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CAPÍTULO 2. ESSE OUTRO AYRES: O NARRADOR

2.3. Uma prosa em estado de sítio

2.3.1. O movimento da prosa como lances em uma partida de xadrez

O capítulo d’A Epígrafe estabelece, porém, que o xadrez tem regras e que haverá uma “lei de solidariedade entre o enxadrista e os seus trebelhos”. Toda partida começa com as brancas, seguido por um lance das pretas, e assim alternadamente até o final. Mas o que tem a ver aqui as

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Peças Brancas/Pretas, respectivamente: Reis (Santos/Baptista, que passa para o lado liberal e republicano); Damas (Natividade/D.Cláudia, a lady Macbeth das trevas); Bispos (Plácido, ou Aires, o discípulo desse oráculo?/Nóbrega, pela origem, pelo nome, pela causa impossível, pela profecia que foi capaz de fazer sobre a morte de Flora, veremos já por que não incluiremos Bárbara); Cavalos (Pedro/Paulo, mas também Nóbrega que de peão/andador é promovido a cavalo através do encilhamento); Torres (Aires, no alto posto de guardião-vassalo dos barões /D. Rita, cuja casa fica na Tijuca, formando “paredão rochoso”, ou então o Ayres liberal-romântico do passado, capaz de se desnaturalizar e refletir sobre si?). Uma tentativa de decifrar o "referente” de cada peça foi tentada por Wagner MADEIRA, 2001. Mesmo Sant’Anna, Gledson e Caldwell não se interessam muito por esse subtema no capítulo. O que vale ressaltar, no entanto, é que Machado conhecia bem o xadrez. Resta saber quem joga a partida entre “pessoa e pessoa”. Em Iaiá

Garcia a batalha era entre Jorge e Iaiá. E em Esaú e Jacob? Segundo um enxadrista estudioso de Machado, na

mitologia grega, “Caíssa” é a ninfa considerada a deusa do xadrez. “Em 1763 Sir William Jones escreveu o poema “Caíssa” ou o “Jogo de Xadrez”, inspirado em um longo poema medieval escrito em latim por Marcus Hieronymus Vida em 1513. No poema, Marte, o deus da guerra, convence o deus dos esportes a inventar um jogo para distrair o coração de Caíssa, para que pudesse conquistar o seu amor. (...) Em 1836, ao ser republicado na Le Palamède, primeira revista sobre xadrez de que se tem conhecimento, Caíssa ficou conhecida como a deusa do enxadrismo e também como uma forma poética de se referir ao jogo e uma expressão que enseja boa sorte”. (C. S. SOARES, “Machado de Assis, o enxadrista”, 2008, p. 140-1).

lunetas mágicas de Macedo e o verso de Dante? Ora, se as brancas começam a partida, então isso corresponderia à abertura do jogo:

Capítulo I – “Cousas futuras!”. As brancas sobem alegoricamente o morro do Castelo/Montanha do Purgatório e abrem o caminho para os céus: começam as visões e reminiscências, as descobertas e as revelações oraculares desse narrador de falar dobrado.

Capítulo II- As pretas jogam. “Melhor de descer que de subir”. A referência literária no título deste capítulo é um verso de Camões, que põe negros aguerridos contra Fernão Veloso e os portugueses na África – que, escorraçados por “uma espessa nuvem de setas e pedradas”, são obrigados a sair correndo do outeiro morro abaixo210. Agora se trata de encobrir: cobrir os brancos por uma nuvem de pedras e flechas, mas também cobrir o rosto com o véu, esconder a vergonha de duas damas ricas irem procurar os serviços de uma cabocla humilde no morro do Castelo: “Se as

descobrissem, estavam perdidas, embora muita gente boa lá fosse” (EJ, II, g.n.). O desprezo dos

pobres novamente sai da boca de Ayres, cujo esporte aqui é rebaixar os subalternos.

Cap. III – “A esmola da felicidade”. As brancas (Natividade, é claro) jogam uma esmola na bacia das almas e Nóbrega ganha seu futuro passaporte para o céu etc.

Cap. IV – “A missa do coupé” – As pretas jogam: João de Melo falece. Uma missa num lugar pobre e apagado do centro do Rio é mandada rezar em seu nome. Mas nem o nome inteiro de João é respeitado pela família Santos, pois um sobrenome seu foi apagado (Ayres é quem informa: “Ele era, se estou bem informado, João de melo e Barros”). Nada mais será lembrado no futuro, nem João, nem a missa, nem o coupé da missa que “gozou do assombro local”, e que obviamente valia mais que o falecido segundo os destaques sarcásticos do narrador. O capítulo serve para confirmar a ideia maior atrelada a este princípio construtivo – o nada do mundo capitalista montado por cima da multidão invisível dos subordinados e os espoliados.

E assim, sucessivamente. Capítulos ímpares representariam os lances das brancas; capítulos

pares os lances das pretas. O que temos aqui? O princípio construtivo do livro – descobrir e

encobrir – posto em ação, costurando todo o enredo do livro, colocando-o literalmente em movimento.

Esta chave de leitura da obra, até onde pude pesquisar, nunca foi apresentada pela fortuna crítica, apesar de ser simples e intuitiva, bastando imaginar como funciona concretamente uma partida de xadrez. A indicação de nomes de alguns capítulos (principalmente o primeiro e os dois últimos) abriu-nos a pista de sua decifração, que aqui ofereço menos como certeza do que como hipótese de estudo, e que poderá evidentemente ser confirmada ou reprovada em análises futuras.

Deixo ao leitor o teste de suas potencialidades. A partir dessa chave, levando-a “ludicamente a sério”, não poderemos mapear melhor os movimentos do narrador?

O movimento de descobrir, como vimos ao longo do trabalho, guarda conotações variadas: jogar luz, analisar, revelar, desnudar, explicar de maneira perfeitamente onisciente (as “fotografias do invisível”, “o alfabeto de sensações” etc.), justificar para consagrar e mitificar, logo também

ofuscar os objetos. Como dito algumas vezes, há uma inversão desse movimento em seu oposto.

Neste capítulo nacional da “dialética do esclarecimento”, o movimento de encobrir, quando jogam as pretas, guarda também conotações variadas: esconder, obscurecer, borrar, neutralizar ou atenuar, bloquear ou distorcer informação, mas também diminuir, rebaixar, humilhar, manchar, sujar, escarnecer, destruir, no limite, literalmente enterrar pessoas, mandá-las para os labirintos do inferno (uma fusão do papel de Minotauro e do rei Minòs?) – mas é claro que nesse caso teremos também a

revelação do gesto sádico deste narrador caprichoso, que joga em geral (talvez nem sempre) do lado

das brancas, ou melhor, dos brancos monarquistas. Porém, tudo isso depende de uma boa dose de intuição e de intepretação por parte do leitor, para o lance preciso que está sendo realizado (os “diagramas” referidos pelo narrador, mas abandonados), e, como se sabe, as interpretações podem se multiplicar. Note-se ainda que os dois movimentos parecem se entrelaçar muitas vezes no mesmo capítulo: assim, p. ex., no Cap. V – “Há contradições explicáveis”, capítulo ímpar, jogam as brancas – que nos diz que “explicações comem tempo e papel, demoram a ação e acabam por enfadar”. O que é explicado é a publicidade dada à carruagem e o gozo do assombro local pensado por Santos, buscando atrair olhares e humilhar os pobres na igreja de S. Domingos; um movimento de descobrir que, por outro lado, poderia ser lido, primeiramente, como um acobertamento daquela população pobre e só secundariamente como uma explicação do comportamento de Santos. No fundo, portanto, os dois movimentos são também simultâneos e se combinam, formando o “pensamento interior e único” que nos foi prometido na Advertência. Obviamente não podemos, nem nos interessa, aqui, perseguir esse movimento alternado e simultâneo por completo – tarefa exaustiva e improdutiva depois de um certo ponto, pois nem tudo parece funcionar de maneira mecânica, segundo regras rígidas. Machado de Assis era um artista bom demais para sacrificar sua obra a um simples mecanismo binário, além do mais caprichoso. Resta saber quem ganha a partida. O que segue é uma análise de alguns momentos significativos desse movimento de construção literária, que ainda não tivemos oportunidade de apresentar em sua posição concreta no interior da obra.

Capítulo 3

Nada contra o invisível

O princípio construtivo em ação no enredo

“— Posso concordar com a senhora, porque é uma delícia ir com as suas opiniões, e seria mau gosto rebatê-las; mas, em verdade, não há cálculo. Com os mais, se concordo, é porque eles só dizem o que eu penso. — Já o tenho achado em contradicção.” (EJ, LXXXVII, “Entre Ayres e Flora”). “E nada, nada, nada, absolutamente nada, uma simples recusa, uma recusa atrevida, por que enfim quem era ela, apesar da beleza? Uma criatura sem vintém, modestamente vestida, sem brincos, nunca lhe vira brincos às orelhas, duas perolazinhas que fossem” (EJ, CIV, “A resposta”)

Um clima permanente de enigma envolve a leitura de Esaú e Jacob. Em parte, significações centrais da obra escondem-se por trás de imagens alegóricas (ou como viemos propondo: alusivo- alegóricas) como as que já examinamos: o ovo, os pássaros, as barbas, as peças de xadrez, a flor, deus e o diabo, as ideias coligadas de céu e inferno ou chão, terra e abismo, o imaginário imperial e republicano etc. etc., degradando-se intencionalmente às vezes em charadas mistificadoras. Os enigmas que importam pedem decifração em conjunto com a estrutura e o sentido global da composição, não uma interpretação de significantes isolados211. A outra parte das significações, tanto ou mais interessantes que as alusões e alegorias históricas, subjaz na forma mesma das relações sociais configuradas, indicada em detalhes materiais às vezes mínimos, que resistem de ser absorvidos e depõem contra a forma do discurso ostensivo do narrador.

Neste capítulo, propomos discutir estes momentos episódicos significativos de resistência à significação imposta por Ayres. Para isso, retomaremos a posição particular desses episódios na estrutura global do romance. Através de seu princípio construtivo irônico, que identificamos com o processo de “descobrir e encobrir”, de pôr e de suspender determinações, e com a sua ideia norteadora de “nada em cima de invisível”, o romance se põe em movimento, isto é, desdobra-se como um enredo. Enredo tênue, vago, ambivalente, num ritmo arrastado, sem ação, ou com ação

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Adorno diferencia a charada e o enigma nas obras. A charada consiste na mistificação intencional. O enigma refere- se antes à estruturação da obra, ao conteúdo de verdade nela inscrito como experiência social formalizada. “Não há enigma a resolver, trata-se apenas de decifrar a sua estrutura (...) Resolver o enigma equivale a denunciar a razão da sua insolubilidade” (...) “As obras de arte são enigmáticas enquanto fisionomia de um espírito objetivo, que nunca é autotransparente no instante da sua aparição”. (ADORNO, [1969]/1993, p. 142-3 e 149).

constantemente interrompida. Este enredo é projeção do princípio construtivo identificado, que semeia formalmente o duplo e a duplicidade por todos os poros do texto, como esperamos ter demonstrado, e que se traduz também na lógica de um certo “olhar excessivo”, um “ver a mais” de gozo, colado à máscara da diplomacia e ao ethos de uma classe, bem fundados nas configurações históricas, materiais, morais e sociopsíquicas anteriormente discutidas.