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A tradução da primeira parte: os fragmentos da Torre do Tombo

No documento A General Estória de Afonso X em Portugal (páginas 155-159)

II. A tradução da primeira parte

2.3. A tradução da primeira parte: os fragmentos da Torre do Tombo

Descobertos por Avelino Jesus da Costa em 1949424, os fragmentos

portugueses da General Estoria não tiveram a fortuna editorial do testemunho F. De facto, não só a pequena extensão de texto mas também o mau estado de conservação dos testemunhos desencorajou a crítica, votando-os a um certo desinteresse.

Em 1956, Mário Martins redige um pequeno artigo425 respondendo à

dúvida colocada por Avelino Jesus da Costa, que hesitara entre a pertença dos fragmentos a uma tradução da Historia Escolástica de Pedro Comestor426 ou à

obra alfonsina. Mário Martins copia partes dos fragmentos, cerca de três colunas, de forma a dar prova da veracidade da sua descoberta.

Também Luís Lindley Cintra dedica algumas páginas427 aos fragmentos,

onde assinala que estes não pertencem à tradição de F, sem que no entanto seja editado o texto. Mais tarde, aquando da edição da tradução galego-portuguesa do século XIV, os fragmentos são referidos por Ramón Martínez López428, que

recorre à transcrição de Mário Martins429 para comprovar as afirmações de

Cintra.

A descrição paleográfica mais detalhada encontra-se na base de dados do BITAGAP430, mas além da constatação da existência destes fragmentos a crítica

424 COSTA, A. J. (1949).

425 MARTINS, M (1956: 93-104). As transcrições encontram-se entre as páginas 95 e 99.

426 A hipótese de Avelino Jesus da Costa não é de todo descabida, uma vez que existiam à data dois testemunhos de uma tradução para português da obra do autor francês: a Bíblia de Alcobaça e a Bíblia de

Lamego. Da primeira obra apenas existe uma versão impressa datada de 1829 – ver SÃO BOAVENTURA

(1829) e a reedição em NETO (1959), que o primeiro editor situa no início do século XIV. Já a Bíblia de

Lamego datará dos finais do século XV, tendo sido editada por CASTRO, J. M. (1998). Existe também um

fragmento da tradução datado do século XVIII, o ms. BPE CXXIII 1-8. Veja-se o artigo LEITE (2010). 427 CINTRA (1999a).

428 MARTÍNEZ-LÓPEZ (1963). 429 MARTINS, M (1957).

430 PHILOBIBLON, Bitagap: ManID 1495 (frag. 29, caixa 21 ANTT); ManID 1502 (frag. 30, caixa 21 ANTT); ManID 1501 (frag. 31, caixa 21 ANTT); ManID 1500 (frag. 32, caixa 21 ANTT). Após ter sido solicitada a reprodução digital dos fragmentos, estes passaram a estar disponíveis no site do Arquivo Nacional da Torre

Mariana Soares da Cunha Leite

não avançou para, pelo menos, uma transcrição431 que permitisse elaborar uma

análise mais aprofundada desta tradução portuguesa.

Os fragmentos, provindos do Cartório Notarial de Lisboa, conservam-se hoje na Casa Forte da Torre do Tombo, na caixa 21 com os números 29, 30, 31 e 32. Pertenceram muito provavelmente todos ao mesmo códice ou então a códices elaborados nas mesmas circunstâncias, uma vez que não se revelam grandes variações no suporte (pergaminho), tamanho dos fólios, apresentação do texto e tipo de letra. A letra e modos de execução apontam para o século XV, tendo várias vezes sido avançada a hipótese da tradução ter sido elaborada a mando de D. João I432:

«ruão que quis dizer çidadão segũdo que eu julguey ẽ hũ liuro antigo o qual foi trasladado em tẽpo do mui esforçado rey dom Johão da boa memorea o premeiro deste nome em portugal: por seu mãdado foy o liuro que digo escrito e esta no moesteiro de Pera longa: chamase estorea geral: no qual achei esta com outras anteguidades de falar.»433

Trata-se de quatro fólios com cerca de 525 x 300 mm, texto a duas colunas de 51 a 54 linhas em letra gótica bastante regular, com títulos a vermelho, caldeirões alternadamente a vermelho e azul e capítulos numerados. Existem capitais ornamentadas a azul e vermelho. O uso dos fragmentos como capas é bem notório não só pelo desgaste da parte que ficaria na lombada como pela profusão de anotações notariais em letra do século XVI em todos encontradas434.

Apesar de, em maior ou menor grau, haver buracos e rasgões em todos os fragmentos, apenas o verso do fragmento 30 está totalmente ilegível, exceto os títulos.

431 ASKINS, DIAS, SHARRER (2006: 93-124) indicam contudo a existência de uma proposta de estudo aprofundado e edição dos textos aquando da redação do seu artigo.

432 A hipótese é apontada CINTRA (1999a) e reiterada por ASKINS, DIAS, SHARRER (2006: 96).

433 FERNÃO DE OLIVEIRA (ed. 1933:75) apud MARTINEZ LÓPEZ (1963: XVI). A obra de Fernão de Oliveira encontra-se agora em formato digital no fundo da Biblioteca Nacional Digital – FERNÃO DE OLIVEIRA (1536)

434 Além das anotações dos notários do século XVI, há a lápis e mesmo, aparentemente, a esferográfica, indicações sobre a origem dos fragmentos, em letra do século XX.

A General Estoria em Portugal

Os fragmentos, a terem sido elaborados na primeira metade do século XV, terão caído em desuso ou desinteresse com relativa brevidade, uma vez que foram utilizados como capas para livros de notário, estando identificado um António Nogueira435, nos ano de 1576436, 1578437 e 1586438, ou seja, pouco mais de

um século depois de terem sido copiados. Aliás, a ter sido o códice de onde foram retirados os fragmentos aquele que Fernão de Oliveira consultou, ainda mais surpreendente se torna a fortuna deste testemunho da obra alfonsina. Não obstante, a tradução parece ser bastante cuidada, com poucos erros ou saltos, havendo, para algumas passagens, a grande probabilidade de se ter procedido a resumos ou reescritas mais breves do texto castelhano.

A serem catalogados pela ordem a que pertencem na estrutura da GE, o primeiro seria o fragmento 30, que transmite matéria do primeiro livro, capítulos IV a VII, correspondendo ao Génesis. Trata-se da queda do paraíso pelo par primordial e subsequente formação da linhagem humana. Se o reto do fólio está relativamente legível, do verso apenas se distinguem os títulos: «Dos custumes de Caym e de Abel» e «De como matou Caym a Abel».

Ainda dentro do Génesis, surgiria a história de Abraão e do seu sobrinho Lot, conservada no fragmento 32, cujos frente e verso deveriam ser invertidos para dar conta da ordem correta do texto. Apesar da relativa legibilidade, os danos provocados pelo uso do pergaminho como encadernação impedem a leitura de parte considerável de 32r.

Acompanhando a ordenação apontada na GE, encontrar-se-ia em seguida o fragmento 29, correspondente aos capítulos XXXIV a XXXVII inclusive do livro sétimo, também ainda na secção correspondente ao Génesis. Traduzem-se as considerações sobre o trívio e o quadrívio, a descrição de cada arte e o surgimento da música. Ao abranger matéria que pertence ao núcleo não bíblico da GE, este fragmento dá conta de uma tradução integral, afastando-se por isso de qualquer hipótese de afinidade com tradições de transmissão parcial da GE439.

435 Nome do notário registado no frag. 32. 436 Data indicada no frag. 31.

437 Frag. 29. 438 Frag. 30.

Mariana Soares da Cunha Leite

Apesar de alguns buracos, o manuscrito é bastante legível. O fólio foi cortado a meio de uma das colunas, mas ainda assim a reconstituição do texto não é totalmente impossível. Porém, nota-se que em alguns momentos a matéria correspondente aos espaços danificados é bem mais extensa em todos os testemunhos castelhanos, o que pode indicar ou saltos ou, eventualmente, algumas tentativas de resumo do extenso texto castelhano. Tal hipótese não é de desconsiderar se tivermos em conta que semelhante estratégia ocorre por vezes no fragmento 32, conforme será explanado adiante.

Por último, o fragmento 31 dá conta da extensão desta tradução, que efetivamente cobriria toda a primeira parte: a matéria corresponde ao décimo primeiro livro, pertencente já à secção que traduz o Êxodo, capítulos VIII a XIII

inclusive, sobre as circunstâncias do nascimento de Moisés e o culto egípcio ao

boi Ápis.

A General Estoria em Portugal

2.4. Os fragmentos portugueses confrontados com as cópias

No documento A General Estória de Afonso X em Portugal (páginas 155-159)