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1.1 Um prólogo para o absurdo: os contextos filosófico, histórico e estético de

1.1.3 O Teatro do Absurdo: unindo mensagem e formato

1.1.3.2 O Teatro do Absurdo e a insuficiência da linguagem

O Teatro do Absurdo traz uma nova e caótica forma de manifestar a linguagem, falando do absurdo da vida e da falta de sentido dos sentimentos, ações e condições humanas, não através de falas bem elaboradas, racionalizações lúcidas e logicamente construídas, mas através de cenas e falas igualmente absurdas, sem sentido, e muitas vezes desconexas, nas quais ocorre uma recusa dos recursos literários tradicionais e do discurso lógico e racional utilizado pelos existencialistas. A forma como a consciência dos personagens passou a ser mais explorada do que o enredo e o discurso desarticulado mais valorizado do que o discurso regido pelas regras convencionais de pontuação (o que, esteticamente, se aproxima de elementos do Nouveau Roman e dos movimentos avant-garde) contrasta com a forma como os existencialistas exploravam seus temas, como mostra Esslin (1961):

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[...]esses escritores [os existencialistas] diferem dos dramaturgos do absurdo em um aspecto importante: eles apresentam sua sensação sobre a irracionalidade da condição humana na forma de raciocínio altamente lúcido e logicamente construído, enquanto o Teatro do Absurdo se esforça para expressar sua sensação de falta de sentido da condição humana e da inadequação da abordagem racional pelo abandono aberto de dispositivos racionais e pensamento discursivo. (ESSLIN, 1961, p.24, tradução nossa40).

Existencialistas como Camus e Sartre expressavam suas novas ideias em um formato já clássico, consagrado, convencional. Um dos objetivos principais dos escritores e dramaturgos do Absurdo era despertar o estranhamento do público através de um formato também inovador, fosse através de imagens absurdas (vistas no palco ou lidas nos direcionamentos das peças e na linguagem presente na mesma) ou dos problemas de comunicação entre os personagens devido à inconsistência da linguagem presente na obra. Para Esslin, é “essa necessidade por integrar o assunto tratado à forma em que se expressa que separa o Teatro do Absurdo do Teatro Existencialista” (ESSLIN, 1961, p. 25, tradução nossa41).

Muito do Teatro do Absurdo parece desconstruir linguagem, formatos e convenções do teatro e da literatura. “O que acontece no palco transcende, e geralmente contradiz, as palavras faladas pelos personagens” (ESSLIN, 1961, p. 26, tradução nossa42). O ‘todo’ a ser compreendido não está apenas no conteúdo dito, mas no formato que engloba texto e imagens concretas do palco (que no formato literário aparecem como direcionamentos de palco). Essas características que circundam o Teatro do Absurdo

40 These writers differ from the dramatists of the Absurd in an important respect: They present their

sense of the irrationality of the human condition in the form of highly lucid and logically constructed reasoning, while the Theatre of the Absurd strives to express its sense of the senselessness of the human condition and the inadequacy of the rational approach by the open abandonment of rational devices and discursive thought.

41 this striving for an integration between the subjetct-matter and the form in which it is expressed

that separates the Theatre of the Absurd from the Existentialist theatre

42 What happens on the stage transcends, and often contradicts, the words spoken by the

29 fazem parte do movimento antiliterário (ESSLIN, 1961) que encontra sua expressão na rejeição de elementos clássicos e estabelecidos.

O Teatro do Absurdo de Beckett, influenciado por essa subversão da linguagem, apresenta uma busca progressiva e deliberada pelo menos, pelo não dito, pela pobreza e pela precariedade dos conceitos e explicações, trazendo elementos literários cada vez mais rarefeitos, embora cada vez mais trabalhados (SOUZA, 2006). Assim, buscar delimitar e simplificar símbolos a partir de elementos superficiais do texto implicará em precipitações.

Podemos citar o caso do símbolo ‘Godot’, que ainda hoje desperta tentativas de interpretações etimológicas, geralmente envolvendo a palavra God e o diminutivo do francês ‘-ot’. Quando perguntado sobre o significado do nome Godot, Beckett respondeu: “se eu soubesse, eu teria explicado na peça” (LEVY, 1956, p. 23, tradução nossa43).

Tentativas de encontrar pelo menos uma explicação etimológica para o nome Godot são tidas por Esslin (1961) como ingênuas. O próprio Beckett já havia defendido que a forma e a estrutura de uma expressão artística não podem ser separadas de seu significado. Para o autor, o que é dito está profundamente ligado à maneira como é dito e não pode ser dito de outra maneira. Mesmo as referências religiosas (dos ladrões na crucificação, do provável God no título da peça) são vistas por intermédio de seu formato, como traz Beckett em entrevista a Harold Hobson (1956, p. 153):

Eu estou interessado no formato das ideias mesmo que eu não acredite nelas. Tem uma frase ótima de Santo Agostinho. Eu queria poder me lembrar dela em latim. É ainda mais bonita em latim do que em inglês. ‘Não se desespere; um dos ladrões foi salvo. Não presuma; um dos ladrões foi condenado. Essa frase tem um formato ótimo. É o formato que interessa (HOBSON, 1956, p. 153, tradução nossa44).

43 If I knew I would have said so in the play.

44 I am interested in the shape of ideas even if I do not believe in them. There is a wonderful

30 Seguindo um caminho contrário à apoteose da língua de Joyce, a arte de Beckett traz personagens que usam a linguagem de forma que “cada fala destrói o que foi dito na linha anterior (...) na verdade, o uso da dramaturgia mostra que Beckett tentava encontrar meios de expressão que fossem além da linguagem” (ESSLIN, 1961, p. 85, tradução nossa45). Beckett leva sua apoteose ao contrário, seu Work in Regress (brincadeira feita por ele mesmo para contrastar com o Work in Progress de Joyce) a uma nova dimensão através do teatro.

A linguagem do teatro de Beckett tem como função principal expressar a desintegração da própria linguagem. E, nessa nova forma de expressão, “a concretude e a natureza tridimensional do palco pode ser usada para adicionar novos recursos à linguagem como um instrumento de pensar e de explorar o problema de ‘ser’” (ESSLIN, 1961, p. 86, tradução nossa46). Embora nada pareça estar sendo comunicado entre os personagens, muito está sendo dito pela peça, por meio da caracterização dos personagens, cenário, movimentos, símbolos e, até mesmo, por meio do discurso caótico e fragmentado dos personagens.

Em um dos estudos contidos na coleção Books devoted entirely to Beckett, da universidade de Zurich, Niklaus Gessner (1957), em sua tese de doutorado Die Unzulänglichkeit der Sprache (A Inadequação da Linguagem), chega a mostrar 10 formas distintas em que a desintegração da linguagem pode ser observada em Waiting for Godot: mal-entendidos, clichés, repetição de sinônimos, impossibilidade de encontrar a

‘Do not despair; one of the thieves was saved. Do not presume; one of the thieves was damned.’ That sentence has a wonderful shape. It is the shape that matters.

45 each line obliterates what was said in the previous line (…) in fact, his [Beckett´s] use of the

dramatic medium shows that he has tried to find means of expression beyond language.

46 The concreteness and three-dimensional nature of the stage can be used to add new resources

31 palavra certa, perda da estrutura gramatical, etc. Comunicar o subjetivo, o metafísico, o que não pode ser comunicado, toma uma forma de sonho (e pesadelo) na peça.

Estes trabalhos literários possuem significados e são o que são devido às suas ambiguidades e incertezas irredutíveis. São trabalhos que buscam ser sentidos mais do que racionalizados, e a forma que o artista escolheu para estruturá-los, a ordem das palavras e as referências culturais, tem uma relação próxima com as sensações que ele busca passar. Como traz Esslin (1961), a espera de dois homens se transforma em uma luta lamentável contra a monotonia da situação e contra a perda de suas esperanças devido às frustradas expectativas pela aparição de Godot (ESSLIN, 1961).

O problema da absurda situação humana é explorado na linguagem da peça, já que os dois, enquanto esperam, precisam interagir para que o tempo passe e para que não cometam suicídio. Esse aparente caos na comunicação da peça torna-se identificável pela dificuldade de se descrevê-la em um resumo linear que sintetize a obra de maneira narrativa.

Em Waiting for Godot, o vai e vem das incertezas, a esperança de descobrir a identidade de Godot e o repetido desapontamento são, em si, o tema da peça. Qualquer tentativa de chegar a uma interpretação clara e certa, estabelecendo uma identidade para Godot, seria tão tola quanto tentar descobrir claramente os traços de uma obra de arte raspando a superfície e destruindo a obra (ESSLIN, 1961, p. 45)

Portanto, ao lidarmos com um texto literário, lidamos diretamente com a criatividade do autor. Compactar ou resumir uma obra do Teatro do Absurdo parte de uma “concepção errônea de que de alguma forma essas peças podem ser reduzíveis às convenções do teatro ‘normal’, com enredos que podem ser resumidos em formato de

32 uma narrativa” (ESSLIN, 1961, p.45, tradução nossa47). Essa pista secreta que traduza a peça para um formato ‘convencional’ não existe no Teatro do Absurdo.