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CAPÍTULO 1. UM MUNDO DUPLO Um panorama de Esaú e Jacob

1.3. O duplo no campo das leituras estéticas

Do lado oposto a esse campo de leituras “míticas” ou “metafísicas”, ganham força esclarecedora as leituras que se concentram tecnicamente em sua configuração estética. Para isso, dá-se em geral uma dessubstancialização do fundo, muitas vezes tornando-o quase um pré-texto para o livre jogo da criação estilística, dialógica e intertextual28, retórico-narrativa29, lúdica e irônica30, paródica, tragicômica, cômico-fantástica e carnavalesca31, ou ainda, para um interessante “mosaico” de “formas simples” combinadas como pontos num grande painel, que se aproximam das artes plásticas da belle époque (impressionismo, pontilhismo, modern style, simbolismo), quase como uma experimentação virtuosística sobre a lógica criativa especular do narrador ou uma típica provocação estética de “fim de vindima”32.

Desse campo de leituras propriamente estéticas nasce o entendimento da lógica do duplo como um “sistema de dualidades” no romance. Segundo a formulação original de Sant’Anna, este sistema se distribuiria pelos níveis da narração (o par Aires/narrador anônimo), das personagens (características cruzadas interna e externamente, formando pares etc.) e da linguagem (nível dos significantes, do estilo, das frases e nomes de capítulos etc.), todos eles tocados por movimentos de “duplicidade” (A x B), “alternância” (A ou B) e “integração” (A e B), podendo ainda gerar variantes como “pausas na oposição” (A = B) e “troca na posição” (B x A) (Sant’Anna, 1984: 128 e 138). Com habilidade ímpar, o autor formalizava assim alguns movimentos complicados dessa prosa, embora não recuperasse todos os seus pressupostos, nem tirasse sempre as necessárias consequências desse esquema abstrato.

Hoje, é amplamente aceito pela crítica que o romance trabalha com a figura do duplo (consubstanciado centralmente na luta entre Pedro e Paulo) e da duplicidade, que se ampliam nas ideias de dualidade e duplicação e suas muitas ramificações e derivações: identidades cindidas,

28 Cf. Gilberto Pinheiro PASSOS, As sugestões do conselheiro – A França em Machado de Assis (Esaú e Jacó e Memorial de Aires), 2008; Marta de SENNA, O olhar oblíquo do Bruxo: ensaios machadianos, 2008a e Idem, Alusão

e zombaria: considerações sobre citações e referências na ficção de Machado de Assis, 2008b.

29 Ismael A. CINTRA, “Retórica da narrativa em Machado de Assis – Esaú e Jacó”, 1985; Dilson Cruz, O éthos dos romances de Machado de Assis, 2009; Abel Barros BAPTISTA, “Autor defunto”, in:__. A formação do nome: duas

interrogações sobre Machado de Assis, 2008; Idem, “Filosofia do par de lunetas” in: Autobibliografias, 2003.

30

Comentadores como BARRETO FILHO destacam o “divertimento” como núcleo do livro (Introdução a Machado de

Assis, 1947), algo seguido pela leitura estruturalista de Affonso Romano SANT’ANNA, que o reduz a um jogo lógico

com significantes míticos e históricos (“Esaú e Jacó” [1973] in:__. Análise estrutural de romances brasileiros, 1984), e também, em certa medida, por Wagner MADEIRA, que busca ler a obra à luz da teoria do lúdico de Huizinga e de teorias da ironia, mesclando-as a pontos de vista materialistas de Schwarz e Gledson (Machado de Assis: homem

lúdico – uma leitura de Esaú e Jacó, 2001, esp. p. 46).

31 MERQUIOR, 1977; Dirce Côrtes RIEDEL, Metáfora: o espelho de Machado de Assis, 1978; Ronaldes de Mello e

SOUZA, “As máscaras do narrador em Esaú e Jacó” in: __. O romance tragicômico de Machado de Assis, 2006.

32

Alexandre EULALIO, op. cit. e também: “De um capítulo de Esaú e Jacó ao Painel d’último baile” [1983] in: ___.

simetrias e contrastes entre personagens, alternância e reversibilidade de posições, redundâncias, paradoxos, luta e complementaridade de opostos, afirmações minadas por dúvidas, ambiguidades, sugestões, insinuações, segredos, alusões, indefinição de contornos, conciliação e atenuação de elementos díspares etc. Sant’Anna mostrou sua reflexão nos vários níveis da obra, mas subestimou e mal interpretou outras configurações essenciais implicadas, principalmente no que tangem à volubilidade estrutural da narração e à ambiguidade das personagens (mas é bom lembrarmos que o texto é do início dos anos 70, não havendo à época parâmetros consolidados para uma discussão histórico-materialista como as efetuadas por Candido, Schwarz, Gledson ou Pasta Jr.). Assim, ele

separa uma camada mítica e uma histórica, que não passariam de aspectos superficiais do sistema

de dualidades, meros significados aspectuais ou casuais da enunciação de significantes puros (ib.: 123). O problema da volubilidade implicado nessas dualidades converte-se, assim, numa “paixão pelo jogo” da escrita (Sant’Anna, 1984: 132), sem que o crítico se perguntasse à época qual o significado histórico-social de um ato contínuo de transgressão em que o “desvio passa a ser norma” (ib.: 133), no qual o que está em “jogo” é uma espécie de mitificação consciente e esclarecida da História; ao passo que Ayres, a antítese e a ambiguidade em pessoa, torna-se supostamente um “mediador” ou “conciliador” perfeito, superior aos demais por alcançar as “leis do sistema” de dualidades, tornando-se capaz de passar da oposição e da alternância à “integração” das contradições (ib.: 142-3). Dobrando a obra sobre si mesma, esvaziando seu conteúdo, nesse ponto essa leitura logicista converte-se em ideologia total.

No tópico sobre a organização da narração, valeria lembrar outro traço estrutural de primeira ordem, ausente de seu esquema meramente formal: em termos de divisão dos capítulos, a obra se reparte em duas metades quase exatas; num total de 121 capítulos, os sessenta primeiros são dedicados ao regime monárquico, os sessenta seguintes ao regime republicano, mais um capítulo final denominado precisamente “Último” (EJ, CXXI) – uma espécie de fin de partie que profetiza novas “cousas futuras”. Além desse detalhe capital inobservado pelo crítico estruturalista, falta um outro pormenor essencial da estrutura que põe o sistema de dualidades realmente em movimento na

instância formal-substancial do enredo – o ato de “descobrir e encobrir” do diplomata (EJ, XCVIII)

–, correspondendo a um princípio construtivo socialmente produzido, que unifica o que parece “dual”. Para vislumbrar seu funcionamento e suas consequências teremos de passar às leituras históricas.

Em termos de figurações do duplo constitutivas da substância “mítico-literária” da obra, o esquema de Sant’Anna também não permite ultrapassar os célebres gêmeos/sósias e algumas ligações duais entre personagens e efeitos retóricos, mas podemos lembrar as figurações de sonhos, sombras e fantasmagorias que superpovoam a narrativa: lugares habitados por espíritos ou seres

míticos como fadas, anjos e feiticeiras, retratos e simulacros de discursos políticos, a estátua (e o espelho) de Narciso no jardim da família Santos, passando pela cisão do eu entre corpo e espírito, consciente e inconsciente (como em Aires, Santos, Nóbrega, entre outros), pelos distúrbios de percepção como o delírio e as alucinações de Flora, a onipotência das ideias e a difícil distinção entre realidade e fantasia entre as personagens, além dos fenômenos místicos sugeridos de transe e possessão (cabocla), metempsicose (Plácido), pacto e comunicação com o plano divino (adivinhação, missas, orações e esmolas) e de vários fenômenos ligados à mimese (do comportamento mimético de personagens entre si à representação artística e teatral, para não mencionar ainda a profusão gigantesca de referências intertextuais que promovem a mimese ou a paródia literária, que vão da mitologia antiga e da Bíblia à literatura contemporânea); enfim, uma série de simetrias e paralelos de toda ordem entre seres diferenciados e fantasticamente semelhantes, complementares e opostos, em perpétuo estranhamento e duelo de vida e morte. Como o leitor do romance pode intuir nessa sequência, imergimos nesse estranho universo reflexivo de duplos e duplicidades desde o Capítulo Primeiro33.Mas aqui pairamos num nível de determinação ainda meramente descritivo, pois a questão fundamental deve ser: por que o enredo do livro ganha essa forma ou é narrado dessa maneira?

A partir da leitura de Sant’Anna, o conselheiro Ayres foi identificado como autor e narrador “parcial” do romance, que seria complementado por uma voz onisciente e veicularia a voz autoral do próprio Machado. De fato, o crítico mostra como o narrador é capaz de distanciar-se da personagem do conselheiro Aires. O que para nós seria, ao contrário, uma prova a mais que o confirma, bem pensadas as coisas, como o único narrador do relato: nada mais natural para um romance moldado pela lógica do duplo, da duplicidade e do desdobramento, tendo como base “um pensamento interior e único através das páginas diversas” (EJ, Advertência, §3). No entanto, tal leitura solidificaria outro consenso na tradição crítica, sancionando uma opinião que vinha de longe, desde as leituras de Alfredo Pujol, Augusto Meyer, Lúcia M. Pereira, Agripino Grieco e Eugênio Gomes, inteiramente coladas à opinião da voz narrativa: Flora é “indecisa” e “aceita os dois” rapazes, ou, por outra, tem “sede de perfeição”, escapando à mediocridade geral junto com a outra bela alma da obra, o conselheiro Aires34. Através da adoção do semblante da cientificidade (era o

33 Além da contribuição de Sant’Anna (1984), uma das melhores explorações do mundo de duplos e duplicidades no

romance foi feita por Carla Mourão NEVES, “Em demanda da identidade – a duplicidade em Esaú e Jacó de Machado de Assis”, 2000.

34 Flora é constantemente igualada, ainda hoje, à personagem de Maria Regina do conto Trio em lá menor (cujo destino,

revelado no final, é oscilar entre dois homens-astros: “é a tua pena, alma curiosa de perfeição; a tua pena é oscilar por toda a eternidade entre dois astros incompletos, ao som desta velha sonata do absoluto: lá, lá, lá...” OC, II, 509). Assim, como dizia Lúcia M. PEREIRA: “Os gêmeos, cuja inimizade começou no seio materno, estavam predestinados a ser inimigos. E Flora, disputada por ambos, aceitando a ambos, porque um completava o outro e juntos fariam um homem perfeito, é irmã de D. Benedita, da heroína de ‘Trio em Lá Menor’ e de tantas indecisas

auge do estruturalismo), o sistema criado confirma a alma “fáustica” de Flora (cf. EJ, LXXXI, “Ai, duas almas...”), que de “inexplicável” passa a ser totalmente explicável pelos esquemas lógicos de Sant’Anna acima descritos: como diz Ayres, afinal, ela certamente quer um dos dois rapazes (oposição entre A x B), mas morre de irresolução (alternância entre A ou B), aceitando ambos (A e B, como diria Natividade num certo momento) ou demandando uma síntese absoluta impossível (integração real de A e B); muito embora o crítico, é bom salientar sua sagacidade, quase perceba o passo em falso desses últimos lances arquitetados por Ayres, num capítulo decisivo do romance (EJ, C, “Duas cabeças”), como veremos melhor adiante (Cap. 3)35. A alternativa formal que escapa aos esquemas do crítico é a de uma não-identidade de Flora: nem A, nem B, pois há um ser social e relações reais exteriores a esse sistema de coordenadas ilusório.

Uma crítica geral dessas leituras, que poderíamos denominar também, no limite, como formalistas, colocaria o problema da história e da gênese peculiar da forma fundamental do duplo e da duplicidade: qual sua razão imanente? Qual sua relação com o contexto histórico brasileiro? Que feição do autor/narrador é por ela mediada? Em suma, como o contexto, objetivamente formado,

sedimenta-se enquanto texto capaz de fazer transparecer contradições sociais36? Questões clássicas na tradição da crítica materialista, mas que a nosso ver até hoje não foram suficientemente desenvolvidas. Sem nunca esquecer aqui, como lembra Antonio Candido, da “relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la rigorosamente, pois a mimese é sempre uma forma de poiese”37.

A partir de seu “Esquema de Machado de Assis” (um texto apresentado no estrangeiro em abril e maio de 1968), Candido colocaria em discussão o “aparente arcaísmo da técnica” do narrador machadiano, que suspende a ilusão da pura objetividade e a mania de inventário do narrador realista/naturalista tradicional através do livre cultivo do “elíptico, incompleto, fragmentário, intervindo na narrativa com bisbilhotice saborosa, lembrando ao leitor que atrás dela

figuras machadianas, inquietas e enigmáticas.” (Machado de Assis, [1936]/1949, p. 182). Mais tarde, completaria o registro: a moça oscila entre o espírito cediço e a “sede de perfeição” ou a frustrada “busca do “ideal”, que lhe destacaria da bitola comum da prosa quotidiana (Prosa de ficção – de 1870 a 1920 – história da literatura brasileira, [1950]/1988, p. 95-6.). Pondo de escanteio a figura do narrador do conto “Manuscrito de um sacristão”, que é um “sacristão filósofo”, Flora poderia também ser aproximada da figura mística e histérica (“natureza feminil”) de Eulália, “a eterna noiva sem noivo”, “punida e obstinada” pelo ideal da perfeição amorosa (in: Histórias sem data, [1884], OC, II, 443, 445 e 447).

35 Sant’Anna descobre a falsidade, mas prefere pactuar com o narrador e o “enigma” de um “vínculo escondido” que só

Aires percebe no desenho de Flora: “Não é que Flora consiga uni-los, o fato é que ela não consegue separá-los. A operação, portanto, é inversa: eles aparecem congeminados, como no capítulo ‘Duas Cabeças’, porque ‘as duas cabeças estavam ligadas por um vínculo escondido’, que o desenho de Flora não mostra, e a narrativa não esclarece, porque esclarecer aquilo que é ‘inexplicável’ é negar o próprio enigma.” (1984, p. 140, grifo nosso).

36

Cf. Theodor W. ADORNO, Teoria estética, [1969]/1993, p. 15, 104, 161.

estava a sua voz convencional”38

. Por outro lado, continua o crítico, a ironia machadiana trata de “sugerir o todo pelo fragmento, a estrutura pela elipse” (ibidem), com o que discretamente ressalta, especificando sua matéria histórica, o “estranho fio social na tela do seu relativismo”:

Pela sua obra toda há um senso profundo, nada documentário, do duelo dos salões, do movimento das camadas, da potência do dinheiro. O ganho, o lucro, o prestígio, a soberania do interesse são molas dos seus personagens, aparecendo em Memórias póstumas de Brás

Cubas, avultando em Esaú e Jacó, predominando em Quincas Borba, sempre transformado

em modos de ser e de fazer. (ib.)

Sem nomeá-la expressamente, o crítico descreve aqui as características fundamentais da ironia machadiana, especializada na revelação de todo tipo de duplicidade, incongruência ou contradição entre o ser e o parecer de personagens, fenômenos, eventos. Por certo, ele tinha em mente os principais personagens e narradores da segunda fase como Brás, Bento e Ayres: “[o]s mais desagradáveis, os mais terríveis dos seus personagens, são homens de corte burguês impecável, perfeitamente entrosados nos mores da sua classe” (ib.: 31). Note-se a simultaneidade necessária de perspectivas aparentemente distintas: de um lado, o foco no relativo e no parcial, na consciência fragmentária, presa ideologicamente à aparência, ou como diz ainda, o “senso dos sigilos da alma”, do outro, a conexão implícita dessa consciência com a política dos salões e o poder do equivalente geral, a visão do todo que articula uma “compreensão profunda das estruturas sociais” transfiguradas na “imanência da obra” (ib.).

A partir disso, não se trata de enxergar na concepção desse narrador que tudo cita e parodia, relativiza e inverte, uma visão sobre a “condição humana” tida como jogo estético com as aparências. Nem, como vem se generalizando na crítica machadiana das últimas décadas, a ideia de um “drama tragicômico” ou “carnavalesco”, principalmente quando se considera que a Voz desse narrador não vem de baixo, do riso popular e de tradições comunitárias vivas39, nem de um “pluralismo multiestratificado” que estruturaria “o ser do homem e do mundo” pela contradição ou numa “duplicidade originária dionisíaca” através de uma “gaia ciência” da ironia (Souza, 2006: 41 e 35). Pois uma coisa fica clara, inclusive às vezes para quem realiza esse tipo de leitura: esta voz vem sempre do alto, da classe dominante brasileira – uma voz escarninha de desprezo da história e

dos homens, voz de quem participa ativamente na “farsa social generalizada” (ib.: 166) que ela

38 Antonio CANDIDO, “Esquema de Machado de Assis” [1968] in:__. Vários escritos, 1970, p. 22.

39 Aplicando os esquemas de Bakhtin do dialogismo e da literatura carnavalizada através do recurso à chamada tradição

luciânica provinda da sátira menipeia (vide RIEDEL, 1979; Enylton Sá REGO, O calundu e a panacéia: Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradição luciânica, 1989) ou da ironia romântica, esquece-se geralmente a origem social de tais formas ou qual sua função em um determinado contexto (Rabelais, Sterne, Dostoiévski, Sterne, entre outros autores da literatura europeia). O romance certamente internaliza múltiplas vozes, estilos e pontos de vista. Mas será ele “polifônico” quando todas as vozes, conforme diz a Advertência, remetem a um “pensamento interior e único”?

mesmo descreve ou inventa, e que supostamente denunciaria e criticaria. Ou se se preferir, tais movimentos de paródia e relativização existem, mas nem sempre significam o seu valor de face, e enganam justamente ao sacralizar a aparência, a obscuridade e a contradição, elevando-as a uma condição geral ou originária qualquer da vida ou do ser.

Daqui derivam outras abordagens desse campo, que costumam ainda conceber Aires como um “diplomata atilado”, que redescobriria e representaria o Brasil de forma certamente “oblíqua” e “matreira”, mas também “cordata”, “polida”, “cautelosa”, exibindo uma terna devoção ao particular. Paradoxalmente, percebe-se que não é bem assim, pois este último sairia na verdade muitas vezes distorcido e rebaixado pelo brilho espetacular de referências intertextuais de alto(a) prestígio/prestidigitação de uma “poética diplomática” (Passos, 2008: 119, 125, 137); como sabido, referências universais quase sempre disparatadas face às “calamidades” sociais brasileiras (como fica explícito em EJ, XXXII) e ao interesse particularista que as neutraliza em conjunto. O livro do Gênesis, Dante, Homero, Racine, Shakespeare, Camões, Goethe são usados para comentar temas como uma suposta profecia de uma briga no ventre que jamais passou de sugestão, o caráter efêmero de Pedro e Paulo, a moral dúbia de Nóbrega, a presumida indecisão de Flora, o caráter divino e venturoso de Natividade, o suposto coração dividido e pactário de Flora. Por meio da literatice, o particular, muita vez calamitoso, pode sair muito bem poetizado e encoberto, como essa própria crítica reconhece; em suma, apesar de refletida como vaga, ofuscante, exibida ou admitida abertamente como mentirosa pelo conselheiro do ar, eis, segundo essa crítica, uma representação que seria “matizada”, “sugestiva” e mesmo talvez pluralista: “é preciso encobri-lo [o país] de algum modo, já porque detesta a ênfase, já porque lhe falece uma visão monolítica da existência” (ib.: 18). “Por trás da máscara”, teríamos um autor em busca de “valorização do pecúlio literário nacional e estrangeiro” (ib.: 133), principalmente da tradição literária francesa. Com mais razão ainda, nesse caso por extenso comparatismo intertextual, Flora continua aqui a ser explicada – pois realmente seu enigma social pede para ser decifrado, não celebrado – pela imanência da narrativa esteticizada dessa prosa diplomática: “por força de seu caráter trágico, transistórico, mais bem compreendido pelo viés do mito” (ib.: 64). O que faz de Flora uma personificação mítico-literária, segundo o mesmo molde abstrato de outras personagens (principalmente Natividade, Pedro e Paulo).

Através dos três casos acima examinados, percebe-se que a crítica estética amiúde não se separa tão fortemente quanto parece do campo das leituras “míticas”. O que poderia ser afirmado, para concluir, principalmente a respeito dos esquemas lógicos de Sant’Anna, quando não descobrem a estratégia narrativa que os suporta, como eles são efetivamente usados (o movimento de descobrir e encobrir, como dissemos), qual sua função dentro da economia do texto, enfim, o interesse social circunstanciado que funda o ponto de vista da narrativa. Ponto de vista que, aliás, é

comprado por ele integralmente, como se o narrador “enxadrista” se limitasse à inocente “substância do lúdico”, à “liberdade” de um “jogo com o nada”, isto é, como se ele se restringisse à neutralidade de um “exemplar desempenho” ficcional, que não teria lastro, nem lado na história (1984: 153). Restaria perguntar aos trebelhos desse jogo diplomático, ou antes aos que dele não participam e os suportam materialmente em meio à catástrofe social, o que pensam sobre tal exercício esteticista.