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3.1 A Tradução das Estratégias do Teatro de Beckett

3.1.4 A Transnominação

Seguindo uma característica que podemos relacionar, primeiramente, ao fato da produção literária ser fruto direto da cultura de que faz parte, e também à característica capitalista que é mostrada no Nouveau Roman, vemos que modelos e marcas são utilizados para tratar de objetos.

Podemos ver o reflexo da questão cultural dentro da tradução no exemplo do primeiro ato, quando Pozzo perde o seu relógio ‘half hunter’. O relógio do tipo Hunter surgiu na Inglaterra, onde caçadores de raposas achavam conveniente a possibilidade de não ter que abrir o relógio enquanto cavalgavam. Daí o nome hunter. O half hunter é uma variação que permite ver o centro (e os braços) do relógio sem precisar abri-lo:

SB, p. 43 FR, p. 81 FSA, p. 74 – 75

POZZO

. . . what have I done with my watch? (Fumbles.) A genuine half-hunter, gentlemen, with deadbeat escapement! (Sobbing.) Twas my granpa gave it to me!

POZZO

onde é que foi parar o meu relógio (procura mais.) Essa agora! (Soluça.) Um verdadeiro sabonete com ponteiros de segundos! (Chora.) Foi vovô que me deu!

POZZO

Mas onde foi que enfiei meu relógio? (vasculha) Essa agora! (Levanta a cabeça, desconcertado)

Um mecanismo de

primeira e precisão de segundos, imaginem só. Foi papai quem me deu. (vasculha)

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O deadbeat escapement mencionado por Pozzo, ao comentar sobre seu half- hunter, especifica que o relógio, muito bem feito, possui as melhores peças e que, por isso, não atrasa os segundos (como era muito comum acontecer com os relógios de corda ou automáticos ao longo do tempo). A tradução de FR, assim como a de FSA, não inclui menção ao modelo half-hunter. O half-hunter também não é mencionado no francês, pois Pozzo utiliza “ma montre” (meu relógio). Ambas as traduções seguem, novamente, o francês, que fala de suas qualidades, mas não trazem o modelo:

Minuit, p. 64 POZZO

mais où ai-je donc mis ma montre ? (Il fouille.) Ça alors! (Il lève une tête défaite.) Une véritable savonnette, messieurs, à secondes trotteuses. C'est mon pépé qui me l'a donnée. (Il fouille.)

Podemos ver que FR, utilizando, inclusive, a expressão sabonete, traz uma tradução mais próxima do francês. Sua versão, um verdadeiro sabonete com ponteiros de segundos, encontra outro caminho para o verbo trotteuse, utilizado em francês para o agir dos segundos de um relógio. A expressão savonette, em francês, é uma gíria para ‘um bom relógio’ (pois seus ponteiros não ‘prendem’, não perdem energia pois não atritam). FR traz a expressão idiomática do francês (a não ser que, também no Brasil, em algum momento da história, sabonete tenha sido popular como expressão para um bom relógio) como uma forma de fazer o leitor reconhecer a expressão estrangeira e assimilá-la à sua consciência de provérbios (proverb consciousness) como autêntica. Berman (2000, p. 295) discute a Destruição de expressões e idiomas quando defende esse ponto de vista. Para o teórico, ao evitar essa deformação, a preservação do estrangeiro, isto é, da identidade cultural intrínseca ao texto, mantém-se.

A tradução de FSA se mostra deformada por uma Clarificação, que não traz a expressão com a palavra sabonete, e sim a explicação quanto à ótima funcionalidade do relógio: um mecanismo de primeira e precisão de segundos. Onde o original não encontra problemas com o indefinido (caso da expressão, autoexplicativa para quem a

89 conhece), a tradução impõe o definido (ao clarificar o tradutor FSA assegura o transporte da mensagem).

Nenhum dos dois tradutores escolhe seguir o original em inglês, que lida diretamente com o modelo do relógio, algo mais específico da cultura, que o leitor, nesse caso, ou conhece ou não. Poucas pessoas podem chegar a supor que half hunter (meio caçador) se refere ao modelo de um relógio (diferente da racionalização necessária ao se relacionar sabonete e ponteiros).

Como podemos ver no final da passagem em francês, Pozzo justifica que seu relógio foi dado a ele pelo seu pépé, uma linguagem infantil para vovô. A tradução de FR mantém a ideia, enquanto a escolha tradutória de FSA traz um parentesco diferente:

FR: foi vovô que me deu

FSA: foi papai que me deu

Enquanto FR segue os originais, FSA não segue e traz uma tradução criativa para pépé que mantém, no entanto, uma sonoridade parecida: papai. Seja por questões rítmicas (como FSA alegou guiar sua tradução), ou por questões culturais, na tradução da Cosac Naify, Pozzo diz que foi seu papai que lhe deu o relógio, não seu vovô. A criatividade do tradutor aparece, aqui, em um momento curioso, visto que todos os originais apontavam para uma ideia que não foi seguida por FSA. Ao trocar vovô por papai, estaria o tradutor se atendo a algum critério cultural que, no Brasil, favorece papai e não vovô como aquele que dá o relógio a Pozzo? O relógio foi dado, e não herdado, o que descarta a teoria de que na Europa é mais comum que netos recebam os relógios de seus avós através de testamentos.

Seja uma referência a uma versão anotada e obscura da estória de Godot em que o papai de Pozzo é quem realmente dá o relógio de presente a ele, ou uma decisão por seguir a sonoridade do original em francês, FSA traz uma deformação em forma de empobrecimento qualitativo, já que a expressão do original é descontinuada e a figura do avô, com todas as redes subjacentes de significados que lhe cercam, é removida.

No segundo exemplo vemos o caso da tradução de uma marca de artigos para fumantes. Pozzo chama seu fumo (que ele também perde) de Kapp and Peterson, no texto em inglês:

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SB, p. 32 FR, p. 60 FSA, p. 61

POZZO:

(on the point of tears). I've lost my Kapp and Peterson!

ESTRAGON:

(convulsed with merriment). He'll be the death of me!

POZZO

Perdi meu fumo! ESTRAGON (rolando) É de rolar de rir!

POZZO

Perdi meu Abdullah. ESTRAGON

(contorcendo-se de riso) Ele é de morte!

Kapp and Peterson é o nome de uma companhia de cachimbos e fumo da Irlanda (talvez a mais popular de lá), e que foi ‘neutralizada’ por FR em sua referência. O tradutor traz o produto (fumo) ao invés da marca. Compreendendo o texto de FR como comprometido com o que funcionaria ou não com o espectador brasileiro, vemos que o aspecto fortalecido por ele, neste caso, diz respeito à transmissão da mensagem. Todos entenderão que o que Pozzo perdeu, desta vez, foi algo relacionado ao hábito de fumar. O leitor (e a plateia, principalmente) não estariam familiarizados com a grafia ou a sonoridade da marca Abdullah, que é a utilizada por Beckett no original em francês (ver abaixo), ou da marca Kapp and Peterson, pois as marcas não são populares no Brasil.

No original em francês, Pozzo diz seu Abdullah (uma marca inglesa de cigarros que tem o mesmo nome de uma empresa francesa de isqueiros e cachimbos):

Minuit, p. 48

POZZO. -- J'ai perdu mon Abdullah ! ESTRAGON (se tordant). - Il est tordant !

A tradução de FSA segue o francês e mantém a marca Abdullah, que também não é conhecida no Brasil. O leitor, portanto, não saberá que se trata de um fumo. A integridade cultural do que foi referenciado por Beckett, no entanto, a ‘estrangeirice’, como vai chamar Berman (2000), é mantida na tradução de FSA.

91 A tradução de FR, mais criativa que a de FSA, já que propõe uma solução que faz com o que o leitor brasileiro entenda a mensagem ‘de forma prática’, define o que em inglês e francês também está definido. Para os leitores em língua inglesa ou francesa, a referência à marca será mais próxima. Para o leitor brasileiro, não. Na tradução de Flávio Rangel, portanto, temos um termo mais geral, fumo, que substitui a marca Abdullah (ou Kapp and Peterson).

No ‘julgamento do estrangeiro’ (trial of the foreigner) de Berman (2000), a questão em jogo é o “acesso” ao mundo do autor. Na tradução, o elemento do contexto do autor, o produto que pode ser imortalizado, ou não, na obra traduzida para um determinado país, está em julgamento. Enquanto um tradutor propõe uma solução etnocêntrica (FR corta o estrangeiro, deixando-o de fora de sua tradução), o outro (FSA) escolhe um caminho que causará estranhamento: se o leitor não checar o que é um Abdullah ele não saberá que se trata de um cachimbo ou fumo.

A tradução de FSA é uma tradução que ‘salva’ o estrangeiro, nesse sentido, que “abre o trabalho estrangeiro para nós em sua plena ‘estrangeirice’” (BERMAN, 2000, p. 284, tradução nossa69). É uma discussão sobre acentuar a ‘estranheza’ do estrangeiro ao invés de atenuá-la. A palavra estrangeira é parte da originalidade do trabalho. Berman (2000) até a chama de “parte essencial mais original do trabalho estrangeiro”, dizendo que “a acentuação é a única forma de nos dar acesso a ela” (BERMAN, 2000, p. 284, tradução nossa70).

Para o teórico, uma tradução que mantém a ‘estrangeirice’ segue os caminhos da obra do poeta lírico e romancista alemão Friedrich Hölderlin (1770 – 1843), que sintetizou e transportou para a língua e para a forma de pensamento europeia do século XIX o espírito e a estranheza da Grécia Antiga. Hölderlin, pouco antes de ser diagnosticado como louco, traduziu Sófocles, um dos mais importantes dramaturgos gregos, e que viveu no século 04 a.C. A forma como ele traduziu Sófocles (mantendo figuras de linguagem, expressões, referências a Deuses e outros elementos longínquos à nossa cultura), na verdade, chegou a ser considerada manifestação de sua loucura. Hoje, no entanto, Hölderlin é considerado a chave que nos dá raro acesso à estranheza do mundo das tragédias gregas, visto que as traduções clássicas tendem a atenuar ou cancelar

69 Open up the foreign work to us in its utter foreignness

92 essa estranheza (BERMAN, 2000). Daí a importância de uma tradução que não expurga, simplesmente, o texto do estrangeiro que contém em si.