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CAPÍTULO 1. UM MUNDO DUPLO Um panorama de Esaú e Jacob

1.4. O duplo no campo das leituras históricas e histórico-alegóricas

1.4.2. A transição histórica vista pelo ângulo da crônica machadiana

Um recurso válido para reinterpretar a obra e este romance de Machado em particular é recorrer a outros textos do autor sobre esse período de transição. Nas crônicas de Bons Dias! e A

51 Karl MARX, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte [1852], 2011, p. 25.

52 O positivismo implementa-se historicamente através da difusão do espírito modernizador no país após os ventos

renovadores de 1870, formando bases para linhas e vertentes de pensamento muito variadas (nacionalistas, autoritárias, militaristas, fascistas, desenvolvimentistas etc., reunindo nomes como Benjamin Constant, Alberto Torres, Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Oliveira Vianna, Cassiano Ricardo, ideólogos do Integralismo etc.). Teve visíveis efeitos práticos na ação dos militares na proclamação da República, na ação dos jacobinos radicais e florianistas, mas principalmente no grupo positivista do Sul, em volta de Júlio de Castilhos. Assim, pode-se dizer que é uma ideologia de longa duração, desembocando ainda no tenentismo, na Revolução de 1930 e na Era Vargas (Cf. Ivan LINS, História do positivismo no Brasil, 1964; CRUZ COSTA, 1967; Alfredo BOSI, “A arqueologia do Estado- Providência” in:__. Dialética da colonização, 1992; José Murilo de CARVALHO, A formação das almas – o

imaginário da República no Brasil, 2004). 53

Cf. Sérgio B. HOLANDA (dir.), “A Regência - Cap. I – “‘A experiência republicana’, 1831-1840”” In: O Brasil

Semana, pressentimos um misto de desencanto, inquietação e suspensão do juízo, que fomenta

muita imaginação artística e política. Uma ironia fina, diferente da de Ayres, mas assemelhada a ela. Assim, por exemplo, o tema do “ovo” do despotismo, que se reflete no título alternativo “ab

ovo” (EJ, Advertência) e em imagens correlatas, nasce nesse período54. Passagens desse tipo trairiam o receio de um “monarquista liberal” diante da possibilidade do esfacelamento da unidade nacional, bem como a justa crítica do caudilhismo e da instabilidade política dos países vizinhos da América do Sul55, também discerníveis no capítulo “Recuerdos” (EJ, XL). Isso não impede de reconhecermos, nas malhas do enredo e principalmente na personagem de Flora, o que poderia haver de “negativo” e de “utópico” nesse momento social ímpar, em que o “nada” se realiza

objetivamente no coração de todas as estruturas. Aqui encontramos uma face social e política

talvez inesperada do duplo/duplicidade no romance, em grande parte talvez até mesmo

independente das intenções do autor implícito. Vejamos como esse ponto pode ser.

A crítica machadiana do período parece realmente muito próxima às vezes do senso comum liberal-conservador da imprensa da época. Mas há sempre um resto, que parece dizer outra coisa. Vale pensar de onde ele sai. Notamos já o processo de modernização e esclarecimento social que deu na Abolição. Ou mesmo naquilo que Gorender chamou “revolução abolicionista”, para ele a primeira etapa da revolução burguesa brasileira56. Nessa sequência objetiva do processo, instaurando um governo de tipo “cesarista” ou “bonapartista” de dupla face – um “florianismo popular ou de rua” e um “florianismo de governo”57 associado às altas esferas do poder econômico e político constituído – o “Marechal de Ferro” manteve seu compromisso com a manutenção de um Estado republicano austero e modernizador (de horizonte nacionalista e industrializante, como já

54

Uma crônica fundamental (para o futuro romance) apresenta uma proposta de um deputado militar (José A. Vinhaes, líder do Partido Operário) para uma nova constituinte (de “tendências republicanas”, sem “contestar os benefícios monárquicos”). O artigo teme-a como “um simples ovo de Convenção Nacional” – opacamente associada à Constituinte dissolvida de 1824 –, que poderia levar o país a chocar o ovo de uma “águia” ou “peru”. Ou seja, o ovo de uma ditadura: pois como “águia não se come, e a assembleia dos quinhentos seria um excelente prato, lardeado de facções, de imprecações, de confusões, de conspirações, tudo no plural, exceto a dissolução, que seria no singular”, decretada por “um homem acordado, forte e ambicioso, que contentasse a todos dizendo: - Meus filhos, podem ir descansados; eu fico sendo democrata e imperador” (ibidem.). Em seguida, obtempera: “Tudo é ovo. Quando o Sr. Deputado Vinhais, no intuito de canalizar a torrente socialista, criou e disciplinou o partido operário, estava longe de esperar que os patrões e negociantes iriam ter com ele um dia, nas suas dificuldades, como aconteceu agora na questão dos carrinhos de mão. Assim, o partido operário pode ser o ovo de um bom partido conservador.” (MACHADO DE ASSIS, A semana, 15/05/1892, 1996: 58). E por fim o mote principal, retirado de Renan: “Tudo é ovo, amigo. A carta que estás escrevendo à tua namorada, pode ser o ovo de dois galhardos rapazes, que antes de 1920 estejam secretários de legação. Pode ser também o ovo de quatro sopapos que te façam mudar de rumo. Tudo é ovo (...)” (ibid.: 59).

55 O que fica expresso cabalmente numa resenha de um artista chileno: “Causas históricas e constantes têm perpetuado o

estado convulso daquelas sociedades, cuja emancipação foi uma escassa aurorra entre duas noites de despotismo”. (MACHADO DE ASSIS, “‘Un cuento endemoniado e ‘La mujer misteriosa’ por Guilherme Malta” [1872] – Crítica

literária, 1957b, p. 117).

56 Jacob GORENDER, “A revolução abolicionista” in:__. A escravidão reabilitada, 1991. 57

Lincoln de Abreu PENNA, O progresso da ordem. (O florianismo e a construção da República), 1997: passim; Ver também CARONE, 1971; QUEIROZ, 1986.

frisamos), parcialmente afinado com os desejos do cidadão comum e dos excluídos, embora sua base de sustentação fosse a oligarquia paulista e as camadas médias do Rio de Janeiro e São Paulo, principalmente as fileiras militares de jacobinos, nativistas fanáticos e xenófobos, que dificilmente se identificavam às demandas sociais dos trabalhadores imigrantes e dos mais pobres em geral. Uma das medidas de terror de nosso Bonaparte tropical (após 1893) foi expulsar 76 estrangeiros do país sob a alegação de crimes políticos e ligação com “anarquismo” (Carvalho, 1987: 24). E no entanto a cultura positivista e a ideia da “integração do proletariado” criava algumas possíveis pontes entre esses dois grupos sociais. Por exemplo: uma primeira legislação do trabalho avançada para a época foi proposta pelos positivistas (jornada de sete horas, descanso semanal, férias de quinze dias, licença remunerada para tratamento de saúde, aposentadoria, pensão para a viúva, estabilidade aos sete anos de serviço etc.), obviamente recusada, mas nas ruas, greves, tumultos e revoltas juntavam elementos populares e militares; o líder do primeiro partido operário carioca foi um tenente da Marinha que tinha cadeira de deputado no Rio etc. (Idem, ibid.: 32 e 52-5). Nesse momento, o governo do Marechal ganha certa popularidade no combate à revolta da Marinha e dos federalistas do Sul, contrastando certos interesses de potentados locais, atiçando a reação

conservadora de elites ilustradas, monarquistas e cafeicultoras, atemorizadas diante da ascensão da

“escória sanguinária e epilética”58

do jacobinismo, gerando enfim uma espécie de solução de compromisso político entre as classes, num processo que um historiador bem designou como “o progresso da ordem” (Penna, 1997).

Ao contrário do pensado ainda por uma boa parte dos estudiosos, Machado pareceu conhecer bem não apenas a “inviabilidade” de um terceiro reinado, mas “aceitar” historicamente – sem adesão acrítica, naturalmente – esse progresso da ordem republicana em que inevitavelmente se misturavam retrocessos autoritários e algumas virtualidades democráticas59. Assim, poderemos ler um sentido radicalmente ambivalente nascendo em cada capítulo de Esaú e Jacob, tal como já acontecia em muitas crônicas de A Semana. Ambivalência resultante não só da discrição e dos constrangimentos profissionais de um alto funcionário do Ministério ou do clima político de repressão e censura do período60, mas também provavelmente da apreensão diante da velocidade

58 A expressão é de Joaquim Nabuco, numa carta privada a André Rebouças (ib.: 182). Para uma análise das reações

conservadoras ao Florianismo/Jacobinismo, ver QUEIROZ, 1986: 164-67 e 256-61. Também sobre os governos Deodoro e Floriano: Guillaume Azevedo M. SAES, “A República e a Espada: a primeira década republicana e o florianismo”, 2005. Sobre a Revolução Federalista: Luiz R. TARGA, “1893, Rio Grande do Sul: qual o significado da revolução?”, 1993.

59 Cf. R. MAGALHÃES JR. “Machado de Assis e a República” in: __. Ao redor de Machado de Assis, 1958. 60

Como disse Raymundo MAGALHÃES JR., a aparente neutralidade e o absenteísmo políticos de Machado de Assis foram uma reação à “política truculenta da época” (Machado de Assis desconhecido, 1955, p.78), em que deve ter pesado também um pouco do temperamento e do estilo do autor, do “gosto de catar o mínimo e o escondido” (J. M. MACHADO DE ASSIS, “A semana, 11/11/1897”, OC, III, 788). No auge da crise, no “terror político” (MACHADO DE ASSIS, A semana, 08/05/1892, 1996, p. 55) registrado pelo cronista da Gazeta de Notícias (que fazia oposição

das mudanças e da suspensão do juízo face à abertura de horizontes promovida pelo novo regime burguês, que parecia pois era de fato “anárquico”, no sentido do despotismo do capital privado sobre a sociedade, já conformando a massa para a ditadura do trabalho alienado e a marginalização social. Eis o convite aberto à expressão irônica e alusiva, que mimetizava o próprio caráter

transitório, opaco, ambivalente e turbilhonar dessa fase histórica do país. É dessa expressão reticente que nasce parte da atmosfera mimética de Esaú e Jacob, embora a partir de um prisma

muito distinto, a saber, o de um pleno representante da elite imperial, que vê radicalizada ainda mais, nesse momento, sua condição de homem supérfluo (para lembrar a novela de Turguêniev), num mundo de tradições e privilégios aristocráticos em franco declínio. Nesse sentido Aires será também, mais particularmente, um homem obsoleto. Vejamos em detalhes algumas crônicas desse período conturbado.

Na ocasião da morte de Floriano Peixoto, para começar pelo final do trajeto, o cronista deixa clara ambivalência sobre o significado dessa figura bifronte da República. Inicia o texto aludindo ao lema positivista que serviria de modelo futuro para Esaú e Jacob: “Os mortos não vão tão depressa, como quer o adágio; mas que eles governam os vivos, é cousa dita, sabida e certa”; mas na sequência, tanto recorda a coincidência de sua morte com a de Saldanha da Gama (um dos líderes da rebelião da Esquadra), na semana anterior, como o compara a um fio forte no tecido da história (note-se o prisma contido pela mesma metáfora central de Esaú e Jacob), responsável pela consolidação do novo regime. Liga-o ao grupo de Quintino Bocaiúva, vale lembrar, um republicano histórico que também foi, ao lado de Ferreira de Araújo, Saldanha Marinho e outros republicanos, um amigo pessoal seu: “O marechal Floriano era dos fortes. Um de seus mais ilustres amigos e companheiros, Quintino Bocaiúva, definiu na tribuna do senado, com a eloquência que lhe é própria, a natureza, a situação e o papel do finado vice-presidente. Bocaiúva, que tanta parte teve nos sucessos de 15 de novembro, é um dos remanescentes daquele grupo de homens (...)”61. Em crônica passada, o escritor já havia constatado que os relógios “andavam muito mais depressa” “depois da morte de López”, i.e., após o fim da Guerra do Paraguai62

. Dessa vez, conclui soltando a imaginação: “a verdade é que temos vivido muito nestes seis anos, mais que nos que decorreram do combate de Aquidabã à revolução de 15 de novembro, vida agitada e rápida, tão apressada quão

liberal ao regime florianista), a repressão e as guerras civis bloquearam efetivamente a opinião pública e toda crítica social. Um tempo violento que não só censurou a imprensa como exilou e eliminou fisicamente dissidentes, após dissolver os partidos políticos existentes. Nas páginas do jornal, o cronista foi denunciado por um leitor como “monarquista”, o que praticamente selou o formato críptico das crônicas desse período conturbado, que por sua vez determinou inúmeras imagens e metáforas do romance. Ver também Antonio CANDIDO, “Os primeiros baudelairianos” (in:__. A educação pela noite & outros ensaios, 2003).

61

MACHADO DE ASSIS, A semana, 07/07/1895 (1957a, vol. 2, p. 391).

cheia de sucessos”63

. O que significaria constatar que há uma aceleração “positiva” do ritmo histórico neste país de perpétua história lenta? Este ritmo novo, acelerado e imprevisível imprime-se na consciência do tempo após o Encilhamento e as disputas entre facções oligárquicas regionais, principalmente a partir de 1892 e 1893, anos da Revolta da Armada e da Revolução Federalista.

Noutra dessas crônicas completamente farpadas e lacunares64, o ano de 1893 é comparado ao “ano terrível da Revolução” (o centenário do Terror francês), enquanto o século XIX inteiro poderia ser contado, segundo o cronista, pela prosa irônico-humorística de Heine (um dos artistas da “estética antiburguesa”, segundo Oehler65

) como o do “advento do anarquismo, se é certo que este governo inédito tem de sair à luz com o fim do século”. “Ninguém melhor que ele faria o paralelo do legitimismo do princípio ao anarquismo do fim, Carlos X e Nada”, ou seja, uma mudança radical de perspectivas, uma polarização política extrema entre direita e esquerda, algo que soa ao mesmo tempo caricatural para tal contexto de manutenção da ordem oligárquica e estado ditatorial66. Lembrar a ocasião exata de publicação deste texto (01/01/1894), compreender a articulação lógica de suas partes (cuja técnica reside precisamente em seu embaralhamento) e sempre ter em mente a qual público ele se endereçava é o caminho certo para a compreensão de suas possíveis significações, uma década depois reorganizadas em Esaú e Jacob. Num sentido paradoxal, provavelmente para chocar o leitor conservador, é dito que o ano brasileiro de 1893 deveria ser incluído nesse movimento global, ou seja, como uma das “datas históricas” da implantação do anarquismo, “pelos golpes” que trouxe consigo, enfim, como o “princípio de sistematização do mal”. “Que será o mundo contigo?”, pergunta o cronista aparentemente angustiado, terminando por invocar Xenofonte e suas contradições discursivas – um gesto repetido mais tarde por Aires no romance, no primeiro dia da República (EJ, LXI), só que aqui num sentido claramente conservador e apologético (isto é, Aires defende, contra a “sublevação dos povos”, a real “pessoa de Ciro”, o rei do vasto Império Persa, que dominou do Mediterrâneo à Índia). O contexto histórico da crônica, no entanto, é claro: um governo republicano centralizador se afirma em meio a guerras violentíssimas que explodem contra ele, ameaçando fragmentar o país. Talvez por isso é dito que a “guerra pode ser boa, comparada com o anarquismo”, sendo que “toda a questão (lhe dirá a esquerda) está em definir o que seja bom ou mau”. Nesse tempo, vale lembrar, o florianismo de rua, ligado

63

Ibid., 07/07/1895, p. 391.

64 Ibid., A Semana, 01/01/1894, p. 5-9.

65 Dolf OEHLER, Terrenos vulcânicos, 2004; Idem, O velho mundo desce aos infernos. (Auto-análise da modernidade

após o trauma de Junho de 1848 em Paris), [1988]/1999; Idem, Quadros parisienses – Estética antiburguesa em

Baudelaire, Daumier e Heine (1830-1848), 1997; Anatol ROSENFELD, “Heinrich Heine e o judeu marginal” in:__. Letras germânicas, 1993.

66 Aqui, como se vê, nos distanciamos da interpretação linear de John GLEDSON (“A sistematização do mal: Machado

de Assis, anarquismo e simbolismo” in: GUIDIN, M. et alli. Machado de Assis, ensaios de crítica contemporânea, 2008), que não vê neste cronista qualquer ambivalência ou ponta de ironia nos termos em discussão, mas antes um artista conservador e pessimista, um equivalente nacional de Yeats, puramente temerário diante do futuro.

estreitamente ao jacobinismo popular (não exclusivamente militar), era associado ao radicalismo de esquerda em geral. Floriano era denominado pelos conservadores como o nosso “Robespierre” (Penna, 1997; Queiroz, 1986). Enquanto “uns fazem a história pela ação pessoal e coletiva”, prossegue a crônica, a “banalidade da direita” é poetizar a realidade: artistas que a “contam e cantam pela tuba canora e belicosa” e “adotam o pior para expô-lo em versos bonitos”, diferentemente de Heine que “tinha a vantagem de o saber expor em bonita prosa”. Mas então a crônica é ligada à “frauta ruda e agreste avena do mesmo poeta” [Camões]. Vivam os poetas!”. Ora, Heine também foi um grande poeta da ironia moderna – vale reforçar: um “ser duplo, cheio de duplicidades e atitudes ambivalentes” (Rosenfeld, 1993: 67-8) capaz de anunciar o evento de uma república proletária e popular (mesmo sendo monarquista e subvencionado pelo rei Luís Filipe etc.) Notemos ainda a ambiguidade dos termos “guerra” e “anarquismo” nessa crônica, podendo significar tanto o bem como o mal, a ordem ou a desordem: o caos sangrento dos combates no Sul (= “anarquia”) foi engendrado por forças oligárquicas contrárias ao positivista Júlio de Castilhos, a Floriano e à unidade da federação, ao passo que o “anarquismo” propriamente político, aqui, representa o oposto do legitimismo reacionário de Carlos X e um verdadeiro enigma (um “Nada” ou um “X”, também de... Xenofonte). Eventualmente ainda, por que não?, o germe utópico de nova ordem social de base “popular-democrática”, que foi tido sempre como o Mal pelas classes conservadoras67, e que, diante do mal da guerra desencadeado por elas mesmas, parece aqui levar toda a culpa imaginária. Que pensar agora desse “princípio de sistematização do mal”?

Um mês depois, a “anarquia” será conectada alusivamente à “dinamite” contida nos

Broquéis de Cruz e Sousa (lançado no fim do inverno de 1893, em meio aos bombardeios da

Revolta da Armada). Tal como John Gledson o faz em seu ensaio, vale citar os dois parágrafos iniciais dessa crônica hiperbólica, principalmente porque Flora, de modo críptico, será associada pelo narrador às mesmas ideias da anarquia, do simbolismo/impressionismo e da dissolução geral:

Há uma leva de broquéis, vulgo dinamite, que parece querer marcar este final de século. De toda parte vieram esta semana notícias de explosões, e aqui mesmo houve tentativa de uma. Digam-me que paz de espírito pode ter um pobre historiador de cousas leves, para quem a pólvora deveria ser, como os maus versos, o termo das cogitações destrutivas. Inventou-se, porém, a maior resistência, e daí o maior ataque, naturalmente, a pólvora sem fumaça, o torpedo, a dinamite; mas, que diabo! Basta-lhes a guerra, como necessidade que é da vida universal. A paz universal, esse belo sonho de almas pias e vadias, seria a dissolução final das cousas. Façamos guerra, mas fiquemos nela.

Talvez haja nisso um pouco de rabugem – e outro pouco de injustiça. A anarquia pode acabar sendo uma necessidade política e social, e o melhor dos governos humanos,

aquele que dispensa os outros. Voltaremos ao paraíso terrestre, sem a serpente, e com todas as frutas. Adão e Eva dormirão as noites, passearão as tardes. Caim e Abel escreverão um jornal sem ortografia nem sintaxe, porque a anarquia social e política haverá sido precedida pela da língua68.

Qual é a relação entre a história nacional recente e o terror anarquista na Europa, os atentados niilistas contra o czar russo, puxados à memória pela recente invenção da dinamite? Provavelmente nenhuma. Aqui, de novo o texto ganha clareza quando lido em chave irônica, logicamente para além do literal: o que o “vulgo” chama dinamite são na verdade broquéis – escudos, armas de defesa de um poeta negro e pobre, um “emparedado” que afirma uma lírica dissonante no coração de uma sociedade racista, desigual e hierárquica. A assim chamada “anarquia” aqui é na verdade uma resistência silenciosamente organizada, bastando-nos lembrar a

boa ordem construtiva desta obra (não por acaso também dual, como as Fleurs du Mal e o Esaú e Jacob) que busca, segundo Ivone Rabello, transfigurar simbolicamente um “inferno social e

psíquico” reprimido: um conteúdo espleenético e doloroso (as “Flores negras do tédio e flores vagas/ De amores vãos, tantálicos, doentios.../ Fundas vermelhidões de velhas chagas/ em sangue, abertas, escorrendo em rios...”) vertido e repousado em um ideal de Forma pura (as “Formas alvas, brancas, Formas claras/... Formas vagas, fluidas, cristalinas”)69

. Ao invés dessa “dinamite” defensiva, o cronista finge defender a “necessidade” da guerra universal – que, trazida ao seu contexto real, equivaleria à defesa dos ataques efetuados pela marinha na Baia da Guanabara contra a... “anarquia”, isto é, contra o assim chamado Marechal “Vermelho” no poder, e, ricocheteando, contra a anarquia literária das “almas pias e vadias”, sustentada pelos “broquéis, vulgo dinamite”, de Cruz e Sousa. Mas logo surge outra coisa. Com seus “maus versos”, brinca o cronista dito “historiador das coisas leves”, essa arte prometeria apenas a “paz universal”, que resvalaria na “dissolução final das cousas” – Gledson lembra aqui do tema do “decadentismo sexual”70

atribuído ao Simbolismo do livro –, ao passo que a imagem contida no segundo parágrafo transcrito é, bem o contrário, a de um Éden ordenado, pacífico, próspero, sem a serpente diabólica. Após essa coleção de exageros, disparates e indiretas, o texto muda de tom, lembrando aquilo que hoje nos parece evidente: há sempre a possibilidade da “rabugem” e da “injustiça” nessas sentenças farpadas. Ou

68 MACHADO DE ASSIS, A Semana, 18/02/1894 (1957a, vol. 2: p. 37-8). 69

Os versos citados são do poema “Antífona” (CRUZ e SOUSA, “Broquéis” [1893] in:__. Obra completa: poesias, 2008, vol. 1, p. 386-7). Para uma leitura da obra do poeta nesse sentido, ver: Ivone Daré RABELLO, Entre o inefável