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3.1 A Tradução das Estratégias do Teatro de Beckett

3.1.1 O Catecismo de Beckett

Em suas poucas entrevistas e debates sobre as próprias obras, Beckett costumava responder, quando perguntado sobre os temas cristãos e o formato em geral de Waiting for Godot, com uma referência a Santo Agostinho:

Tem uma frase maravilhosa em ‘Agostinho’. Eu queria poder lembrar em latim. Fica ainda mais bonito em latim do que em inglês. ‘Não se desespere: um dos ladrões foi salvo. Não presuma: um dos ladrões foi condenado (...) eu estou interessado no formato das ideias ainda que eu não acredite nelas...Essa frase tem um formato maravilhoso. É o formato que interessa (HOBSON, 1956, p.153, tradução nossa62).

Dentro dessa temática, a crucificação e a fé são uns dos elementos mais recorrentes em Waiting for Godot, aparecendo, na maioria das vezes, de forma a criar uma tensão entre o elemento sagrado dos textos cristãos e os posicionamentos de

62 There is a wonderful sentence in Augustine. I wish I could remember the Latin. It is even finer in

Latin than in English. ‘Do not despair: one of the thieves was saved. Do not presume: one of the thieves was damned (…) I am interested in the shape of ideas even if I do not believe in them…That sentence has a wonderful shape. It is the shape that matters.

71 personagens que atacam as crenças religiosas. Consideremos o exemplo trazido por Estragon, que depois de ouvir a estória dos ladrões crucificados (a mesma contada por Beckett acima) e entrar em uma discussão sobre o fato de que apenas a versão de um evangelista se tornou famosa, conclui: “o povo é de uma burrice” (FSA, p. 34). A crítica de Beckett à religião está em Waiting for Godot de maneira sólida, embora nem sempre óbvia.

É o caso de quando Estragon se identifica como Adam (na versão em língua inglesa):

SB, p. 34 FR, p. 64 FSA, p. 64

POZZO:

True. (He sits

down. To Estragon.) What is your name? ESTRAGON: Adam. POZZO: (who hasn't listened). Ah yes! The night. POZZO É verdade. (Senta. A Estragon) Como é seu nome? ESTRAGON Catullus.

POZZO (que não o escutou)

Ah, sim, a noite.

POZZO

Isso mesmo. (Senta- se de novo. A Estragon) Qual é o seu nome? ESTRAGON (Num piscar de olhos) Catulo. POZZO

(sem ter escutado) Ah, é! A noite.

Porém, como nos chama atenção o trabalho de Hutchings (2005), na versão francesa, Estragon se identifica como Catulle:

Minuit, p. 51

POZZO. - C'est vrai . (Il se rassied. A Estragon.) Comment vous appelez- vous ?

ESTRAGON (du tic au tac) . - Catulle.

POZZO (qui n'a pas écouté). - Ah oui, la nuit.

72 Os tradutores brasileiros optaram por seguir o texto em língua francesa, que não faz uma referência a Adão (referência que apoia a ideia de que os dois são toda a humanidade, como diz Estragon na página 80 do livro da editora da F&F), mas sim ao filósofo romano Gaius Valerius Catullus (84 – 54? A.C.). Sobre essa diferença entre referências, Beckett explica ter abandonado a ideia de Catulle por estar farto da mesma (GRAVER. 2004). Como discute Graver (2004) em seu estudo, Beckett poderia ter escolhido outro nome, mas o elemento inserido por ele foi religioso.

Exemplos como esse sugerem que uma ocorrência da estratégia do Catecismo beckettiano se faz mais frequente em língua inglesa, já que o autor substitui nomes próprios e provérbios populares do francês (como analisamos abaixo) por elementos religiosos em inglês. Observar a forma como Beckett pode ter tornado mais explícita as críticas ao cristianismo ao recriar o texto Waiting for Godot a partir de En Attendant Godot demonstra uma mais concreta resposta para a pergunta “o que muda do texto em francês para o texto em inglês?”. No exemplo acima, como em outros que serão citados, chama- nos a atenção a fidelidade dos tradutores brasileiros para com o texto em francês, o que deixa de fora a maior variedade de críticas religiosas presentes no original em inglês.

Outros elementos religiosos, no entanto, estão presentes desde o primeiro texto em francês e se mantêm em inglês. É o caso da fala de Lucky, que traz queixas sobre um Deus que, sintetizado por Esslin (1961, p. 56, tradução nossa63), “não se comunica conosco, não pode sentir por nós, e nos condena por motivos desconhecidos”. As referências culturais dentro da fala de Lucky são examinadas na última parte da primeira categoria de análise.

Através dos momentos da peça que exploram elementos sagrados para questionar o divino, Waiting for Godot aponta a esperança humana por uma salvação divina, juntamente com certas visões cristãs, como uma grande má-fé (no sentido do conceito sartriano) da humanidade.

O provérbio 13:12

Logo nas primeiras páginas Vladimir e Estragon estão em sua primeira discussão: a braguilha aberta de Vladimir e o sapato apertado de Estragon. Sobre esses temas,

73 aparentemente bobos, eles constroem pensamentos complexos: “Boots must be taken off everyday“, diz Vladimir sobre o sapato de Estragon; “Never neglect the little things of life”, diz, também Vladimir, sobre a própria braguilha aberta. (SB, p. 06) (“Sapatos a gente tira todos os dias”; “Nunca descuide das pequenas coisas”, FSA, p. 30).

É quando Vladimir “medita” (de acordo com o direcionamento de palco) e cita, de forma descompromissada, os provérbios 13:12 da Bíblia (Vladimir até esquece uma palavra do provérbio, e substitui por Something):

SB, p. 91 FR, p. 189 FSA p. 192

VLADIMIR:

(musingly). The last moment . . . (He

meditates.) Hope

deferred maketh the something sick, who said that?

VLADIMIR

O último momento… (Medita.) Será

demorado mas

será bom. Quem disse isso?

VLADIMIR

(sonhador) O último minuto... (Medita) Custa a chegar, mas será maravilhoso.

O provérbio ao qual Vladimir se refere de forma incompleta, na íntegra é um pouco mais longo, e pode ser dividido em duas partes:

Uma negativa: Hope defferred maketh the heart sick

Uma positiva: but when the desire cometh, it is a tree of life64

Podemos traduzir o provérbio como “A esperança prolongada torna o coração doente: mas quando o que é desejado vem, é uma árvore de vida”, tradução nossa). Em outras palavras, a demora de algo pelo qual um homem ansiosamente nutre esperança, deseja e espera é uma aflição tão grande para o coração que se compara a uma doença; mas quando o bem esperado é finalmente obtido, este sentimento é o melhor, mais doce e mais satisfatório para a alma.

Vladimir não consegue lembrar da palavra “heart” e usa Something no lugar. Ele também não se preocupa em citar a parte positiva do provérbio – talvez porque a ideia de

74 uma árvore da vida65 existindo nesse ambiente infernal, como traz Vasconcellos (2012), esteja fora de questão. O provérbio nos mostra ambos os lados, mas a fala de Vladimir se encerra na primeira parte: “Hope deferred maketh the something sick”.

O uso de maketh, inglês antigo usado na Bíblia de King James de 1611, não influencia diretamente a compreensão e a superfície do texto, mas, através de um expletivo, denuncia ao leitor do original em inglês uma referência ao formato antigo da língua inglesa encontrada na Bíblia.

Analisando duas das traduções brasileiras da bíblia, pudemos encontrar o provérbio 13:12 traduzido como: “A esperança adiada desfalece o coração, mas o desejo atendido é árvore de vida66”; e “A esperança que se adia faz adoecer o coração, mas o desejo cumprido é árvore de vida67”. Nas traduções de Waiting for Godot para o português, no entanto, a referência à Bíblia, ou qualquer pista de que a fala de Estragon se referia ao livro sagrado não se faz presente. Nada dos provérbios em português é utilizado:

Em FR temos: Será demorado, mas será bom (p. 12) Em FSA: Custa a chegar, mas será maravilhoso (p. 31)

A primeira possibilidade considerada para a ausência do provérbio seria uma impossibilidade de manter, em língua portuguesa, a referência ao provérbio dentro da fala de Vladimir. Encontrar uma alternativa para a palavra maketh que, além de se encaixar na versão em português do provérbio, fosse também de uma origem arcaica e remetesse o leitor brasileiro à Bíblia seria uma tarefa árdua. Isso tendo em vista que o tradutor (ou a editora) optou por não interromper o texto com observações, notas de rodapé ou notas de fim.

65 Na Bíblia a árvore da vida encontra-se no topo de uma montanha, que simboliza, através da

ascensão física necessária para alcança-la, o esforço e a ascensão espiritual. Em Esperando Godot a árvore que caracteriza o palco não parece ser ‘tão da vida’ ( e muito menos se localiza onde qualquer ascensão pareça ser necessária mas sim em uma estrada que não leva a lugar nenhum e vem de lugar nenhum, tão importante para as ideias de confinamento e circularidade exploradas por Cláudia Maria de Vasconcellos em sua tese de doutorado – orientada por Fábio de Souza Andrade, um dos tradutores de Waiting for Godot para o Brasill – e que mais tarde resultou no livro Teatro Inferno: Samuel Beckett, publicado pela editora Terracota em 2012.

66 (Provérbios 13:12 – Almeida, Corrigida e Revisada Fiel - pt) 67 (Provérbios 13:12 – Almeida Revista e Atualizada)

75 A estratégia do Catecismo de Beckett, presente no texto original em inglês, se torna imperceptível nas traduções brasileiras. Observamos o texto em francês em busca de um esclarecimento:

Minuit, p. 12

VLADIMIR (rêveusement). - Le dernier moment

. . . (Il médite.) C'est long, mais ce sera bon. Qui disait ça ?

No exemplo vemos que após contemplar “Le denier moment” (o último momento), Vladimir diz: C’est long, mais ce sera bon. Qui disait ça? (será ‘demorado’, mas será bom. Quem disse isso?). As duas traduções brasileiras seguem o original em francês, portanto, que apesar de não trazer um provérbio bíblico, traz o que parece ser uma versão propositalmente incompleta de um popular provérbio da língua francesa, “plus c’est long plus c’est bon” (algo como ‘quanto mais demorado, melhor’).

Vale lembrar, como nos alerta FSA, que a alusão ao provérbio popular em francês é uma das possibilidades do eco trazido por Beckett nessa passagem.

o texto beckettiano é feito de alusões e elipses o tempo todo. Difícil cerrar fileiras em torno a um eco em particular ou a outra das ressonâncias, muitas e nem sempre conscientes na composição. Nada de fechar os ouvidos a elas, portanto, nem de pensar haver encontrado a chave privilegiada de determinada vontade expressiva em um dito singular (ANDRADE, 2017).

Compreendendo a possibilidade de que o dito popular tenha sido utilizado por Beckett na escrita em francês, podemos concluir que, ao transportar ‘Godot’ para a língua inglesa, o autor enxergou o espaço para incluir um provérbio da bíblia onde antes havia um provérbio popular da cultura francesa. A estratégia do Catecismo foi reforçada por Beckett no transporte de ‘Godot’ para língua inglesa, assim como acontece no exemplo de Adam.

A referência a elementos culturais (provérbio bíblico e provérbio do francês) acontece em ambos os originais, o que justifica a pergunta seguinte de Vladimir: Qui dissait ça? (quem disse isso?). Vladimir se pergunta, na verdade, de onde ele lembra os dizeres.

76 Em língua portuguesa a passagem não faz referência a provérbio algum, já que em português não temos um ditado semelhante para ser lembrado (de forma incompleta, como quem procura na memória) por Vladimir. A ausência de um elemento cultural (seja bíblico, seja popular) onde antes havia um acaba, segundo Berman (2000), por trazer uma de suas deformações: a destruição das redes subjacentes de significação.

Para Berman (2000) o trabalho literário contém uma dimensão ‘escondida’ que pode ser caracterizada como um “texto subjacente”. Essas correntes escondidas constituem um aspecto do processo rítmico e significativo do texto. Esse sentido que só existe nas entrelinhas das obras originais não acontece em português, sendo resultado de uma destruição de expressões e idiomas, outra das deformações de Berman.

De acordo com o autor (BERMAN, 2000), a prosa é abundante em imagens, expressões, figuras, provérbios, etc. Estes se derivam, em parte, da língua vernácula do autor (ou, no caso de Beckett, de cada uma das línguas em que ‘criou’ Godot). Para a maioria desses elementos culturais, o tradutor encontrará, “prontamente”, imagens, expressões e figuras paralelas, contudo, isto não deve impedi-lo de ver que a sua tradução vai tender ao etnocentrismo.

Pensemos, por exemplo, sobre a possibilidade de um dos tradutores trazerem um provérbio da língua portuguesa, como “a esperança é a última que morre”. A escolha por manter um dito popular justificaria a lembrança falha de Vladimir (que pergunta quem disse isso?), mas traria uma expressão nacional que deformaria outros aspectos do texto. A sua escolha acabaria por trazer elementos etnocêntricos, pois destruiria o ‘estrangeiro’ na busca por algo familiar ao leitor do TA.

Levamos ao tradutor Fábio de Souza Andrade a questão do caso acima (para a entrevista na íntegra, consultar Anexo B). Já que a sua tradução segue o original em francês, perguntamos a ele se, em seu processo de tradução, a disponibilidade de mais de um original implicou em uma possibilidade de plano B, ou seja, se o olhar do tradutor, neste caso, buscou a possibilidade ‘mais traduzível’, seguindo o francês. Fábio de Souza diz:

O jogo da tradução, a meu ver, não se ganha nem perde em uma fala, um verso, uma imagem. Só pode ser avaliado no conjunto, é um perde e ganha contínuo, envolve necessariamente frustrações, renúncias. Minha opção sempre foi privilegiar o ritmo geral, a arquitetura calcada em ruínas, inclusive linguísticas, feita de despojos e falhas. O critério não é o de acumular todas as possíveis referências, “somando” os textos, nem o de manter uma referência que aparece apenas em uma das versões a qualquer custo, mas, mantendo-se

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mais próximo do texto francês, aproveitar ao máximo os esclarecimentos e possibilidades que a versão em inglês abria. Traduzível, em última análise, deve ser o texto como um todo (ANDRADE, 2017).

A não possibilidade de trazer o provérbio bíblico, para o tradutor, não se faz extraordinária ao “perde e ganha contínuo” do processo de traduzir. Existe, entre os dois originais, uma variação na referência, e, como diz FSA, não é possível uma acumulação de variáveis no momento da tradução. Embora o original em inglês mostre mais um elemento religioso que não estava presente no texto em francês, a impossibilidade de manter “a qualquer custo” uma referência que aparece em uma das versões, acumulando, assim, os textos, acaba por ‘cortar’, repetidas vezes, esses elementos religiosos introduzidos por Beckett no texto em inglês.