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Breve resumo da demanda identitária nacional Tendências precursoras do Movimento Armorial?

1. AS BASES NACIONAIS

1.2 O MOVIMENTO ARMORIAL

1.2.1 Breve resumo da demanda identitária nacional Tendências precursoras do Movimento Armorial?

Houve um tempo, séculos atrás, um homem que, destinado à poesia, escrevia versos malditos em pedaços de papéis e nos muros de sua cidade, Salvador da Bahia. E, não contente com a letra escrita, este vate da oralidade, de tempos de escassez, declamava em alto e bom som seus chistes e provocações à maneira dos repentistas e logo dos cordelistas do século XX.

Mostrava neles sua verve irreverente e compunha uma crítica de costumes corrosiva que lhe fez merecer o codinome Boca do Inferno (retomado séculos depois como título do romance que sobre ele escreveu a escritora cearense Ana Miranda). Seus versos traçam uma pintura do homem brasileiro seu contemporâneo e de suas instituições com acento e verbo próprios, não descontaminados, no entanto, de uma filiação portuguesa.

Um longo parêntese separa a poesia de Gregório de Matos de alguns autores do século XVIII, século ao qual se referirá Luciana Stegagno Picchio em sua História da Literatura Brasileira como aquele em que nasce o literato brasileiro que se empenha ―política e socialmente pela autonomia em relação à mãe-pátria‖ que tem ―consciência de sua qualidade intelectual‖ (PICCHIO, 1997, p. 119) e seu conceito de pátria é agora, não mais a metrópole, mas o lugar onde nasceu. Sentimento nativista que predominará na consciência artística individual e grupal. Na segunda metade do século, autores como Santa Rita Durão introduzirão o elemento nativo na literatura. Em seu longo poema épico, Caramuru, o frade agostiniano preludia, no casamento de Paraguaçu e Diogo Álvares, o futuro miscigenado do povo brasileiro. Basílio da Gama, abordando o conflito das tropas coloniais portuguesas e espanholas com os índios das Missões, sob a orientação dos jesuítas, descreve a paisagem e as maneiras do Brasil, retratando o índio dentro da perspectiva arcádica como ―dócil filho da terra‖. (PICCHIO, 1997, p. 138). Contando ou cantando o elemento autóctone brasileiro, esses árcades abrirão caminhos que mais tarde, trilhados pelo Romantismo, descobrirão no índio, (recorrente símbolo da nacionalidade) feito agora valente e forte, guerreiro invencível, o substituto dos heróis medievais para os quais se voltavam os românticos europeus.

Entre os inumeráveis autores do romantismo brasileiro que cantaram em verso e prosa as gestas indígenas e seus heróis, tendo como fundo as paisagens virgens das matas brasileiras, a forma de expressão corrente esteve sempre condicionada aos padrões europeus. Manuel de Araújo Porto-Alegre, contemporâneo de Gonçalves de Magalhães, destacou-se no panorama cultural brasileiro ao dirigir-se ao público parisiense divulgando nossa realidade cultural, realidade essa que Magalhães ilustrava em sua dimensão literária, indo além, pois também o fazia através da pintura, arte através da qual,

também Debret mostraria o Brasil, durante os quinze anos em que viveu no país.

Os historiadores do século serão responsáveis pela historiografia brasileira. Uma narrativa feita por sujeitos nacionais, apesar da reverência aos modelos estrangeiros. Suas narrativas que oscilavam entre o ufanismo e o cientificismo retórico prestaram-se como fonte de consulta a muitos escritores contemporâneos e dos séculos seguintes. Na poesia romântica, nem o sabiá de Gonçalves Dias ou o seu I-Juca Pirama (ainda transformado em cavaleiro ocidental), nem os versos mais amenos de um Castro Alves idílico, onde aparece a ―flor amarela das encostas‖ (PICCHIO, 1997, p. 220) – brasileiras! Do seu ―Vôo do condor‖ definem a estrutura de arte autenticamente nacional.

A procura de uma expressão nacionalista, que pontuava a arte de pintores, escritores e músicos restringiu-se, durante esses quatro primeiros séculos de nossa constituição como Brasil, à recorrência de temas, personagens e paisagens nacionais incrustados nas tendências gerais das artes plásticas, da literatura e da música do cenário internacional.

Os poetas e escritores do romantismo incorreram nessa fórmula dual. Será apenas com José de Alencar (o de Iracema, particularmente) que a literatura nacional começa a ganhar novas formas que orientarão as diretrizes para a consecução de uma literatura nacional. Embora O Guarani se haja convertido em ―mito de fundação da brasilidade‖ (ORTIZ, 1992, p. 76) será na narrativa da história de uma índia tabajara que Alencar introduz inovações formais no romance brasileiro. Sobre a tessitura do romance da ―virgem dos lábios de mel‖, Luciana Stegagno Picchio (1997, p. 203) afirma:

[...] Todas as personagens dessa lenda índia (Iracema, 1865) que Alencar quer escrita no ―verdadeiro estilo indígena, como as imagens poéticas do selvagem, seus modos de pensar, as tendências do seu espírito‖ (isto é: dividida em períodos brevíssimos, cantilenada como a fábula que as mães contam aos filhos fora da cabana, à noitinha) têm sua própria função de símbolo [...]. (PICCHIO, 1997, p. 203).

Essas experimentações com uma nova língua, que se adequa melhor à fala do índio e do homem brasileiro, darão a Alencar o epíteto de

―libertador da língua‖. A essa inovação no plano formal da obra, alia-se a desmesura do seu projeto literário que tenta dar conta, através de seus romances, de retratar o país em sua enormidade geográfica e em vários momentos de sua existência.

A música, como já se disse, também buscou obstinadamente os acordes do ―nacional‖. Nesta área, a intenção nacionalista de inspiração popular e tratamento erudito começou a motivar compositores brasileiros desde o século XIX. Carlos Gomes, cuja atuação no cenário musical da segunda metade desse século esteve estreitamente vinculada ao movimento romântico de signo italianista – sua preferência por Verdi era notória –, já apresentava em sua música traços claros da música de timbre brasileiros em suas modinhas e de temas nacionais em sua grande ópera O Guarani. Nessa ópera, homenageava, da Itália, o tema mais caro aos românticos brasileiros.

A escola nacionalista, que teve Heitor Villa-Lobos como seu maior expoente, preparava o campo aos seus filiados, estudiosos dos métodos e composições eruditas, instilando em seu fazer musical um traço distintivo dos modelos europeus que serviam à sua preparação técnica e estilística. Em torno das ideias dessa escola gravitaram músicos de todo o Brasil, entre os quais o compositor nacionalista paraibano José de Lima Siqueira, responsável pela criação da Orquestra Sinfônica Brasileira e que não descuidou, em suas composições, do elemento folclórico nordestino, como nos bailados Senzala,

Uma Festa na roça e Carnaval no Recife.

Muitos músicos nacionalistas, mantendo-se preferencialmente na superfície do tema, sem preocupações maiores com uma teorização mais consistente, trataram apenas de recobrir temas nacionais, especialmente os folclóricos, com o verniz da música neoclássica europeia, conferindo-lhe uma atmosfera romântica de origem alemã, francesa ou italiana. O Mestre Villa- Lobos, em suas composições, incrustou elementos brasileiros de origem popular e melodias correntes, em formas eruditas. Com apoio em técnicas das vanguardas europeias deu realce a temas brasileiros. Assim, ao emprestar uma envergadura clássica aos chorinhos cariocas, ou ao compor as bachianas brasileiras, inaugurava a fusão de temas nacionais com formas estrangeiras, tais como o barroco de Johann Sebastian Bach. O cearense Alberto Nepomuceno, juntamente com Villa-Lobos, é tido como um dos precursores da

música nacional. Sua composição Série Brasileira foi considerada, por alguns musicólogos brasileiros, como ―ponto de partida de orientação nacionalista‖. (SANTOS, 1999, p. 173).

Villa-Lobos levaria à Semana de Arte Moderna inovações nas tendências musicais, embora sua formação já completa não sofresse influências dos modernistas. O paulista Mário de Andrade foi, nas décadas seguintes à Semana de Arte Moderna, o ―mentor do movimento musical‖ além de importante ―teórico do nacionalismo musical‖, em torno de quem se reuniram muitos músicos brasileiros de várias regiões (SANTOS, 1999, p. 175). Os estudos de Mário de Andrade trataram amplamente dos aspectos importantes para a obtenção de uma música nacional, desde os elementos vinculados ao folclore brasileiro até os instrumentos populares. As pesquisas e teorias de Mário de Andrade serão referidas mais adiante, ao tratarmos da música armorial.

Tobias Barreto, Silvio Romero, Clovis Bevilácqua foram integrantes da Geração de 1871 ou Escola do Recife, entre cujos postulados estavam a valorização da mestiçagem no Brasil multirracial e a investigação do caráter nacional, ideias provindas de correntes teóricas europeias da época como o positivismo e o evolucionismo. Entre eles, o interesse pela cultura popular também esteve presente, vinculado às questões da identidade nacional: Folcloristas da estirpe de Leonardo Mota e de Capistrano de Abreu, no Ceará; o potiguar Câmara Cascudo, com suas enormes contribuições na paciente e persistente coleta do material folclórico do país - compondo o único dicionário de folclore no mundo -, em Recife; os estudos e obras sociológicas e literárias de Gilberto Freyre; e, finalmente, os romancistas da Geração de 30 colocariam o Nordeste como importante centro de estudo, produção e difusão de ideias e histórias vinculadas à cultura popular e à busca de uma identidade nacional.

Teófilo Braga, em suas considerações sobre o folclore, já observara que ―a vitalidade da tradição poética despertou o interesse de críticos de longe da capital (à época, o Rio de Janeiro), no Maranhão [...] em Sergipe, [...] Pernambuco[...] e no Rio Grande do Sul[...]‖. (ORTIZ, 1992, p. 68). Portanto, a constatação de que, entre o poente do século XIX e as primeiras décadas do século XX, o Nordeste efetivamente haja tido um importante papel na colocação em cena do tema identidade nacional/cultura popular, parece

natural. Especialmente se considerarmos sua posição diante do projeto finissecular de unidade nacional e o antagonismo Norte/Sul, que se estabeleceu no país diante dos conceitos de nacionalidade, antagonismo que perdurou longamente, alcançando todo o período referido.

Todas essas iniciativas permitem que se possa referir, quando de arte nacional se trate, a uma procura consistente de uma expressão nacional. Existiram muitos brasileiros cultos a sorver em raízes telúricas e nacionais o conteúdo e o amálgama com o qual elaborar, nas formas precisas do seu campo de fazer artístico, o cultivo do distintivo, a busca do geral no particular brasileiro, a intenção de descobrir uma identidade cultural e de mostrar suas feições singulares no cenário das artes e da literatura do mundo.

O Movimento Armorial reconhece a importância desses tantos autores que se preocuparam com a cultura nacional. Por sua vez, Ariano Suassuna afirma que esse reconhecimento advém da importância que tem o estudo de elementos populares e da cultura nacional. Como porta-voz do Movimento Armorial, na noite de seu lançamento, ele assinala que:

[...] o movimento lançado agora, sob a denominação de armorial resultou de vinte e cinco longos anos de pesquisas, destacando autores que, a partir da década de 20, procuraram valorizar os elementos populares da cultura nacional, a exemplo de Gilberto Freyre no Recife, e de Mário de Andrade em São Paulo. (SUASSUNA22, 1970 apud DIDIER, 2000, p. 135).

Nesse e em outros pronunciamentos, ao mesmo tempo em que exalta a contribuição de vários intelectuais nos estudos da cultura popular e nos do tema da nacionalidade, Suassuna faz questão de deixar claro que os postulados e o direcionamento do Movimento Armorial, sobre a consecução de uma arte autenticamente nacional, não comungavam com a visão sociológica ou cosmopolita. O autor enfatizava também um distanciamento com respeito aos modernistas em sua proposta de romper com a tradição, pois o Movimento a ela recorria para encontrar sua autenticidade. Distanciava-se, por outro lado, do regionalismo da Geração de 30, que abraçara uma visão naturalista e uma

arte com ela consonante, na medida em que os artistas armoriais procuravam, através do elemento local e da arte popular, a transcendência de uma arte universal.

Não há nenhum interesse por parte do Movimento Armorial em ignorar a longa caminhada da arte e dos artistas nacionais rumo a uma expressão autêntica e nacional ou de reivindicar pioneirismo nisso. É, no entanto, com resistência que seus integrantes acolhem essa busca constante e anterior como argumento de sua antecedência. Podem ter como razões para tal o que se constitui como sua nova busca, valendo-se de elementos autóctones atuais e ao mesmo tempo antigos. É notória sua desconsideração à cronologia dos inícios, compartidos pelos elementos de que se compôs essa arte popular nordestina. A eles não lhes creditam os limites geográficos das fontes de sua inspiração. Povo não é país. O espírito humano não tem a idade do homem que o comporta. As fontes mais longínquas e diversas – nos países ibéricos de nossa colonização; nas matas americanas sem divisa territorial, impostas mais tarde a um povo indígena de longevos começos; as marcações deixadas pelos povos orientais, de múltiplas origens; a mágica propriedade retroativa da influência do negro, por haver aleitado as infâncias brasileiras; todo esse amálgama lógico, mais do que cronológico, todo esse perceber e sentir parece constituir para os artistas armoriais os argumentos de sua originalidade.

Assim se define, em seu Movimento Armorial, uma heráldica nativa, pintada nos corpos dos índios, na partitura dos ritmos e cantos dos negros e, como já observado passos atrás, bordada em estandartes e vestes sacerdotais, nos ferros de marcar dos proprietários de gado, mas também nos chapéus e ―couros‖ dos vaqueiros.

A questão das raízes é, portanto, de origem anímica, sem datação precisa em documentos históricos de colonizadores, de invasões, de dominações e de extermínio. A domesticação se transmuda em sedução compartida; é o escravo que manda no coração de seu amo; a ama-de-leite que produz no menino um campo anterior de existência simbólica (e carnal) na genealogia de sua mãe preta. Podem ser esses os argumentos que expliquem a originalidade perseguida nas obras e nos objetivos dos artistas armoriais. Ao criá-los, eles se autorizam a neles crer.

1.2.2 Do popular ao erudito: a história de um movimento cultural