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CAPÍTULO 1. UM MUNDO DUPLO Um panorama de Esaú e Jacob

1.5. O duplo e a duplicidade a partir das configurações históricas da ironia, da alusão e da

1.5.4. Passagem da ironia à alusão e à alegoria

Há ainda duas outras implicações desse regime machadiano do duplo que neste momento queremos apenas deixar tracejadas, pois a elas retornaremos adiante: trata-se das noções de alusão e

de alegoria. Segundo os dicionários de teoria literária, a alusão associa-se à ideia de uma referência implícita, direta ou indireta, seja a uma obra, uma pessoa, uma situação ou um evento, e que “seja do conhecimento do leitor”, servindo frequentemente como um “marcador intertextual” e como maneira de “convocar o leitor a partilhar alguma experiência com o escritor”128

. Mencionada na Advertência e em alguns capítulos importantes (EJ, § 2; LI; LXXIV), a narrativa conteria várias

alusões (às vezes “picantes”) a “aventuras” nesse sentido mais ou menos transparente, conectando

um dado empírico particular a uma referência implícita sempre conhecida (que pode ser uma referência literária geral, uma pessoa, um evento etc.).

Em muitos aspectos, contudo, como sugerimos acima, essa escrita alusiva está conectada à forma da alegoria moderna129. Se a alegoria etimologicamente vem a campo para “dizer o Outro”, trazendo a público o que estava oculto ou inconsciente, no romance, via de regra, esse Outro encontra sua expressão através do duplo, que se ramifica em muitas direções dentro e fora do texto. Interpretar Esaú e Jacob, em certo sentido, é encontrar pares mais ou menos ocultos, pressupostos numa série de simetrias e oposições veladas, cuja interpretação leva à descoberta de sentidos variados. Em certa medida, nenhuma personagem se ergue autonomamente da substância desse mundo mimético de espelhos e identificações, discursos e ambivalências.

O caráter dual da alegoria, ao contrário da alusão, liga-se a uma referência implícita muito mais velada, mas também mais aberta e polissêmica, implicando numa espécie de pequeno “enredo” paralelo que se desenvolve no tempo histórico e se desdobra na estrutura do texto como uma “sequência logicamente estendida de metáforas”130

. Este parece ser o ponto essencial dessa noção em Esaú e Jacob. Assim serviriam significantes como as flores e as ruínas, o ovo, os pássaros, o burro e cavalos, as duas barbas, como vimos, além dos intertítulos e os próprios nomes de personagens, as ideias do nada e do tecido invisível do tempo, do medo e da esperança e a partir disso, particularmente, todas as imagens danteanas das almas, do céu e do inferno pressupostas desde a epígrafe e do capítulo em que esta é desenvolvida (EJ, XIII), articulando-se ainda à metáfora do xadrez, fazendo da relação entre narrador e personagens uma relação entre “o enxadrista e seus trebelhos” (rei, dama, bispo, torre, cavalo, peão). A partir de sua etimologia, a

128 J. CUDDON (et alli.), A Dictionary of Literary Terms & Literary Theory, 2013, p. 25; Massaud MOISÉS, Dicionário de termos literários, 1992, p. 18.

129 “Alusão” parece ser o termo mais utilizado por Machado. Em Esaú e Jacob ele aparece duas vezes com grande

destaque: a primeira referindo-se à relação entre o nome de Flora e a deusa romana das flores e da primavera; a outra como nome do capítulo dedicado à reinserção de Nóbrega no jogo da acumulação, promovido a “capitalista” (EJ, LXXIV e XCV). O termo “alegoria” é utilizado em Quincas Borba para se referir à parábola das duas tribos famintas que ilustram a filosofia religiosa do Humanitismo (OC, I, caps. XVIII e CXCV).

130 MOISÉS (1992: 15). Cf. também, nesta linha: “Allegory’s distinctive feature is that it is a structural, rather than a

textural symbolism; it is a large-scale exposition in which problems are conceptualized and analysed into their constituent parts in order to be stated, if not solved”. (Peter CHILDS & Roger FOWLER, The Routledge Dictionary of

noção de alegoria consistiria também ela num “falar dobrado” que tende a confundir-se com a ideia mais geral de ironia (“dissimulação”, “dizer o contrário do que se pensa” ou, como quer Hutcheon, um dizer de significação desdobrável, “inclusiva e relacional”, que, em vez de contrapor aparência e verdade, “oscila velozmente entre o dito e o não-dito”, afirmando os dois ao mesmo tempo131).

Mais comumente entende-se a alegoria como uma concretização de ideias, qualidades ou entidades abstratas, o que lhe dá um inevitável aspecto convencional, arbitrário e cifrado, às vezes mecânico e cerebral; pode tornar-se assim também veículo de um discurso didático, moralista e idealista mais ou menos surrado e transparente: “um aspecto material funcionaria como disfarce, dissimulação ou revestimento, do aspecto moral, ideal ou ficcional” (Moisés, 1992: 15). Diferentemente, até onde a compreendemos, a alegoria machadiana estará mais para aquele primeiro entendimento comum do termo como uma metáfora estendida numa estrutura textual

cifrada: “uma história ou imagem com várias camadas de significação: por trás do significado

literal ou superficial subjaz um ou mais significados secundários, com vários graus de complexidade” (Cuddon, 2013: 21). Uma sequência interligada de imagens ou metáforas prolongadas, sempre enigmáticas, mas interpretáveis e endereçáveis a um contexto social e político

particular. Esse complexo histórico de metáforas e significados, portanto, não equivale a algo

puramente genérico, atemporal e convencional (o Amor, o Mal, a Justiça, a Redenção etc.). Apesar de Machado utilizar às vezes letras capitais nesse sentido personificado (Destino, Discórdia, Esperança, Febre, Fortuna, Mal, Modéstia, Vida, cf. EJ, p. 42), as alegorias que mais importam não parecem funcionar como veículos “idealistas” que destroem a particularidade do referente, mas operam no sentido reflexivo da ironia e da alusão realistas, aludindo ao mesmo tempo a um gesto arbitrário e ideológico de um certo narrador, com um certo ponto de vista. A abstração exterioriza- se no objeto, mas retorna do concreto e corrói a si mesma. (Daí derivarmos neste trabalho uma noção sintética de “alusão alegórica” ou “alegoria alusiva”). Noutros termos, as sequências de metáforas estendidas expressam significados sociais reprimidos, censurados, inconvenientes – nesse sentido também peculiares e não-convencionais, mais ou menos abertos à interpretação, talvez nem mesmo previstos pelo autor. Quando então esses ingredientes se fundem absolutamente na composição, na estrutura das relações sociais representadas, para expressar negativamente significados sociais novos e difíceis de dizer às claras, dando a ideia de uma formação social mal acabada, o que nem sempre parece ser bem conseguido, aliás, temos no romance machadiano o que

131 Linda HUTCHEON, Irony’s Edge – The Theory and Politics of Irony, [1994]/2005, p. 12 e 57. Sobre a distinção de

alegoria e ironia, a autora procura enfatizar o caráter mais aberto e extensivo da significação construída pela ironia, além de suas implicações práticas (que seriam mais emocionais, valorativas e políticas) (ver ib.: 2 e 62-3). Para uma visão geral das teorias do símbolo e da alegoria, ver: Tzvetan TODOROV, Teorias do símbolo, 1977.

poderíamos denominar (utilizando uma expressão oportuna de Antonio Candido) um “realismo alegórico”132

.

Esbarramos aqui também na ideia baudelairiana e benjaminiana da alegoria moderna. No sentido baudelairiano do termo (que certamente influenciou muito Machado no final da vida, como já adiantamos) e tal como defendido negativamente pelo materialismo de Benjamin, Adorno e Oehler, a alegoria moderna reenvia à história específica de um sofrimento humano e social tornado opaco, a corpos vergados sob as abstrações reais do capital, a um processo de recalcamento dessa história, de modo tal que o sangue do massacre do proletariado em 1848, tanto quanto a repressão e a conciliação estapafúrdia de contradições pelo Segundo Império napoleônico, nutrem as camadas sucessivas de significados d’As Flores do Mal. À medida que se analisa a fragmentação do texto machadiano como estratégia executada a partir de um metaplano de significações irônicas, como uma “escrita cifrada” de uma certa história social, seja por meio de “fragmentos amorfos” e “petrificados”, seja por uma massa “excessiva” e “verdadeiramente caótica de metáforas” e “imagens”, descobre-se nela a forma de expressão de uma “história natural”, “sofrida e malograda” – não por acaso, os pensamentos mudos de Flora sucedem-se “entre as flores e as ruínas” (EJ, LXXX) –, podendo ser tomada como se fosse uma “paisagem primordial petrificada” em que a bela “totalidade simbólica e orgânica” se desmancha133

. Em suma, alegoria como memória/imagem dialética do curso ruinoso do tempo do mundo novo da valorização, travado por um estado de exceção declarado, e visto como um processo histórico-natural de recorrente desvalorização do concreto134.

1.6. A nova “epopeia de ouro” do Encilhamento: a base social material mais ampla do duplo