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3.1 A Tradução das Estratégias do Teatro de Beckett

3.1.2 As repetições do Teatro Inferno

Entediados com a espera por Godot, os personagens nutrem uma angustiante esperança por sua chegada. Presos por uma dualidade da espera – abandonar as esperanças e ir embora, ou esperar mais um dia por Godot, presos, já que a esperança é mesmo a última que morre? – os personagens passam o tempo discutindo questões filosóficas, lembrando o passado e realizando seus rituais, que acontecem através de repetições. Estratégia tida por Joyce como sendo de grande utilidade para o formato cômico, podemos notar que a repetição e a permutação de gestos contribuem para a desesperadora não-ação da obra, já que a única ‘ação’ que se faz perceber é repetitiva.

Neste sentido, Vasconcellos (2012, p. 42) argumenta que o mal das duas duplas é o tempo, e a questão cíclica de Waiting for Godot mostra um dos dois “modos de estar no tempo, ou de sofrê-lo”. A peça, em sua organização de dois atos que se repetem com pequenas alterações, é um ciclo que dá a entender que não há início nem fim. O ‘girar em falso’, como definido por Vasconcelos (2012), faz com que pequenos detalhes mudem, mas resultem na mesma cena.

68 Expressão utilizada por Vasconcellos (2012) para caracterizar, dentre outros pontos, o tipo de

78 Na peça Play (1963), o artifício da repetição é utilizado por Beckett para explorar a ideia de eternidade: três personagens mortos repetem sem parar os últimos momentos de suas consciências antes de morrerem. Após repetirem exatamente as mesmas falas, os personagens deixam claro para a plateia que aquilo irá se repetir indefinidamente. A repetição se faz útil para Beckett, pois traduz elementos atemporais e que insinuam que os personagens estão presos em um processo infinito.

Assim, as repetições de falas, cenas, gestos e pensamentos surgem em Waiting for Godot com um propósito bem definido: trazer a sensação de cansaço ao próprio leitor, que deve compartilhar das mesmas experiências que teria no teatro. Sobre essa repetição, traz Vasconcellos (2012):

Em seu tempo está interdita a mudança (de cena, de fortuna) e, se há movimento, é cíclico (o dia começa para terminar de modo idêntico). O tempo estagnado da espera, sofre-o também o público, que, juntamente com os dois amigos, aguarda a chegada de Godot (VASCONCELLOS, 2012, p. 42).

Uma das formas que as repetições acontecem em Waiting for Godot é através das mímicas dos personagens, que, em vários momentos da peça, trocam os chapéus de forma repetitiva e exaustiva. Toda essa cerimônia nos dá a impressão de que não é ‘tão importante’ quem está ou quem ficou com qual chapéu, mas que todas as trocas sejam descritas/encenadas para um efeito de repetição e cansaço. Os próprios personagens estão presos em um ciclo absurdo – no sentido proposto pelo mito de Sísifo – e vários elementos menores do seu dia-a-dia também parecem impor tal situação.

No trecho selecionado, Vladimir realiza o primeiro ritual de repetições com o chapéu:

SB, p. 06 FR, p.12 FSA, p. 31

VLADIMIR:

Sometimes I feel it coming all the same. Then I go all queer. (He takes off his hat, peers inside it, feels about inside it, shakes it, puts it on again.) How shall I say? Relieved and at the same time . . . (he

VLADIMIR:

Às vezes eu sinto que está chegando… Aí eu me sinto esquisito. (Tira o chapéu, observa-o atentamente, vasculha-o por dentro, sacode-o, coloca-o de novo.)

Como posso explicar?

VLADIMIR

Às vezes até sinto que está vindo. Então fico todo esquisito. (Tira o chapéu, examina o interior com o olhar, vasculha-o com a mão, sacode-o, torna a vesti-lo) Como se diz? Aliviado e ao mesmo tempo... (Busca a palavra)

79 searches for the word)… Sinto-me aliviado, e ao

mesmo tempo... (procura a palavra)...

No texto original, cinco verbos de ação são utilizados para descrever o primeiro dos repetitivos rituais de checagem que aparecem no excerto: take off, peer inside, feel about, shake, put on.

Observando como o léxico dos verbos em inglês os torna mais específicos quando seguidos de preposições que compõem multi-word verbs, exploramos os sentidos dos verbos que aparecem nesta passagem: take off, verbo que na língua inglesa pode significar decolar (sentido que pode ser excluído da leitura), ou remover uma peça de roupa; peer inside seria uma olhada, ou espiada dentro de algo; feel about traz um sentido de sentir, porém especificamente de um sentir tateado; shake, único verbo que não aparece como multi-word verb, e significa “sacudir”; e put on, utilizado quando se fala em vestir uma peça de roupa.

Focando nas escolhas tradutórias para esses verbos, construímos a seguinte comparação de escolhas tradutórias:

SB FR FSA

Take off Tirar Tirar

Peer inside Observar atentamente Examinar o interior com o olhar

Feel about Vasculhar por dentro Vasculhar com a mão

shake Sacudir Sacudir

Put on Colocar Vestir

A afirmação de Berman de que toda tradução tende a ser mais longa do que o original se aplica à tradução dos multi-word verbs da passagem acima. Vemos, principalmente nos verbos peer inside e feel about, uma necessidade de Expansão por parte dos tradutores, quando diante da impossibilidade de traduzir verbos frasais (outra forma de se referir aos multi-word verbs) para um equivalente no português (inexistente, no caso dos verbos frasais).

80 Na parte seguinte do trecho (dividido, aqui, em quatro partes que focam nos detalhes da repetição), temos os verbos take off, peer inside, knock on, peer into, put on:

SB, p. 06 FR, p.12-13 FSA, p. 31

(With emphasis.) AP- PALLED. (He takes off his hat again, peers inside it.) Funny. (He knocks on the crown as though to dislodge a foreign body, peers into it again, puts it on again.) Nothing to be done.

(Com ênfase) Apavorado, (tira o chapéu de novo, vasculha-o outra vez.) Engraçado. (Bate no

chapéu como se

quisesse fazer alguém sair de dentro dele, olha- o de novo, coloca-o outra vez.) Nada a fazer.

(Enfático) A-PA-VO-RA- DO. (Tira o chapéu mais uma vez, examina o interior com o olhar) Essa agora! (Bate no chapéu, como quem quer fazer que algo caia, examina o interior com o olhar, torna a vesti-lo) Enfim...

O verbo knock on é o único que não aparece na repetição anterior e é traduzido por FR e por FSA como bater. Junto à ação de bater, no entanto, temos a informação de que Vladirmir bate as though to dislodge a foreign body, que nas traduções aparece como:

FR: “como se quisesse fazer alguém sair de dentro dele” FSA: “como quem quer fazer que algo caia”

O alguém, trazido por FR em sua tradução, parece ter uma conexão com o body da expressão em inglês, em uma tradução que pode ser vista como literal. O body, no entanto, é um foreign body, isto é, um corpo estranho, algo que não deveria estar ali. Também é possível que esta seja a ideia criativa de FR ao interpretar a forma como Vladimir bate no chapéu (estaria surpreso ou enfático, para que batesse como quem espera que alguém saia de dentro de um chapéu?).

Peer aparece novamente, mas com uma variação da primeira: peer into, traduzido por FR como olha, e por FSA como examina o interior com o olhar. Essa Clarificação de FSA acaba também por Expandir o texto. Como nos confirma o tradutor Fábio de Souza, em sua tradução, essas ‘pequenas’ deformações, que ora expandem e ora encurtam o texto, não representam, para ele, uma perda. Como já destacado previamente pelo tradutor (na seção dedicada à tradução do Catecismo de Beckett), a

81 sua tradução não ganha nem perde em uma fala, verso ou imagem. O conjunto traz um perde e ganha contínuo. O tradutor reconhece que se trata de um processo que envolve, necessariamente, frustrações e renúncias, e afirma seguir a arquitetura falha e em ruínas do ritmo geral (ANDRADE, 2017). Não averiguamos, nesse trecho, algo que nos sugira uma ideia contrária ao que declara Fábio de Souza. As pequenas mudanças, observadas aqui na esfera verbal, não se manifestam de forma a interferir no texto como um todo.

No trecho seguinte, é a vez de Estragon realizar os mesmos procedimentos com seu sapato (para FR, na tradução de FSA temos uma bota):

SB, p. 06 FR, p.12-13 FSA, p. 31

(Estragon with a supreme effort succeeds in pulling off his boot. He peers inside it, feels about inside it, turns it upside down, shakes it, looks on the ground to see if anything has fallen out, finds nothing, feels inside it again, staring sightlessly before him.) Well?

(Estragon, num supremo esforço, consegue tirar o sapato. Olha dentro dele, vasculha-o, vira-o de cabeça para baixo, sacode-o, olha o chão para ver se caiu alguma coisa, não acha nada, vasculha-o de novo, e fica com os olhos vagos.) VLADIMIR

E então?

(Com esforço extremo, Estragon consegue tirar a

bota. Examina seu

interior com o olhar, vasculha-a com a mão, sacode-a, procura ver se algo caiu ao redor, no chão, não encontra nada, vasculha o interior com a mão mais uma vez, olhar ausente) E então?

Desta vez, os verbos de ação turn upside down, look (on) e find (nothing) aparecem pela primeira vez. A tradução de FR mantém os sete verbos de ação que aparecem na versão original, enquanto a versão de FSA traz seis verbos de ação:

SB FR FSA

Peers inside Olha dentro Examina seu interior com o

olhar

Feels about inside Vasculha-o Vasculha-a

Turns it upside down Vira-o

Shakes it Sacode-o Sacode-a

Looks on the ground Olha para o chão Procura ver

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Feels inside Vasculha Vasculha

FSA não traz uma tradução para turns it upside down. É um verbo de ação que fica ausente da repetição acima. Na próxima ocorrência das repetições (vista na tabela abaixo) o tradutor acaba por compensar esse problema. O seguinte trecho mostra o quarto momento do recorte em que os personagens, mais uma vez, realizam uma repetição de procedimentos: SB, p. 06 FR, p.13 FSA, p. 31 ESTRAGON: Nothing. VLADIMIR: Show me. ESTRAGON:

There's nothing to show. VLADIMIR:

Try and put it on again. ESTRAGON:

(examining his foot). I'll air it for a bit.

VLADIMIR:

There's man all over for you, blaming on his boots the faults of his feet. (He takes off his hat again, peers inside it, feels about inside it, knocks on the crown, blows into it, puts it on again.) This is getting alarming. ESTRAGON Nada VLADIMIR Deixe ver. ESTRAGON

Não tem nada para ver. VLADIMIR

Experimente botá-lo de novo.

ESTRAGON (olhando o pé)

Vou deixa-lo tomar um pouco de ar.

VLADIMIR

Eis o homem! Põe a culpa no sapato quando o culpado é o pé. (tira de novo o chapéu. Repete a mímica toda.) Isto já dá para apavorar. ESTRAGON Nada. VLADIMIR Deixe ver. ESTRAGON

Não há nada para ver. VLADIMIR

Tente calçar de novo.

ESTRAGON (Tendo

examinado o pé) Vou deixar tomando um ar. VLADIMIR

Eis o homem: jogando nos sapatos a culpa dos pés. (Tira o chapéu, examina o interior com o olhar, vasculha-o com a mão, sacode-o, bate nele, sopra no interior, torna a vesti-lo) Alarmante, isto está ficando alarmante.

Na última parte do excerto destacado vemos que os direcionamentos de palco no texto de SB nos mostram seis ações:

83

SB FR FSA

take off Tira tira

peer inside examina

feel about vasculha

sacode

knock on bate

blow into Sopra

put on veste

Na tradução de FSA, temos sete verbos (tira, examina, vasculha, sacode, bate, sopra, veste) para a descrição da cena. Essa Expansão do original parece desdobrar knock on em dois verbos: sacudir e bater. Essa é uma consequência de duas tendências deformatórias, a de Racionalizar e a de Clarificar, e que acabam “desdobrando o que no original está dobrado” (BERMAN, 2000).

A tradução de FR opta por descontinuar o quarto momento de repetição, visto acima nos direcionamentos de palco. Ao invés da real repetição, nos é informado que eles repetem. O tradutor diminui seis verbos de ação para um – tirar o chapéu – acompanhado da informação de que ele repete a mímica toda. Isso causa uma Destruição de redes significativas subjacentes, se considerarmos o significado que a repetição tem em Waiting for Godot. Tendo em vista que o trabalho literário possui uma dimensão escondida, na qual fenômenos se interligam, construindo um aspecto significativo do texto, a exclusão da repetição acaba por deformar sentidos que podem ser encontrados abaixo da superfície do texto.

Questionamos o tradutor FSA quanto à ‘economia’ observada acima, na tradução de FR, e que pode ter sido ‘herdada’ do texto para teatro já que o Flávio Rangel a traduziu inicialmente com este fim. O tradutor confirma acreditar que se trate de uma economia prática, para fins de encenação, mas que interfere no formato do Teatro do Absurdo:

A finalidade prática, de encenação, a perspectiva do diretor certamente informa a tradução de Flávio Rangel. Como Beckett trabalhava nas rubricas um controle autoral sobre as possibilidades interpretativas, minha visão é a de que esta característica é parte integrante do texto e da sua novidade e importância na literatura dramática do século XX. A repetição, que interfere na construção ficcional do tempo, da série, e que tem peso estilístico e filosófico, na minha visão, nunca deve ser economizada (ANDRADE, 2017).

84 Para FSA, o tipo de repetição beckettiana a qual nos referimos interfere na construção ficcional. Por não ser uma peça com enredo tradicional e sim uma situação, a questão temporal encontra na repetição o seu material filosófico. Está claro que, na encenação da peça, os atores precisarão interpretar o direcionamento repete a mímica toda. Na página, no entanto, o leitor não será guiado (nem forçado) a presenciar a absurda e cansativa repetição de movimentos – característica temática que reflete, também, o construto estilístico de Waiting for Godot, e que não deve ser economizada, na visão de FSA.