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Um livro situado entre dois regimes – o processo de transição do Império à República

CAPÍTULO 1. UM MUNDO DUPLO Um panorama de Esaú e Jacob

1.4. O duplo no campo das leituras históricas e histórico-alegóricas

1.4.1. Um livro situado entre dois regimes – o processo de transição do Império à República

O que vai sempre implicado nessa narrativa suspensa no ar é o longo processo que se iniciou com a Lei de Extinção do Tráfico Negreiro (1850), a Lei de Terras (1850), a Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei da Abolição da Escravatura (1888). Isso que acarretou uma espiral cumulativa de mudanças sociais, principalmente no último quarto do século, o que o romance direta ou indiretamente cita e coloca como sua matriz prática, embora de maneira deliberadamente opaca e difusa: o fim da Guerra do Paraguai e o status renovado dos militares no país, o que estouraria na chamada “questão militar” (citada em EJ, LI); a nova articulação do movimento republicano no país (a partir do Manifesto Republicano em 1870 e da fundação do Partido Republicano Paulista em 1872); a expansão da acumulação cafeeira de capitais e de novos meios técnicos (a energia elétrica,

o bonde, a ferrovia, o telégrafo, as novas lojas de comércio, a expansão do jornalismo e do mercado editorial); a grande imigração (o chinês, o italiano, o português também presentes no relato, dando sinal de uma capital-metrópole que atinge mais de meio milhão de habitantes na década de 1890), a urbanização dos modos de vida conjugados aos primeiros surtos da industrialização e do mercado financeiro e especulativo (a febre das ações de 1855 e o Encilhamento, entre 1888-1892), todos entrelaçados no sistema mundial do Capital; a partir disso, a ascensão de novas classes e agentes sociais em surdo conflito com a velha oligarquia territorial (a grande e a pequena burguesia, os funcionários públicos e os militares, os trabalhadores urbanos e o esboço de um movimento popular-jacobino nas ruas, além do movimento operário e das mulheres); por fim, a grande transformação na esfera das ideologias e mentalidades (a afirmação social das “ideias novas” capitaneadas pelo materialismo, em suas múltiplas faces: realismo, naturalismo, positivismo, cientificismo, evolucionismo, social-darwinismo, a cultura da democracia e a ideia do federalismo e da cidadania republicana; a ascensão da imprensa liberal, republicana, feminista, socialista, anarquista etc.)47. Caio Prado Jr. (2012: 96) indica o ponto nevrálgico que abalava o antigo regime: “[O] Império se mostrava incapaz de resolver os problemas nacionais, a começar pela emancipação dos escravos, de cuja solução dependia o progresso do país. E por isso sua estabilidade estava definitivamente comprometida. (...) O último decênio do Império é de completa decomposição”. Em resumo, pode-se lembrar com a ajuda dos historiadores do período que o longo processo de abolição do cativeiro, que se resolve praticamente através da alforria particular e das fugas em massa, não só destrava um regime de racionalização produtiva e mercantilização geral da existência, liberando o capital anteriormente imobilizado na escravaria, como promove a ascensão de novos interesses regionais e de classe, que ultrapassavam as barreiras impostas pelas políticas conservadoras e centralistas do Poder Moderador, do Conselho de Estado e do Império como um todo, sediados no Rio de Janeiro. A esses fatores econômicos e sociais centrífugos acrescentam-se a perda do prestígio dos valores monárquicos e da figura do imperador, a produção de uma cultura científica e democrática de novo calibre no país. Eis o que precipita, enfim, como efeito objetivo desse conjunto de transformações, após uma crise de direção envolvendo o agravamento da questão

47 Para uma análise histórica global do período: Emília VIOTTI DA COSTA, Da Monarquia à República, 1985; José

Murilo de CARVALHO, Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, 1987 e Idem, A formação das

almas (O imaginário da República no Brasil), 2004; Sérgio Buarque de HOLANDA, “Do Império à República” in: História geral da civilização brasileira - O Brasil Monárquico, t. II, vol. 7, 2005; Edgard CARONE, A República Velha (Evolução Política), 1971; Suely Robles Reis de QUEIROZ, Os radicais da República. (Jacobinismo: ideologia e ação 1893-1897), 1986; Jeffrey D. NEEDELL, Belle époque tropical, 1993; Nicolau SEVCENKO, Literatura como missão, 1983 e Idem, “Introdução: O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso”, 1998; Maria

Teresa Chaves de MELLO, A República consentida – Cultura democrática e científica do final do Império, 2007; Caio PRADO JR., Evolução política do Brasil (e outros estudos), [1933]/2012 e História econômica do Brasil, 1979; Nélson W. SODRÉ, Panorama do Segundo Império [1939], 1998; João CRUZ COSTA, Contribuição à história das

militar, a queda do gabinete Ouro Preto em 15 de novembro de 1889. Foi preciso pouco para terminar a agonia de um “Império moribundo”, como observa Prado Jr.: “[U]ma simples passeata militar foi suficiente para lhe arrancar o último suspiro...” (ib.: 96). A famosa afirmação de Aristides Lobo de que o povo assistira à proclamação “bestializado”, sem compreender o que se passava, tem sido largamente exagerada, negligenciando o longo processo de derrocada do Império (Mello, 2007). Os aspectos mais imediatos, como o avanço da propaganda republicana e federalista, a doença de Pedro II e mesmo o agravamento da questão militar são fenômenos contingentes dentro da marcha da mercantilização e do esclarecimento geral do país, da acumulação do capital agrícola, comercial e industrial, da pressão de novos interesses oligárquicos regionais, do aprofundamento da divisão internacional do trabalho e da hegemonia da intermediação financeira do capital-imperialismo inglês. De modo algum a República foi “um raio num dia de céu azul”48 –

como o romance parece querer configurar quando focaliza a alienação cotidiana das elites

endinheiradas, ao mesmo tempo em que traz elementos capazes de desvelar o processo subjacente que desestabiliza o todo. Nesse sentido, o gêmeo republicano Paulo traz ao romance um sinal de tais mudanças no nível do discurso dessas elites – o espírito da “inquietação” ou a retórica do “progresso” positivista nascendo no coração das famílias “liberais” ascendentes, sobretudo entre os seus membros mais jovens, ao mesmo tempo em que busca apontar sua cegueira social e sua falta de enraizamento prático. Não é por acaso que para esse narrador, que toma partido pela

conservação do poder existente seja ele qual for, Paulo apareça, junto com Nóbrega, como o saco

de risos do romance: o mais “lunático” e “petulante” dos irmãos, “[f]irme em que os seus escritos de um ano é que haviam feito a República, posto que incompleta, sem certas ideias que expusera e defendera, e teriam de vir um dia, breve,” (EJ, LXX), ao mesmo tempo em que a narrativa vê-se obrigada a revelar nas entrelinhas a marcha social dessas mesmas ideias e instituições modernas que procura rebaixar. Que são afinal as de uma típica sociedade do dinheiro, que segue um curso contraditório mas ascendente em meio a golpes e contragolpes das diversas facções oligárquicas, colocando a massa popular à margem. Tal seria a linha argumentativa dupla desse narrador ironista – e que só se completa como figura da obra quando percebemos que ele sai também ironizado. Ou seja, é determinado ele mesmo como parcial e mistificador; um homem esclarecido que é parte do mesmo processo social que faz troça e ajuda a obscurecer. O reconhecimento da discrepância entre as ideias modernas e a realidade social brasileira (Schwarz, 2000: “I. As ideias fora do lugar”) não impede de compreender como a racionalidade objetiva do Capital e da modernização formalmente

48 A frase de Marx é retomada por Francisco de OLIVEIRA, “A emergência do modo de produção de mercadorias: uma

interpretação teórica da economia da República Velha no Brasil” in: Fausto, B. (org.) História geral da civilização

impregna todas as práticas sociais, inclusive a forma da narração aqui em questão, pois a essência desse processo modernizador é justamente ser contraditório, combinando liberalismo, autoritarismo e paternalismo de base escravista.

Certamente a Constituição de 1891, de cunho liberal e positivista, freou pautas mais radicais (o voto de mulheres e analfabetos, por exemplo) e mesmo gerou alguns retrocessos nos direitos sociais (desobrigação de investimentos do governo federal em educação e saúde públicas), mas não deixou de promover também possíveis avanços para a época (além dos três poderes, separa Igreja e Estado, abole o senado vitalício e o Conselho de Estado, reinstitui formalmente a igualdade, a liberdade de associação, o habeas-corpus, o ensino público laico, põe fim ao voto censitário e institui o federalismo, que naturalmente ativa as lutas de classes em todos os níveis, isto é, recria o sistema do clientelismo e do coronelismo, substituindo a figuração mais antiga do mandonismo local via Guarda Nacional e Poder moderador). Num rápido flash, o narrador lembra que nesse momento de aprovação da nova constituição, “[n]a rua, onde o encontro de manifestações políticas era comum, e as notícias à porta dos jornais frequentes, tudo era ocasião de debate.” (EJ, LXXXV, “Três constituições”).

Todavia, nada garante a efetividade de transformações sociais há tanto tempo represadas. Na base da pirâmide social, permanecia uma sociedade ainda fortemente agrária, dividida entre um núcleo capitalista mais dinâmico, voltado à exportação, e um outro polo mergulhado em atividades complementares, em modos de vida tradicionais ou de subsistência (Prado Jr., 1979). No Rio da

belle époque, a cidade se dividia e se segregava, principalmente após a grande “regeneração” do

espaço público central da cidade, iniciada ainda no séc. XIX com os planos do prefeito florianista Barata Ribeiro, desenvolvidos com mais força no início do XX – sem tocar um palmo na miséria social dos trabalhadores e dos excluídos da cidade para os bairros afastados e os subúrbios, deixados “à sombra desse jogo imponente de aparências e sortilégios”, uma “realidade surda, contundente e tumultuária” que historiadores como Sevcenko denominam certeiramente como um “inferno social” (1983: 51). “A verdade é que o Império dos fazendeiros”, como ressalta Sérgio Buarque de Holanda, “só começa no Brasil, com a queda do Império” (2005: 330). A burguesia empresarial e a aristocracia agrária não reproduziam no Brasil os mesmos antagonismos do centro europeu, tanto quanto sabemos que os setores médios e o liberalismo bacharelesco mais esclarecido e “progressista” se compunham com o conservadorismo dos grandes proprietários, que, através do sistema de clientela herdado do Império escravista, era capaz de subordinar um batalhão de protegidos, favorecidos e dependentes (Viotti da Costa, 1985; Fernandes, 2006; Schwarz, 2000, 1990, 1997 e 2012). Deste ponto de vista, poderemos entender o conselheiro Ayres como um

Como se percebe, o quadro histórico dessa transição é complexo e contraditório. Apesar da leitura continuísta prevalecer ainda hoje entre os historiadores, há claros sinais que permitem uma leitura mais matizada dos eventos, quando não uma leitura oposta. A primeira década republicana deu a muitos a forte impressão de que algo “novo” poderia surgir na História. Como costuma ocorrer em países periféricos, as superestruturas ideológicas estavam parcialmente à frente das relações sociais arcaicas e da própria base produtiva do país (cf. os trabalhos de Sevcenko, 1983 e Mello, 2007). Assim poderíamos interpretar os significantes da “esperança” e do “medo” (ou receio) trespassando toda a narrativa (cf. p. ex. EJ, LXIV e LXVIII). Por mais que se insista na visão machadiana da continuidade da dominação de uma “oligarquia absoluta” na passagem do Império escravista à República dos coronéis e dos banqueiros49, tal como esta efetivamente se estenderia até 1930, o fato é também que o poder balançou durante os primeiros anos da República florianista – e isso está de algum modo representado em Esaú e Jacob, a despeito da ideologia

conservadora e continuísta desenhada por seu narrador. Uma estrutura que se revela muito mais

móvel, desestabilizada pela grande inflação após a febre do Encilhamento e socialmente conflagrada (Revolta da Armada, Revolução Federalista no Sul etc.), fazendo vir à tona novos grupos sociais (militares, positivistas, florianistas e radicais “jacobinos”, novos artistas, surgimento de uma massa constituída pelas camadas médias, os trabalhadores e o “lumpen-proletariado”) que reclamavam para o regime o sentido democrático que lhe cabia naquele momento contra a velha

ordem de privilégios. A elite paulista devolverá o golpe na sequência com a “política dos

governadores”: um modo suave de dizer Governo de Cúpula – Estado oligárquico completamente alheio às pressões das ruas agitadas das capitais; a começar pela destruição do básico que constitui uma democracia, pois tal como na Bruzundanga de Lima Barreto aqui também os “políticos práticos” conseguiram “quase totalmente eliminar do aparelho eleitoral este elemento perturbador – ‘o voto’”50

. O governo arbitrário do Marechal uniu planos de modernização urbano-industrial, numa visão “progressista” para a época (investimentos em educação, saúde, ferrovias, povoamento do interior), com política financeira ortodoxa, visando a estancar as sangrias e as desordens causadas pelo Encilhamento. Na prática, premido pelas circunstâncias do golpe de Deodoro e da explosão da guerra de interesses regionais, seu governo esteve muito próximo talvez, como o do seu antecessor, de impor-se como ditadura permanente (Carone, 1971: 130-1). Um erro primário em discussão política, no entanto, é a ilusão voluntarista, o falso imediatismo da práxis. Vale refletir que “os

49

Como diz em alemão uma personagem de uma famosa crônica publicada poucos dias antes da Abolição, provavelmente para despistar uma possível censura: “Es dürfte leicht zu erweisen sein, dass Brasilien weniger eine

konstitutionelle Monarchie als eine absolute Oligarchie ist“, MACHADO DE ASSIS, “Bons dias!, 11 de maio de

1888” (OC, III, 519).

homens fazem a sua própria história, mas não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram”51. Se na França do Segundo Império à tragédia sucede a farsa, aqui a “farsa” resulta de uma tentativa de ruptura malograda, que apareceu à época como a única alternativa viável; se o peso das tradições mortas, como reconhecia também o positivismo, continua a “oprimir o cérebro dos vivos”, a história brasileira caminha abrindo brechas por tais trilhas desoladoras – e o romance não desvia os olhos da firmeza do Marechal que consolida a República (EJ, LXXVIII)52. E que por causa disso, aliás, sai retratado um tanto respeitosamente, salvo engano, como um “forte” e “digno” homem de Estado em comparação ao volúvel Baptista e ao caos de interesses que toma o país após o golpe de Deodoro em 03 de novembro de 1891. Ao mesmo tempo, é quem irá sacralizar a rígida ordem estatal que assegura a lei e a ordem da propriedade privada. Isso que vai pressuposto no título do Cap. LXXII – “O regresso” –, que alude historicamente ao regresso centralizador e conservador do Império, um dos responsáveis pela unidade continental do Brasil atual, após a fase das revoltas regenciais (a assim chamada “experiência republicana” de 1831-184053

, e que se estenderia até a Agitação Praieira, 1848-9). Com o Regresso, vale lembrar, retornava o antigo Conselho de Estado, em 1841: a “arca da tradição” para Nabuco, que “melhor diria”, segundo Caio Prado Jr., o “baú da escravidão” (2012: 84). O leitor intui nesse vaivém histórico-ideológico todo o estofo material de diversas páginas do romance. É neste momento do regresso que a família Baptista retorna de uma “comissão secreta” do governo Deodoro, unindo-se à casa de Santos em Botafogo, que as “alucinações extraordinárias” de Flora recrudescem e que o conselheiro Aires/Ayres começa efetivamente a entrar em ação.