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Conclusão: das leis de exceção do escravismo à abstração do dinheiro autônomo

CAPÍTULO 1. UM MUNDO DUPLO Um panorama de Esaú e Jacob

1.6. A nova “epopeia de ouro” do Encilhamento: a base social material mais ampla do duplo no

1.6.1. Conclusão: das leis de exceção do escravismo à abstração do dinheiro autônomo

O que guardamos como saldo final do movimento por esse mundo recheado de duplos e duplicações? Primeiramente, algo ligado ao Encilhamento: as cascatas de dinheiro, ideias, invenções, concessões, falsificações e ídolos variados. Um fruto dos ventos liberais do fim do Império, em sua esteira difundem-se as ideias republicanas e democráticas, e com elas o novo dinamismo do conjunto, a ascensão meteórica de parvenus encantados, novos fetichistas da mercadoria, sem a cultura e as maneiras “distintas” da elite tradicional do Império. Visto apenas pelo lado do conteúdo, tal seria a conclusão-padrão das leituras históricas do romance, não muito longe das boas páginas do livro de Faoro. Unificando o conteúdo histórico à nova forma social plasmada pelo mundo republicano, vimos um narrador irônico em ação, ele mesmo implicado no rumor dos novos ídolos do mercado e no obscurecimento de práticas discricionárias da elite, e que não se confunde sem mais com a suposta visão saudosista do escritor. A violência do processo, cega ou ausente à primeira vista, ganha saliência máxima através da violência da representação elaborada por esse narrador de dupla face, através de seus procedimentos de cisão e classificação, oposição e falsa conciliação, coisificação e invisibilização, exclusão e humilhação dos trabalhadores e espoliados em geral.

Por fim, a alusão elitista e preconceituosa que visava exclusivamente a Nóbrega, que o identificava ao papel de um “reles” cocheiro indolente (e Ayres parece odiar entre os populares, como vimos, especialmente os cocheiros), alusão que começara “sem nenhuma intenção geral”, termina numa generalização absoluta de cunho naturalista, com a liquidação do caráter social dos indivíduos. Principalmente se, vindos de baixo, tais indivíduos revelam os vícios particulares da classe dos Mandachuvas, da qual agora também fazem parte. Note-se como na continuação (EJ, LXVII, “Hospedagem”) será a vez de focalizar o barão de Santos e a sua família recebendo em casa a “gente Baptista”, após o seu retorno da “comissão secreta” do governo Deodoro. Note-se ainda como ninguém aqui será rebaixado sem mais à imagem lendária de trabalhador indolente, ladrão, pelintra, corrupto ou mentiroso. Ricos, além de tudo, prestam favores aos parentes (“um logar de escrivão do cível em Maricá” para João de Melo, EJ, V), vão à missa e dão enormes gorjetas aos pobres. O andar de cima merece mais respeito e maior recato no dizer, principalmente se houver belas damas desfrutáveis no salão para um olho diplomático voraz. A zombaria e a sujeira serão mais secretas e reservadas, exatamente como a comissão do Baptista. Nas supostas alucinações de Flora durante o episódio da “grande noite”, que podem não passar também de um requintado ídolo baconiano da caverna ou da feira, essa imagem perversa se formará da maneira mais velada possível.

Em O Abolicionismo, Joaquim Nabuco horrorizava-se com as “leis de exceção” em funcionamento nos latifúndios escravistas, que iam do castigo corporal à pena de morte151, esquecendo como o próprio Império liberal que ele defendia baseava-se nessa suspensão permanente da Lei e do Outro em geral subjacente à naturalização da forma de mercadoria no corpo do escravizado – no limite, um ser não só mercável, mas encarcerável e impunemente exterminável, ao gosto do proprietário. De modo simbólico, os narradores urbanos de Machado continuam a reproduzir essa forma social nascida à sombra do escravismo, tomando-a como essência de suas práticas discursivas violentas. Numa palavra: obscurecida ainda mais pelas representações e práticas provenientes do escravismo e do estado de exceção implantado ab ovo desde a Colônia152, esse

151 Joaquim NABUCO, O abolicionismo, [1883]/2000, p. 91-2.

152 No Brasil liberal-escravista, lembra SCHWARZ, “além de infração, a infração é norma, e a norma, além de norma, é

infração, exatamente como na prosa machadiana” (1990: 42). Paulo Arantes lembra o que há de moderno nessa anomalia: “A desgraça nacional não decorre de uma carência originária mas de uma demasia monstruosa, a rigor padecemos desde sempre de um excesso de capitalismo, se é que se pode falar assim. Nascemos como um negócio. Mas é preciso acrescentar que este sentido original da colonização comporta duas dimensões essenciais. Enquanto a Europa ainda se enredava no cipoal de restrições e particularismos do Antigo Regime, despertávamos para o mundo quimicamente puro da forma-mercadoria, a um tempo periférica e hipermoderna. Fizemos a experiência extrema do que significa o vazio social no qual se reproduz um território comandado integralmente pela violência da abstração econômica” (...) “Assim, o acontecimento tremendo da Conquista não só revelava que a verdade do poder soberano é o monopólio do poder de decisão quanto à suspensão emergencial da normalidade jurídica, mas sobretudo que esta exceção soberana tende inexoravelmente a assumir a forma territorial de um domínio, bem determinado no espaço e no tempo, no qual todo o direito é suspenso. A exceção também pode ser assim enunciada historicamente, pelo

sujeito “liberal” do dinheiro poderá alçar-se ao poder mágico máximo de converter a realidade dos corpos e do trabalho abstrato em “nada”: “nada em cima de invisível”.

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De tudo o que vimos, depreendem-se alguns caminhos metodológicos a serem seguidos por quem pretende aventurar-se pelo labirinto de Esaú e Jacob: comparar as posições díspares do narrador; analisá-las captando significações diferenciais no que é dito por narrador e por personagens à luz dos desenvolvimentos históricos, evitando aderir à primeira leitura ou à leitura hegemônica; analisar o que é contado e o que é mostrado, o que é dito e o que é feito em geral, o que é possível e verossímil e o que é impossível ou inverossímil, examinando os tipos de focalizações e registros de discursos utilizados; em suma, dedicar atenção a cada linha ou trecho contraditório em relação ao que foi enunciado anteriormente ou posteriormente na obra, comparando o dito com a dimensão não-discursiva das ações e práticas efetivadas; cautela em cada interpretação desse texto estruturado radicalmente pela duplicidade, que convida o tempo todo à aderência ao seu ponto de vista ofuscante, mas também à superinterpretação; compreensão da parte inserida dentro do todo estruturado da obra e de seu contexto histórico, e da parte, enquanto fragmento alusivo-alegórico, contra o todo de um sentido histórico-simbólico falsamente construído.

desenho de nossa ‘anomalia’ congênita: por excesso de capitalismo, nascemos a um só tempo dentro e fora da lei, e fora porque dentro. A alteridade radical da colônia era imanente à metrópole” (Paulo E. ARANTES, “Tempos de exceção” in: __. O novo tempo do mundo, 2014, p. 321-5).