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1.2 A Tradução Literária e o texto criativo: uma investigação cultural

1.2.4 A analítica de Berman e o texto criativo

Lambert (1990), ao dizer que os especialistas em estudos literários passaram a entender a sua disciplina como uma disciplina científica e não mais como artística, chama-nos a atenção para como a área da pesquisa literária e tradutória tende sempre a recordar seu passado exclusivamente artístico. O autor alerta: “note-se que alguns pesquisadores continuam pensando que o estudo da tradução – e das Letras em geral – é mais uma arte que uma ciência” – (LAMBERT, 1990, p. 18). Podemos nos perguntar se a questão da criatividade – presente tanto no trabalho do autor quanto do tradutor – é, por sua subjetividade, responsável por manter ainda essa desconfiança por parte da comunidade científica em relação ao texto literário e sua tradução. O estudo de Alexander Ljudskanov (1926 – 1976), em Mensch und Maschine Als Übersetzer (1972), sugere que sim, que o principal obstáculo para uma compreensão científica das Letras está no fato de que as explicações linguísticas não levam em conta a criatividade.

Por ser um “trabalho criativo” (BRITTO, 2012, p 18-19), a tradução literária é alvo de muitas discussões: os textos admitem muitas leituras e nem sempre se pode ter acesso à intenção do autor ao escrever o texto. O tradutor, por ser conhecedor daquela língua e daquela cultura, precisará se apropriar dos elementos da obra literária, compreendê-los e interpretá-los hermeneuticamente, para que na próxima etapa do trabalho tradutório, através de mecanismos próprios de recriação, possa transmiti-los ao leitor da língua alvo52.

Ao considerarmos esses fatores sobre a tradução de um texto literário, já que este deverá ser lido e interpretado pelo tradutor em um trabalho essencialmente criativo, passamos a falar do conceito de “transposição criativa”, trazido por Jakobson (1959). Cada vez mais visto como uma “recriação criativa” (BRITTO, 2012), tal modo de

48 compreender a tradução literária confere uma liberdade ao tradutor quanto aos elementos linguísticos, culturais, estéticos e criativos que devem ser ‘encarnados’ em outra língua. Para Campos (1976), a recriação criativa resulta em uma relação de isomorfia – os dois textos, fonte e alvo, “serão diferentes enquanto linguagem mas, como corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro de um mesmo sistema (CAMPOS, 2010, p. 34).

O formato é diferente, pois as línguas são diferentes, porém, o conteúdo é recriado pelo tradutor, o que implica dizer que o texto traduzido partilhará de uma “enorme inventividade, pois se trata de uma ‘criação’ do tradutor” (FALEIROS, 2012, p. 22). Para o autor, a tradução de um texto criativo não se contentará em trazer ‘apenas o significado’, mas o próprio signo, a “iconicidade do signo estético”, sua “fisicalidade”, sua “materialidade”, suas “propriedades sonoras”, sua “imagética visual” (FALEIROS, 2012, p. 22). Traduzir o texto literário é manter características da forma no texto traduzido.

Campos (1976) fala ainda do texto literário como possuindo distintas formas de informação: 1) uma “informação documentária”, que seria a reprodução de algo observável e empírico, portanto traduzível; 2) a “informação semântica”, que vai além do observável, trazendo sempre um elemento novo (esta admite uma codificação, podendo ser transmitida de várias maneiras); e a “informação estética”, característica do produto literário artístico, e que “não pode ser codificada senão pela forma em que foi transmitida pelo artista”. Para Campos, “a informação estética é igual a sua codificação original”, e, portanto, não pode ser traduzida de forma fiel. É necessária, ao tradutor, uma “recriação criativa” (CAMPOS, 1976, p. 23).

Berman (2000) mostra, também, uma preocupação sobre o formato. Para o autor, a essência da tradução não é restituir, na língua alvo, apenas o significado, mas também a forma do texto traduzido. Seu pensamento, porém, contrasta com a liberdade conferida ao tradutor que busca uma recriação criativa. Mostrando uma preocupação com a fidelidade ao TF, o autor defende que traduções mais fiéis manteriam, no TA, sentido, significação e conotações relacionados ao sentido e formato (BERMAN, 2000). A ideia de fidelidade discutida por Berman toma, portanto, um formato prescritivo que enxerga o trabalho de recriação do tradutor como ‘não tão criativo assim’.

Para Berman, cujas ideias vão de encontro às de Jakobson (1959), Campos (1976) e Lefévere (1975), não é função do tradutor criar, pois a verdadeira hipertextualidade, o texto que nos transporta a outros significados e outros textos e discursos, está no trabalho criativo do escritor. Segundo a concepção de Berman (2000),

49 submeter o texto à criatividade do tradutor – que passa (inconscientemente ou não) a incorporar elementos conhecidos pelo público alvo na obra literária – implica em uma rejeição do estrangeiro; estimula uma leitura etnocêntrica (que era, também nos anos 80, uma preocupação dos estudos de Lambert) por parte dos tradutores; deforma o trabalho criativo do autor e a “concretude” da obra literária53. Em resumo, prejudica a hipertextualidade verdadeira da criatividade do autor.

Berman cita Bakhtin ao dizer que uma obra possui “heterologia” (diversidade de tipos de discurso), “heteroglossia” (diversidade de línguas) e “heterofonia” (diversidade de vozes). Em cima disso, ele guia seu pensamento, que compreende a tradução do texto literário em uma dimensão diferente do que para Campos, que afirmou que “admitida a tese da impossibilidade em princípio da tradução de textos criativos, parece-nos que esta engendra o corolário da possibilidade, também em princípio, da recriação desses textos” (CAMPOS, 2010, p. 34). Campos acredita na recriação como ferramenta quando frente à impossibilidade de tradução de textos criativos.

No entanto, o elemento estrangeiro que é deixado de fora, visto que o texto foi reestruturado e recriado na LA, representa, para Berman, uma visão etnocêntrica. Essa visão, que deixa exclui a ‘estrangeirice’ (foreigness), parece contribuir para que o ciclo das Literaturas Nacionais, trazidas por Lambert (1990), continue a funcionar. É dando preferência à uma manutenção do estrangeiro, que Berman (2000) propõe uma analítica da tradução. Seu objetivo é descobrir forças deformadoras etnocêntricas, mostrando onde elas são praticadas no texto traduzido.

Berman (2000) diz que o papel da tradução é, antes de tudo, o de liberar a violência, a energia contida (repressed) na obra através de uma série de “intensificações” na língua alvo, ou seja, devemos acentuar sua estranheza para que possamos ter acesso a ela. Ao invés de buscar uniformizar, a visão de Berman rejeita a adequação do texto na LA.

A inseparável relação do que é dito no texto literário com a língua em que é dito, faz com que a sua tradução seja, como nas palavras de Berman (2000, p. 285), uma manipulação de significantes, onde duas linguagens entram em várias formas de colisão e de alguma forma ‘namoram’. Isso é inegável, mas não é levado a sério” (BERMAN,

50 2000, p. 285, tradução nossa54). A dança entre as línguas envolvidas, ao invés de levar a um “julgamento do estrangeiro” (trial of the foreign), tem tido a tendência de excluir o estrangeiro e domesticar o texto.

Berman chama a atenção para que se reflita propriamente sobre o a ética do ato de tradução”, que para ele é “receber o estrangeiro como estrangeiro” (BERMAN, 2000, p. 286, tradução nossa55). Berman defende, portanto, a aceitação do estrangeiro. Devemos fazer o estrangeiro ser sentido e experimentado, ao invés de nos livrarmos deles. Isto seria etnocêntrico para Berman.

Sua analítica propõe examinar o sistema de deformação que “opera em toda tradução e impede que esta seja um ‘julgamento do estrangeiro’” (BERMAN, 2000, p. 286, tradução nossa). Essas deformações se manifestariam em treze tendências, de acordo com o autor. São elas:

1) Racionalização

Esta afeta principalmente estruturas sintáticas do original, como a pontuação (principalmente na prosa), a estrutura das frases, e a ordem em que aparecem. A racionalização ignora o estilo do autor e reorganiza as frases, recompondo períodos e sequência de períodos, que são reagrupados de acordo com uma certa ideia de ‘ordem discursiva’ da LA. Ao racionalizar o autor ‘nivela’ imperfeições, e a imperfeição é uma condição da existência do texto em prosa, é o que transforma a prosa literária em uma estrutura arborescente em que pode haver repetições, a proliferação de orações relativas e de particípio, períodos longos ou períodos sem verbo. “A racionalização destrói tudo isso” (BERMAN, 2000, p. 288). Ao transformarmos verbos em substantivos revertem-se relações do original, que passam a ser mais abstratas.

2) Clarificação

54 a manipulation of signifiers, where two languages enter into various forms of collision and

somehow ‘couple’. This is undeniable, but not taken seriously.

51 Esse tipo de deformação ocorre quando o tradutor tenta explicar, deixando a tradução mais clara do que o original. O nível de clareza, perceptível nas palavras e nas ideias e sentidos, aumenta. Onde o original não apresenta problemas com o indefinido, a tradução impõe um definido. Para Berman (2000), este acaba sendo um princípio básico dos tradutores e de toda tradução, visto que toda tradução busca algum grau de explicitação. A clarificação oferece uma clareza ao que não queria ser claro no original.

3) Expansão ou o alongamento

A tendência a tornar o texto traduzido mais longo, seja através do exagero ou do embelezamento das frases. Berman afirma que toda tradução tende a sofrer uma expansão, e que esta geralmente é resultado das duas estratégias anteriores. É um desdobramento daquilo que no original estava ‘dobrado’. Esse aumento, no entanto, pode ser qualificado como vazio, já que ocorre um aumento de artigos e pronomes relativos. Pode também ser um fator que contribui para um empobrecimento quantitativo, tendo em vista que há apenas um aumento na massa total do texto. Além de deteriorar o fluxo rítmico da obra, essas explicitações obscurecem o modo de clareza do próprio texto, passando de uma “plenitude sem forma para um vazio informe”.

4) Enobrecimento

Ocorre quando o tradutor tenta melhorar o TF. Poetizá-lo no caso da prosa, trazendo frases mais elegantes e ‘retorizadas’. É chamado por Berman de um exercício estilístico às custas do original, visto que acaba por eliminar a retórica e a polilógica sem forma do original. Para Berman, porém, dizer bem no original não tem nada a ver com um discurso enobrecido.

5) Empobrecimento qualitativo

Quando se substitui termos, expressões e figuras do original por elementos figuras equivalentes na LA que não possuem a mesma riqueza sonora ou icônica. Um termo que ‘cria uma imagem’ é icônico e, por isso, desperta um significado. Para Berman esta prática de substituição pode ser inconsciente, mas quando aplicada em um trabalho

52 inteiro, em toda a superfície icônica do texto (que fala conosco), deforma boa parte de seu processo significativo e de seu modo de expressão.

6) Empobrecimento quantitativo

Uma perda lexical na tradução. Para Berman, todo trabalho em prosa apresenta uma certa proliferação dos significantes e das correntes significativas. A grande prosa novelística é ‘abundante’, e esses significados podem ser descritos como soltos, visto que um significante pode ter uma multiplicidade de sentidos. A tradução que contém menos significantes do que o original, representa um empobrecimento quantitativo. A tradução que observa a textura lexical da obra, o seu modo de lexicalidade, tende a estendê-la. Essa perda coexiste perfeitamente com um aumento na massa do texto, resultando em um texto mais pobre e mais extenso.

7) Destruição de ritmos

Também na prosa, segundo Berman, o ritmo pode ser comprometido devido às alterações na pontuação e na ordem das palavras. E, para o autor, um romance, por exemplo, não é menos ritmado que a poesia. Por isso, uma tradução que faz uma revisão arbitrária da pontuação; uma tradução que não leva em conta a forma do significante ao escolher seus correspondentes, deformará o ritmo, visto que a obra original passará de uma tonalidade a outra.

8) Destruição de redes significativas subjacentes

A obra literária contém uma dimensão escondida, um texto “subjacente”, no qual certos significantes se correspondem e se conectam, formando todo tipo de conexões sob a superfície do texto que se lê. É o subtexto que carrega a rede de palavras-ideias: palavras recorrentes (como na estratégia de Acumulação analisada mais à frente) e substantivos que se relacionam (seja através de uma semelhança, objetivo ou ‘aspecto’) mesmo que estejam separados no texto. Uma má interpretação dessas redes deformará o texto, pois se tal rede não for transmitida, o processo significante do texto fica destruído.

53 9) Destruição de padrões linguísticos

A natureza sistemática de um texto vai além do nível dos significantes, metáforas, palavras, etc., estendendo-se ao tipo de períodos e à forma que acontece as construções das frases. Tais padrões podem se manifestar através de determinados tempos verbais ou determinados tipos de subordinação. Se essa maneira sistemática pela qual as frases do texto original são construídas não for seguida, temos uma deformação que torna o texto assistemático. A racionalização, a clarificação, a expansão, etc. destroem a natureza dinâmica do texto ao introduzir elementos que não estão presentes no seu sistema original. Assim, quanto mais o tradutor torna o texto mais homogêneo que o original, este se torna, igualmente, mais incoerente e, paralelamente, mais heterogêneo, mais inconsistente.

10) Destruição das redes linguísticas vernaculares ou sua exotização

Toda prosa está enraizada na língua vernácula. O objetivo da polilógica na prosa inclui uma pluralidade de elementos vernaculares. A tendência à uma concretude na prosa, necessariamente inclui esses elementos, pois a língua em que a obra foi escrita é mais física, mais icônica do que uma linguagem ‘cultivada’. Por exemplo, a palavra francesa Démodé é mais rica, mais expressiva, do que uma tradução como “fora de moda”, ou se criássemos uma palavra no português, como “demodado”. A prosa geralmente busca recapturar a oralidade da língua vernácula, e substituí-la ou exotizá-la (com procedimentos tipográficos como itálico). Isso acaba por isolar a palavra na tradução, diferentemente do original.

11) Destruição de expressões e idiomatismo

A prosa traz muitas imagens, expressões, figuras, provérbios, etc., derivados da LF. A maioria desses elementos traz consigo um significado, ou experiência, que, prontamente, encontra uma imagem, expressão, figura, ou provérbio em outras línguas. É o caso da expressão “the early bird catches the worm”, que literalmente traduzida, fica “o pássaro que acorda cedo pega a minhoca”. Esse provérbio seria estranho para o leitor brasileiro, que conta com um equivalente: “Deus ajuda quem cedo madruga”. Para Berman, no entanto, o equivalente não traduz. Traduzir não é procurar equivalentes. O desejo do

54 tradutor de substituir um provérbio pelo outro ignora uma ‘consciência dos provérbios’ que existe em nós, e que detecta imediatamente, mesmo que seja através de um provérbio inédito na nossa língua, o sentido do original. Esse processo, na concepção de Berman, enriquece nosso ‘banco de dados dos provérbios’ (world of proverbs).

12) Apagamento da sobreposição de línguas

A tradução tende a apagar os traços de diferentes formas de linguagem (dialetos) que coexistem no original. Apaga, portanto, a relação do dialeto com a língua comum. Como a sobreposição de línguas fica ameaçada pela tradução, o resultado pode ser um texto completamente homogêneo. Uma tradução bem sucedida levaria em conta todos os tipos de língua que se distinguem na obra.

As doze deformações acima buscam categorizar elementos de diferentes dimensões textuais com as quais o tradutor precisa lidar, principalmente no caso da Tradução Literária (como a necessidade de um esclarecimento na tradução, o que pode acabar alongando o texto traduzido; como a substituição de expressões da cultura do TF por outras do TA podem se caracterizar como etnocentrismo).

Em busca de uma compreensão sobre a forma prática em que essas deformações se manifestam no texto traduzido, analisamos e comparamos escolhas tradutórias para casos-problemas. Os passos do processo em que aplicamos o olhar analítico de Berman (2000) às duas traduções brasileiras são descritos no capítulo a seguir.

55 2 A CATEGORIZAÇÃO DO TEXTO LITERÁRIO E OS PASSOS DA ANÁLISE

COMPARATIVA

Este capítulo tem como objetivo 1) descrever o tipo de pesquisa realizada; 2) apontar os passos metodológicos seguidos; 3) explicar critérios da delimitação do corpus; 4) estabelecer as categorias de observação do capítulo de análise. Antes de prosseguirmos, porém, se faz importante destacar que a pesquisa tem como base os Estudos da Tradução que se ocupam do caráter cultural do Texto Literário. Por isso nos baseamos no olhar polissistêmico de Even-Zohar (1990) para realizar o recorte teórico apresentado no capítulo 1.