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ARIANO SUASSUNA, DAS RAÍZES DA ARTE POPULAR À EXPRESSÃO ARMORIAL

1. AS BASES NACIONAIS

1.3. ARIANO SUASSUNA, DAS RAÍZES DA ARTE POPULAR À EXPRESSÃO ARMORIAL

O que me dá ainda coragem é poder esperar pelo dia em que minha vida se identificará – pelo Deserto e pela Morte, não sei! – com essa áspera Terra – pedregosa, crestrada pelo sol divino, misericordioso e cruel.

Ariano Suassuna

A formulação estética da ―arte armorial‖, de Ariano Suassuna, em particular, propõe o resgate do popular, a busca do modelo na manifestação artística do povo, como meio de decifrar a identidade, a marca de originalidade que possibilita também sua distinção. O que faz o indivíduo ser, e saber o que é, e ver isso através de sua arte. Essa reflexão estética transpõe a percepção simplista da arte popular como expressão primitiva e propõe um novo olhar, sob uma perspectiva atemporal, não cronológica, livre dos parâmetros que os padrões comerciais e até os acadêmicos mais ortodoxos, ou que os modelos estéticos vigentes propõem como aferidores da qualidade artística. Estes padrões e modelos costumam rotular como exótico ou como primitivo - na acepção negativa que se dá, vulgarmente, à palavra -, tudo aquilo que lhes for alheio ou que vier do povo. A arte armorial aspira à universalidade tomando como matéria o que lhe resulta próprio e que constitui seu universo pessoal, simbólico e concreto. A relação que Ariano Suassuna mantém com a cultura popular nordestina representa, mais do que uma simples exaltação dos valores

locais, uma busca da memória ancestral e constitutiva, muito anterior aos limites de seu próprio povo. Para alcançá-la dispõe-se de um conjunto valioso de tradições, herdeiras e transformadoras dessa memória, manifestadas na arte desde a dança do bumba-meu-boi aos versos do Romanceiro, das xilogravuras dos folhetos aos aboios dos vaqueiros, das esculturas de madeira ao barro do artesão.

Ariano Suassuna busca a fórmula precisa, ele sabe que carrega com ele um universo simbólico e real querendo tingir o papel e em busca da expressão, da forma e da palavra que lhe dê vida. Em seu primeiro poema, ―Noturno‖, de 1945, alguma coisa já prenuncia nos versos do jovem poeta seu encantamento com o poder evocativo da palavra, ele a escolhe e, em reverência respeitosa, usa a maiúscula inicial, como quem marca a ferro, aquela que guarda um sentido que vai além do verso e da poesia. Mas, sua poesia, que mais tarde será acústico, visível e sensorialmente armorial, ainda não encontrara seu estatuto definitivo.

Em 1947, escreve sua primeira peça, Uma Mulher vestida de sol, que, embora ligada ao Romanceiro Popular Nordestino, tomou-lhe ao romance de cordel (popular do sertão) escolhido apenas o fio central da história e o tratou nos termos da poesia do Romanceiro. Isso, segundo o próprio autor, atesta que o vínculo de sua arte com o Romanceiro é antigo. Desde os vinte anos de idade, já se preocupava com o que chama de ―forte e pura raiz popular da Arte e da Literatura nordestinas que são os folhetos e repentes do Romanceiro‖ (SUASSUNA, 2008, p. 173). Dois anos depois, Suassuna volta a escrever outra peça, O Auto de João da Cruz e, desta vez, ele a baseia inteiramente em três folhetos nordestinos. O autor considerará mais adiante que as duas peças de estreia representaram para ele ―marcos no meu caminho de identificação entre meu trabalho e o Romanceiro Popular‖. (SUASSUNA, 2008, p. 173).

Será no texto do Auto da Compadecida, onde Suassuna reconhece haver finalmente atingido seu objetivo ―[...] de transpor para o Teatro os mitos, o espírito e os personagens dos folhetos e romances associados, como deve ser, aos espetáculos teatrais nordestinos, especialmente o Bumba-meu-boi e o mamulengo.‖ (SUASSUNA, 2008, p. 177).

Seu percurso será de crescente intimidade e diálogo com a cultura popular, porém, segundo Santos (2000, p. 97), sua arte só encontrará formulação estética como ―arte armorial‖ depois de um longo amadurecimento. Ao proclamar a existência do Movimento, o escritor ―assume publicamente seu compromisso com a arte popular‖. Além disso, ele define ―a arte armorial em sua relação com as literaturas da voz e do povo, fundamento de sua criação‖. (SANTOS, 2000, p. 97).

Porém, já desde a década de quarenta, Suassuna tem ideias conceituais claras sobre o rumo que sua literatura deve tomar. Leitor fiel da literatura espanhola, ele escreve um ensaio jornalístico aproximando o nosso Romanceiro ao Romanceiro Ibérico. Aproximações que o autor enfatiza e reafirma ao longo de sua carreira. No artigo, exalta a veia épica dos cantadores nordestinos, a semelhança entre o sertão e a Espanha, a despeito de sua filiação colonial com Portugal, e, entre outras coisas, fala da sobrevivência e perenidade da literatura tradicional e popular naquele país onde o Romancero tem seu lugar de destaque no cenário literário.

Em 1964, o escritor publica um ensaio para uma coletânea de poesias populares nordestinas, escrito dois anos antes. Nele, Suassuna propunha o estudo do Romanceiro em duas partes, a da Poesia improvisada e a da Literatura de cordel, propunha também uma divisão para os folhetos e romances nordestinos sugerindo, para tal, seis ciclos, a saber: heroico, trágico e épico, maravilhoso, religioso e de moralidade, ciclo cômico, satírico e picaresco, ciclo histórico e circunstancial. Na ocasião, e antes de seu personagem Quaderna desenvolver suas próprias teorias sobre os métodos de classificação do romanceiro, Suassuna propõe essa classificação que difere da mais habitual, a que separa os romances e cordéis pelos personagens (ciclo de Lampião, de Padre Cícero, etc.).

Definidas claramente as premissas da Arte Armorial, Suassuna se lançará em um projeto ambicioso. Em busca de sua arte total, decide extrapolar a medida do texto teatral e da poesia para ter a abertura e a liberdade necessárias na criação de uma obra paradigmática, que represente sua percepção armorial do fazer artístico. Só o gênero romanesco podia oferecer- lhe as condições ideais para a consecução de sua ideia. Uma obra que, mantendo-se ancorada na cultura popular nordestina, possa resgatar nela suas

raízes ibéricas e perambular pelo sertão, pela Europa medieval e pela Espanha quinhentista e seiscentista, pelos registros mais diversos da poética popular e erudita, daqui e de além mar, dando ao papel a guarda (aberta) dessas vozes, de seu canto e conto, de suas misturas, de sua pureza. Pelo seu projeto se entrega o autor nos braços tentaculares do gênero escolhido para alcançar seu ―Romance heróico-brasileiro, ibero-aventuresco, criminológico- dialético e tapuio-enigmático de galhofa e safadeza, de amor legendário e de cavalaria épico-sertaneja‖. (SUASSUNA 2005, p. 197-198).