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3.2 A tradução dos demais elementos culturais

3.2.1 Os elementos culturais nas danças de Lucky

No fim do primeiro ato, Pozzo (que estava a caminho da feira onde iria se desfazer de Lucky) oferece a Estragon e Vladimir uma encenação de seu escravo. Antes da encenação, no entanto, Pozzo conta-os que Lucky costumava até dançar e faz, para

106 Estragon e Vladimir, uma lista das danças que ele sabia. Em uma longa fala, cheia de referências culturais, podemos identificar nomes inusitados e danças de países específicos que saem em tom de piada:

SB, p. 37 FR, p. 70 FSA, p. 67

POZZO:

He used to dance the farandole, the fling, the brawl, the jig, the fandango and even the hornpipe. He capered. For joy. Now that's the best he can do. Do you know what he calls it? ESTRAGON:

The Scapegoat's Agony. VLADIMIR:

The Hard Stool. POZZO:

The Net. He thinks he's entangled in a net.

POZZO

Antigamente, ele dançava a farândola, a folgança, o vira, a jiga, o fandango, o jitterbug. Ele saltava. De pura alegria. Agora, isso é o melhor que ele faz. Sabe como ele chama essa dança? ESTRAGON A Agonia do Bode Expiatório VLADIMIR O Câncer do Ancião. POZZO

A rede. Ele pensa que está preso numa rede.

POZZO

Antes, ele dançava a farândola, os sete véus, o cotilhão, a giga, o

fandango e até a

hornpipe. Saracoteava. Agora, não vai além disso. Sabem como ele a chama? ESTRAGON

A agonia do joão- ninguém.

VLADIMIR

O câncer dos velhinhos. POZZO

A dança da rede. Ele se imagina emaranhado numa rede

A primeira dança, a farandole, é uma dança provincial francesa do século XIX, na qual homens e mulheres dançam tocando as mãos. Nas duas traduções o nome foi mantido;

Já the fling faz referência à Highland Fling, antiga dança tradicional da Escócia, e foi traduzida como a folgança por FR. A folgança provavelmente se refere à dança pertencente ao folclore brasileiro, presente na festa de bumba-meu-boi, “a Folgança dos Marujos”. FSA traduz a dança the fling como os sete véus: a famosa dança do ventre de origem indiana, na qual cada véu (cuja cor remete aos chacras) vai sendo retirado para representar uma revelação do desconhecido.

Enquanto FR substitui the fling, uma dança muito distante do contexto brasileiro, por folgança (que pode ser mais próxima, dependendo da região da qual falamos), FSA

107 traz uma dança popular no mundo todo, inclusive no Brasil, mas que não é de origem brasileira: os sete véus. Ambos concordam que the fling não funcionaria no Brasil, por isso FR busca uma solução mais etnocêntrica, enquanto FSA busca uma solução mais universal (e popular, mesmo que se trate de uma dança da cultura indiana).

The Brawl, a terceira dança mencionada por Pozzo, é um tipo de dança francesa que ficou popular a partir do século XVI. O brawl, ou branle, é geralmente dançado em círculos e, na tradução de FR, a dança se torna o vira, tradicional gênero músico- coreográfico da dança portuguesa. Já para FSA, a dança aparece como cotilhão, tipo de dança que mistura vários tipos de ritmos e pares no fim de um baile.

The jig, dança barroca importada da Inglaterra para a França no século VII, é traduzida por a jiga pelo tradutor FR, e como a giga por FSA. Os dois mantém o nome da dança, e a única diferença é a grafia, já que FSA utiliza o ‘g’, grafia que é oficialmente utilizada no Brasil nos dias de hoje.

The fandango, dança popular na Espanha e em Portugal, foi mantida por ambos os tradutores. A dança é popular no mundo todo (tendo aparecido em canções populares, como Bohemian Rhapsody da banda de rock inglesa Queen), além de ser reconhecida como dança tradicional do Rio Grande do Sul. A permanência de fandango se deve a sua popularidade no Brasil, diferente da maioria das danças desta lista.

A hornpipe se refere à dança escocesa, inglesa e irlandesa surgida no século XVI, na qual um sapateado marca o compasso da música. FR utiliza jitterbug75, um tipo de dança, também animada, popularizada nos Estados Unidos no início do século XX. FSA prefere manter o nome hornpipe em itálico, uma estratégia mais etnocêntrica por indicar o estrangeiro através do itálico.

He capered. For joy. Ele saltava. De pura alegria.

Saracoteava.

75 Dança rápida e swingada popular nos anos 40, geralmente relacionada ao boogie-woogie. A

palavra também pode se referir a uma pessoa nervosa (Fonte: Definição do dicionário, disponível em <http://www.dictionary.com/browse/jitterbug>. Acesso em 02/03/2017)

108 No destaque acima vemos que, ao fim de uma considerável lista de ritmos dançados por Lucky, Pozzo adiciona que Lucky “capered. For joy.”. Caper é uma palavra que em latim significa “bode macho”. Em inglês, ela é utilizada para descrever pulos animados no ar (a palavra possui um tom cômico na língua inglesa justamente por se relacionar com os pulos de um bode). Vemos que FR prolonga o texto com uma clarificação, já que a expressão idiomática do original é destruída por não possuir uma raiz equivalente em português. O oposto ocorre na tradução de FSA, que encontra uma expressão correspondente na língua portuguesa, que funciona sem precisar de sujeito ou complemento, apesar de Berman (2000) apontar essa substituição como uma destruição da expressão em inglês.

O movimento seguinte é descrito por Estragon como the scapegoat’s agony, que é traduzida da seguinte maneira para o Brasil.

The Scapegoat's Agony A Agonia do Bode Expiatório

A agonia do joão- ninguém

Scapegoat é uma exressão idiomática para se referir a uma pessoa que leva a culpa pelos outros, que sofre a punição em seu lugar. Logo, a dança the scapegoat’s agony mencionada por Estragon é de caráter fictício, e seu objetivo é zombar do personagem Lucky. Várias cenas da peça informam que Lucky é um coitado, um escravo, apesar de seu nome (que significa sortudo).

Na tradução de FR vemos uma tradução próxima à literal, visto que a expressão existe em português de forma parecida. Sendo o tipo de tradução idealizado por Berman, a tradução de scapegoat por bode expiatório não destrói a expressão idiomática original. Neste caso, ambas envolvem goat/bode e herdam de tradições clássicas e tempos ancestrais o seu sentido. Na tradição judaico-cristã, por exemplo, temos nos Levíticos 16:18, 10 e 26 a figura do bode que recebe os pecados de um povo e é, então, sacrificado.

Na tradução de FSA, no entanto, vemos a escolha por uma outra expressão, também popular na língua portuguesa, o João-ninguém. Essa escolha do tradutor mais contemporâneo, de acordo com Berman (2000), destrói a expressão idiomática e a substitui por uma de significado próximo. “Está claro que mesmo que o significado seja

109 idêntico, substituir uma expressão idiomática por outra ‘equivalente’ é um etnocentrismo” (BERMAN, 2000, p. 295, tradução nossa76).

Observando o texto em francês podemos perceber que a dança sugerida por Estragon é La mort du lampiste (Minuit, p. 56). O Lampiste pode ser traduzido como a pessoa que fabrica lâmpadas, ou como uma pessoa que assume as responsabilidades de seus superiores (um bode expiatório). O etnocentrismo de FSA não se justifica, portanto, por uma decisão de seguir uma expressão mais próxima do texto em francês, já que o mesmo possibilitaria a tradução como bode expiatório. Berman (2000) chama a atenção para o fato de que esse tipo de substituição acaba sendo cumulativo, e, quando pensamos no trabalho como um todo, devemos pensar na soma das deformações. O autor diz: “os pontos que eu levanto aqui, com um ou dois exemplos, devem sempre ser multiplicados” (BERMAN, 2000, p. 295, tradução nossa77).

A penúltima dança da lista, the hard stool, também aparece para zombar do ‘Lucky dançarino’:

The Hard Stool. O Câncer do Ancião. O câncer dos velhinhos.

Podendo ser traduzida literalmente como ‘o tamborete duro’, the hard stool também funciona, em língua inglesa, para se referir à constipação. Ambas as imagens nos dão uma noção do constante sofrimento de Lucky, sendo o nome da dança mais um elemento que atribui um humor negro à situação do personagem que tanto é maltratado por seu mestre Pozzo – sempre levando chicotadas, puxadas de corda (que é também sua coleira), e sendo alimentado por ossos.

A tradução de FR renomeia a dança de o câncer do ancião, e a de FSA opta, seguindo um caminho semelhante, por chamar-lhe de câncer dos velhinhos. A escolha em comum dos dois tradutores brasileiros nos chamou a atenção para o texto em francês. Observamos, portanto, o texto En attendant Godot atentos à lista de danças feita

76 it is evident that even if the meaning is identical, replacing an idiom by its ‘equivalent’ is an

etnocentrism

110 por Pozzo. Encontramos no texto em francês a confirmação de que ambos os tradutores seguiram o texto em francês neste momento:

SB, Minuit, p. 56

Pozzo. - Autrefois, il dansait la farandole, l'almée, le branle, la gigue, le fandango et même le hompipe. Il bondissait. Maintenant il ne fait plus que ça. Savez- vous comment il l'appelle ?

ESTRAGON. - La mort du lampiste. VLADIMIR. - Le cancer des vieillards. Pozzo. - La danse du filet. li se croit empêtré dans un filet.

Le câncer des viellards, que aparece no original em francês, é traduzido por FR como o Câncer do Ancião, e por FSA como o câncer dos velhinhos. Seguindo o original em francês, uma deformação que poderia ser trazida pela tradução da expressão dúbia “hard stool”, presente no original em inglês, acaba assim por ser evitada.

Para traduzir hard stool os tradutores teriam de escolher um dos dois caminhos sugeridos pela palavra: “tamborete duro” ou “constipação”. A brincadeira com as palavras – visto que Lucky carrega um tamborete consigo – seria limitada a apenas uma das opções na tradução para o português. Os dois seriam nomes igualmente possíveis para a dança de Lucky, portanto. A confusão se resolve quando os dois seguem o original francófono e, assim, ‘livram-se’ da escolha.