuns, do brasilianista Billy Jaynes Chandler.

66 Em sua ―Advertência‖ no romance A história do amor de Fernando e Isaura (2006, p. 19-

20), Ariano Suassuna confessa que vive ―extraviado em meu tempo por acreditar em valores que a maioria julga ultrapassados. Entre esses, o amor, a honra e a beleza que ilumina os

dá as costas. Ao contrário, nela se respalda para intuir sua formulação literária. Nas palavras de Bráulio Tavares em seu ABC de Ariano Suassuna (2007, p. 120) a literatura do autor paraibano tenta prolongar as tradições ibéricas, por um lado, e, por outro, a dos poetas populares nordestinos, apreendendo os estágios intermediários entre elas.

1.2.5.2 A EnCruz(ilh)ada, Ibéria - Sertão

É uma nova geografia que há que inventar, rompendo ainda divisórias entre disciplinas, com geógrafos abertos à literatura e à arte, e homens de letras a par da geografia.