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1. AS BASES NACIONAIS

1.1 ARIANO SUASSUNA

1.1.2 Ariano fabulador: O ateliê do criador

―Muito naturalmente dessa paixão pela literatura, eu tentei ser escritor. Aos 12 tentei meu primeiro conto, um conto horroroso.‖

Ariano Suassuna

―Eu conto como contam na minha terra. De outro modo não sei contar.‖

Cervantes

Ariano Suassuna costuma dizer em suas entrevistas que sua opção pela literatura aconteceu porque ele, rendido aos encantos da pintura, da escultura e da música, se deu conta, já aos dezenove anos, de que não estava mais na Renascença e que, portanto, já não havia reis e papas mecenas para sustentar os artistas. Tinha que fazer uma opção e a literatura era a sua arte. A ela queria dedicar-se, ainda que, de início, não exclusivamente. A Faculdade de Direito havia sido uma opção prática, embora, também faça questão de esclarecer que foi lá que pôde desenvolver-se intelectualmente com mais plenitude, graças ao curso e às amizades sólidas que ali foram travadas, ao Teatro de Estudantes de Pernambuco e às tantas outras experiências da época de estudante universitário.

Para Suassuna, a ordenação possível - que é o caos da vida - é alcançável a partir da literatura que ―procura cicatrizar pela beleza as chagas de sofrimento, da dor, do mal que existe no mundo‖. (SUASSUNA, 2007, p. 20). Confessa ainda o escritor: ―Eu era muito integrado ao meio ambiente. Eu encontrava a vida nos livros e levava algumas coisas dos sonhos que o livro me trazia para a vida que me cercava‖. (SUASSUNA, 2007, p. 20). Não é difícil entender, portanto, o motivo de sua escolha, e que dela frutificasse uma produção tão profícua e tão ambiciosa no tocante aos gêneros que cultiva e aos materiais e temas abarcados. O grande e eclético leitor transforma-se – sem prejuízo da coerência e da organicidade de sua obra – num grande e eclético escritor, cuja criação, dramatúrgica, poética e romanesca, não parece individual e cujo conjunto não parece esgotar suas forças. Ele amplia, para além da literatura, o seu fazer artístico. Como multiartista concentrou-se especialmente na literatura, mas não exclusivamente nela, ou por outra, não

exclusivamente em sua matéria-prima, que é a palavra. Suas incursões pela música e pelas artes plásticas dão prova disso. As iluminogravuras e as gravuras que ele compõe como parte de seu texto ou como paratexto de suas obras trazem consigo a marca de um homem inquieto e com anseio totalizador. Ele é a própria figura do artista-polvo, do artista tentacular.

Tendo como ponto de partida o seu entorno, o meio que lhe resulta familiar, Suassuna inscreve o Nordeste brasileiro e o homem que aí habita no mapa da literatura universal. Desprovido de quaisquer propósitos de documentá-los, de ―retratá-los‖, ele simplesmente os conta, e o faz, por meio de uma linguagem que se quer plenamente literária. A atenção com a literariedade do texto é maior que a preocupação com abordagens informativas de natureza sociológica, antropológica ou política. O romance e a poesia de Ariano tratarão do Nordeste e do nordestino amparados numa linguagem que extrapola o seu estatuto de signo, permitindo-se ela própria a investidura de significante. Mostram-se ao leitor, a partir de sugestões do jogo narrativo, o que nele há de enunciado, de ludicididade e de cifração, de desafios e de jogos, elementos que rivalizam em importância com os personagens e com a própria história. Além disso, inclui uma ―gramática visual‖ (SUASSUNA, 2007, p. 20) inconfundível, através dos mais variados recursos, sobre os que, oportunamente, se falará.

1.1.2.1 O poeta

Por ti fui poeta, e a Deus, por ti fiel Para que o sintas mais profundamente Estenderei um pouco o meu pincel.

Dante

Aos 31 anos de idade, autor já consagrado do Auto da

Compadecida, o poeta Ariano Suassuna tem seus poemas lidos e saudados

entusiasticamente pelo renomado crítico literário César Leal. Em seu ensaio sobre a poética suassuniana, César Leal ressalta as referências clássicas e populares das odes do poeta e enfatiza também a constância da poesia em

toda a obra do autor. Sua veia poética, embora não concentrada no feitio de um corpus volumoso, ―marca sua forma de ver, entender e explicar o universo‖ (LEAL, 2005), no dizer do crítico, que ainda acrescenta: ―O que mais admira [...] da poesia de Ariano Suassuna é o seu domínio técnico. Parece que desde muito jovem as formas de expressão clássicas têm sido por ele exercitadas com rigor‖. (LEAL, 2005). Os editores do Diário de Pernambuco, responsáveis pela publicação do documento especial de onde se extraem as declarações de César Leal, somam às palavras do crítico que o ―[...] domínio da linguagem encontra seu eco no domínio do tema ao qual Suassuna recorre com regularidade para compor suas poesias‖. (SUASSUNA, 2007, p. 29).

A confluência de formas narrativas, apontadas por Guaraciaba Micheletti no Romance d‟A Pedra do Reino de Suassuna, manifesta-se em sua

poesia pela convergência de poéticas populares de origens diversas – representadas no âmbito nacional, principalmente, pela literatura de cordel –, com as formas tradicionais da poética ocidental, dita culta, e da poética clássica greco-latina. Essa soma de elementos não é apenas o resultado circunstancial da formação acadêmica erudita de um sertanejo. César Leal conclui seu ensaio sobre a poesia de Suassuna referindo-se à sua sensibilidade estética apurada por um conhecimento das leis da poética e de seus símbolos:

[...] Em Ariano Suassuna, a poesia não é somente intuição, imaginação, sensibilidade e fantasia; tampouco é confidência romântica, êxtase místico ou o profundo da digestão de certos opiáceos. Sendo professor de estética, conhece melhor as leis que fundamentam a vida de um símbolo artístico. (SUASSUNA, 2007, p. 30).

As obras exclusivamente poéticas de Ariano Suassuna publicadas são: Ode (1955), Sonetos com mote alheio (1980) e Sonetos de Albano

Cervonegro (1985), sendo as duas últimas em edição manuscrita pelo autor e

com iluminogravuras de sua autoria. Silviano Santiago encarregou-se de organizar uma coletânea: Ariano Suassuna. Seleta em prosa e verso (atualmente em sua segunda edição – 2007), que reúne, além de um

fragmento do teatro do autor, um depoimento e dois contos – ou talvez melhor fosse dizer ―causos‖ - e oito poemas, incluindo Fazenda Acahuan. Embora as edições poéticas não sejam numerosas, muitos poemas de Suassuna são parte integrante de outros textos seus, e, com espaçada constância, são publicados individualmente em revistas e periódicos. Muitos continuam inéditos, como guardados de seu autor, à espera de surgir na voz de algum personagem, declamadas em alguma aula-espetáculo ou simplesmente repousam em gavetas para dar ao autor a sensação de algo ainda passível de transformação, de reelaboração, de vida latente.

Para tratar da poesia de Ariano Suassuna, faz-se obrigatória a consulta à obra O Pai, o exílio e o reino (1999), de Carlos Newton Jr., que se debruçou sobre esse acervo poético com um olhar afetuoso, de amigo e colaborador de longas datas, porém, sem por isso deixar que sua expressão crítica se vira ofuscada. O ensaísta lança uma mirada ao mesmo tempo atenta e incisiva, necessária no ensaio acadêmico. Na introdução o autor adverte seu leitor de que o estudo que realiza sobre a poesia de Suassuna não tem a intenção de explicá-la, até porque, segundo ele, Suassuna considera que um ―poema explicado é poema morto‖. A proposta é a de lançar luz sobre seus poemas e ―mostrar como eles interagem com a sua prosa, sua gravura e seu teatro, fornecendo indicações extraídas, principalmente da biografia e da história intelectual do autor‖. (NEWTON JR., 1999, p. 22).

Conforme Newton Jr., ao começar a se tomar contato com a obra poética de Suassuna, é perceptível a visão trágica do mundo que se apodera do escritor. Três elementos parecem ser responsáveis pelo alicerce dessa visão trágica, desde suas primeiras poesias até as mais atuais: a morte do pai, e os outros dois elementos que esta deflagrará: o exílio e o reino. O que o ensaísta chama de exílio é a saída de Ariano, do sertão para o Recife, mudança que ocorre devido às circunstâncias financeiras que envolvem, entre outras, as perdas patrimoniais ocasionadas pela morte do pai e pelas consequências dos incidentes da política vigente (pós-revolução de 1930). Finalmente, afirma Carlos Newton Jr. (1999, p. 20), como ―consequência e coroamento do trágico ou como amadurecimento do próprio estar-no-mundo, surge a perspectiva do reino‖. Sendo um reino utópico, é necessário ressalvar que se trata de uma ―utopia de futuro, baseada em uma utopia do passado. O

reino será o lugar de todos os lugares. Lugar onde o mundo adquire sentido‖. (NEWTON JR., 1999, p. 20). O estudioso percebe que ―a construção de um reino literário aparece, também, como meio de apaziguar o sofrimento do homem no mundo‖. Ao detectar, se não a exclusividade, mas o predomínio de três temas - o pai, o exílio e o reino - na poesia de Suassuna, ele acredita que ―uma leitura em torno deles serviria ao nosso propósito de fornecer uma visão geral da sua produção, dos primeiros poemas aos mais atuais‖. (NEWTON JR. 1999, p. 20).

Mutatis mutandi, Suassuna emprestará o sonho da construção

desse reino literário ao seu personagem-mor, Dom Pedro Diniz Quaderna, do

Romance d‟A Pedra do Reino, que acredita firmemente que sua (con)sagração

como gênio da raça e imperador do quinto império do escorpião dependem dessa obra, da construção de seu Castelo13 pedregoso e amuralhado

(SUASSUNA, 2005, p. 115).

1.1.2.2 O batismo literário

A crítica de Ariano Suassuna costuma referir-se à sua peça Uma

Mulher vestida de sol como sua estreia literária, isso porque desconhece as

publicações esparsas do Ariano poeta em jornais e revistas recifenses. Será, portanto, como poeta que Ariano Suassuna aparece primeiro na literatura impressa. Noturno, poema anteriormente referido, publicado no Suplemento

Cultural do Jornal do Commercio em outubro de 1945, marcará esse início.

Como também já se disse anteriormente, influências cultas dos românticos ingleses se fazem sentir na temática do poema, porém, outras influências serão mais marcantes e duradouras na poesia de Suassuna. Atesta seu amigo e pesquisador Carlos Newton Jr., em sua obra supracitada, que Ariano recita Camões de memória, conhece intimamente A Divina Comédia e está bastante familiarizado com os grandes poetas clássicos, que já lia desde a infância, o

13

Castelo poético, também chamado Marco ou Forte ―é um longo poema de caráter épico, uma construção imaginária feita pelos poetas populares e cantadores, simbolizando uma fortaleza inexpugnável‖. In: BATISTA, Sebastião Nunes. Poética popular do Nordeste. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1982, p. 35.

que, talvez, fosse responsável por se referirem a ele como ―cultor da técnica precisa‖. Essa influência, e, em especial, a de Dante, marcará não apenas sua poesia, como também seu teatro.

Até então, Suassuna não havia experimentado, como leitor, em suas máximas possibilidades, o alcance e os enlaces possíveis entre aqueles dois universos pelos quais transitava e os quais experimentava fundir: o clássico e o popular. Quando seu amigo Hermilo Borba Filho apresentou-lhe a obra de Lorca, teatro e poesia, Suassuna, maravilhado, atentou para o fato de que não apenas estava diante de um universo semelhante ao seu, mas que aquele (para sempre) jovem poeta erudito ―fundamentava sua criação nas fontes populares de sua cultura, na cultura popular da Espanha, principalmente no Romanceiro Popular Ibérico‖. (NEWTON JR., 1999, p. 43). Por força do contato com a literatura de García Lorca, dá-se conta de que poderá fazer com o sertão o que fez o poeta andaluz com o universo rural espanhol, em particular com sua região. Será a partir de suas vivências no Teatro de Estudantes de Pernambuco - TEP, que isso acontecerá mais intensamente, em consonância com o que assinala Newton Jr., quando diz que

[...] a produção poética de Suassuna acompanhou, em extensão, sua produção no campo do teatro. A partir do TEP, o estudo aprofundado da poesia popular passa a ser uma constante para o autor, Até porque é partindo, principalmente dos folhetos do Romanceiro Popular Nordestino – de uma poesia popular, portanto – que ele vai encontrar o caminho para criar toda sua obra teatral. (NEWTON JR., 1999, p. 44).

Em acréscimo, Carlos Newton Jr. afirma que, será dos anos em que Ariano cursava a Faculdade de Direito e participava ativamente do Teatro de Estudantes de Pernambuco, a criação de seus primeiros poemas ligados ao Romanceiro Popular Nordestino, entre os quais: ―A morte do Touro Mão de Pau‖, ―Beira-Mar‖, ―Os Guabirabas‖, ―Encontro‖ e ―A Barca do Céu‖. A rima toante de alguns desses poemas, afirma o autor, é influência clara dos romances espanhóis e portugueses cujo conjunto ele chama de ―Romanceiro Ibérico‖, embora acompanhando a preferência do Romanceiro Popular Nordestino, o poeta Suassuna venha a optar pela sextilha ou repente (seis

versos heptassílabos – redondilha maior - com rimas: ABCBDB). Comparemos as duas modalidades poéticas, respectivamente, em ―Os Guarabiras‖ e em ―La penitencia del Rey Don Rodrigo‖:

Lá vai Cirino na estrada em seu cavalo Alazão Cascos ferrados, nas pedras, chispando fagulhas vão na roseta das Esporas na Lança do seu ferrão. Cirino, cuida na vida

cuida nas pedras da Estrada! Não foste há pouco avisado de que a vida é uma Emboscada? Não durmas tendo inimigo

Cirino da Guabiraba.

(NEWTON JR., 1999, p. 45).

Por el Val de las Estacas va Rodrigo al mediodía: van relumbrando sus armas que casi el sol parecía. Ha encontrado un ermitaño el más cristiano que había. - Por Dios te ruego ermitaño, /Por Dios te rogar querría que me cuentes la verdad y me niegues la mentira. (DÍAZ, 1990, p. 17).

Embora nos poemas anteriores não se possa aferir mais do que a coincidência métrica do verso heptassílabo, por exemplo, há outros aspectos convergentes entre a poesia de Suassuna e os versos do Romanceiro viejo espanhol. Acompanhando o texto de Mario González, Leituras de literatura

espanhola (2010), em sua exposição sobre o Romancero, corroboramos suas

características que estão presentes também nos poemas suassunianos de viés regionalista. Entre eles, cabe destacar: a tensão dramática, a condensação dos fatos, a brevidade dos textos e o fragmentarismo, inevitável, já que muitos reproduzem apenas um momento culminante de um extenso cantar de gesta. Esses romances fazem alusões, portanto, a assuntos com os quais os ouvintes já estariam familiarizados. A angústia e tensão que o recorte produz e a intensa emoção que disso advém é outra característica comum tanto aos poemas do

Romanceiro viejo espanhol, como aos aqui referidos de Suassuna. O poema ―A morte do Touro Mão de Pau‖, transcrito abaixo, na íntegra, deixa claro as características supracitadas:

Corre a Serra Joana Gomes galope desesperado: um touro se defendendo, homens querendo humilhá-lo, um touro com sua vida, os homens em seus cavalos. Cortava o gume das pedras um bramido angustiado, se quebrava nas catingas um galope surdo e pardo e os cascos pretos soavam nas pedras de fogo alado, enquanto o clarim da morte, ao vento seco e queimado, na poeira avermelhada envolvia os velhos cardos. Rasgavam a serra bruta aboios mal arquejados e, nas trilhas já cobertas pelo pó quente e dourado, um gemido de desgraça, um gemido angustiado:

– "Adeus, Lagoa dos Velhos! adeus, vazante do gado! adeus, Serra Joana Gomes e cacimba do Salgado! O touro só tem a vida:

os homens têm seus cavalos"! O galopar recrescia:

brilhavam ferrões farpados e algemas de baraúna para o touro preparados. Seu Sabino tinha dito: – "Ele há de vir amarrado!"

Miguel e Antônio Rodrigues, de guarda-peito e encourados, na frente do grupo vinham, montados em seus cavalos de pernas finas, ligeiras, ambos de prata arreados. E, logo à frente, corria o grande touro marcado, manquejando sangue limpo nos caminhos mal rasgados, cortadas as bravas ancas por ferrões ensanguentados.

A Serra se despenhava nas asas de seus penhascos e a respiração fogosa dos dois fogosos cavalos já requeimava, de perto, as ancas do manco macho quando ele, vendo a desonra, tentando subjugá-lo,

mancando da mão preada subiu num rochedo pardo: Num grito, todos pararam, pelo horror paralisados,

pois sempre, ao rebanho, espanta que um touro do nosso gado às teias da fama-negra prefira o gume do fado. E mal seus perseguidores esbarravam seus cavalos, viram o manco selvagem saltar do rochedo pardo: –"Adeus, Lagoa dos Velhos! Adeus, vazante do gado! Adeus, Serra Joana Gomes e cacimba do Salgado! Assim vai-se o touro manco, morto mas não desonrado!‖.

Silêncio. A Serra calou-se no poente ensanguentado. Calou-se a voz dos aboios, cessou o troar dos cascos. E agora, só, no silêncio deste sertão assombrado, o touro sem sua vida, os homens em seus cavalos. (SUASSUNA, 2007, p. 179-182).

Este poema de Suassuna supostamente fala apenas de um touro bravo e orgulhoso que, preferindo a morte à captura, não se rende aos seus perseguidores. No entanto, há nele uma alusão clara ao assassinato de seu pai. Porém, o apelo emotivo, porque metaforizado, só se fará plenamente legível para os que têm alguma familiaridade com esse fato da história pessoal do poeta e da história política do país. O recurso ao discurso direto, presente no poema acima, é outro artifício profusamente usado no Romancero viejo. Ele reforça o dramatismo do texto, que, de conformidade com Mario González,

[...] fica matizado pela interferência da subjetividade do poeta, quer seja mediante a valoração dos elementos descritivos, quer seja pelas frases em que dá vazão às emoções que suscita no leitor como se se tratasse de suas próprias emoções, sem maior elaboração nem desenvolvimento. (GONZÁLEZ, 2010, p. 161).

Os toques arcaizantes que o Romancero viejo herdou da épica, também se veem refletidos na linguagem de Suassuna, introduzidos no uso de maiúsculas como recurso visual e estilístico, no recurso ao reforço da repetição e de algum refrão e na escolha de imagens fortes, obtidas graças à capacidade plástica do poeta e à sua sensibilidade sinestésica, que faz a poeira vermelha levantada na corrida prolongar-se no sacrifício do animal caído e que leva o disparo inicial da corrida sôfrega calar-se no silêncio mortal do seu final.

Suassuna, além da fórmula nascida do romanceiro espanhol, experimentará um pouco de várias métricas, do decassílabo do soneto14 aos populares ―martelo agalopado‖, ―galope à beira-mar‖ ou ―repente‖ 15. Como se

percebe, ele não abre mão da métrica, ainda que, em boa parte de sua poesia, explore o verso ―branco‖ ou ―solto‖, como já foi salientado.

Além da presença do popular e do cânone clássico ou do erudito na obra poética de Suassuna, essa, tal como ocorre com o seu romance e com o seu teatro, é objeto de constantes reformulações. Em sua segunda publicação na revista Estudante, em 1946, ―Noturno‖ já havia sido modificado e, com base somente em 1950 o poema assumirá a forma aqui apresentada, talvez, sua forma definitiva. Essa interferência do autor em sua obra, inclusive na já editada, é frequente. Ariano faz também pronunciamentos sobre seus textos, o que de uma ou outra forma interferem em sua recepção. Seu universo artístico é, quase sempre, tão passível de reelaborações e recombinações como é a própria existência. O corpo de sua obra é animado. Uma ou outra vez o poeta lhe arranca algum pedaço, coloca-lhe um adorno novo, retoca-o e lhe recria o que em aparência já estaria pronto e entregue. Suassuna acrescenta uma cena a um romance, quando de sua adaptação para outro meio; a outro, que se pretendia continuação de um primeiro, ele o retira de cena e lhe subtrai o

14 Camoniano 15

Formas poéticas do Romanceiro Nordestino, o ―martelo agalopado‖ e o ―galope à beira-mar‖ são formados por estrofes de dez versos, sendo o primeiro um decassílabo e o segundo um eneassílabo. Já a sextilha é composta por versos de sete sílabas com rima: ABCBDB.

propósito inicial; uma peça ganha certos ajustes, nova extensão, nova formatação. Ariano Suassuna é, portanto, autor ou escravo de uma obra mutante e, assim, inacabada.

Como sua poesia não será exceção a essa regra de inquietação do escritor, Suassuna reescreve seus poemas tantas vezes lhe pareça necessário a bem da rima, do som, da cadência, do ritmo ou do tema escolhido. E, assim como fez seu mestre Euclides com as reedições de Os sertões, Suassuna continua retocando seu texto indefinidamente e conferindo-lhe outro olhar, na medida em que o suporte também muda, ou simplesmente quando o bom julgamento ou sentimento assim o ditarem. A incompletude, o inacabamento que pressupõem uma abertura da obra, será uma das premissas básicas do Movimento Armorial, criado e encabeçado pelo escritor na década de setenta e