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CAPÍTULO I – ELLEN G WHITE EM CONTEXTO

2.3 Ambiente Social

2.3.3 A urbanização desordenada

Ellen White testemunhou uma verdadeira transformação demográfica no espaço norte- americano habitado de seu tempo. Um de seus biógrafos confirma que “a última metade do ministério de Ellen White coincidiu com o surgimento fenomenal das cidades industrializadas e urbanizadas”125. A segunda metade do século XIX foi marcada pelo fenômeno da urbanização desordenada, principalmente nas partes Leste e Norte dos Estados Unidos. O êxodo rural, somado à chegada diuturna de imigrantes de todas as partes126, em especial da

124 WHITE, Ellen G. Testemunhos para a Igreja – v. 1. Tradução de César Luís Pagani. 2. ed. Tatuí-SP: Casa

Publicadora Brasileira, 2004, p. 257.

125 DOUGLASS, Herbert. Mensageira do Senhor. Tradução de José Barbosa da Silva. 3. ed. Tatuí-SP: Casa

Publicadora Brasileira, 2003, p. 47.

126 SCHWANTES, Carlos A. El Surgimiento de Una Norteamérica Urbana e Industrial. In: LAND, Gary y

Otros. El Mundo de Elena G. de White. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 94, pontua: “Apesar de seus muitos e intrincados problemas, a cidade seguia sendo um imã que ataia os novos residentes da Europa e das regiões rurais da América do Norte.” (tradução própria)

Europa127, todos em busca dos empregos oferecidos pelos novos empreendimentos de industrialização, fez com que as cidades inchassem rapidamente, em proporção não esperada e não controlada pelos governos locais. Historiadores registram que as cidades “se estenderam sobre extensões de terra cada vez maiores à medida que a população, a indústria e o comércio cresciam”128.

A nação que nascera e até então crescera na fazenda agora estava se tornando metropolitana, sem nenhum constrangimento em deixar seus costumes marcadamente rurais para se aventurar num estilo de vida estranho à simplicidade agrícola, até então praticada de Norte a Sul do vasto território. Os deslocamentos populacionais foram tão rápidos, que “[...] permitiram que as cidades se estendessem para cima e para os lados ao custo lamentável do espaço aéreo e do horizonte”129.

Para se ter uma ideia da velocidade em que o País se tornou uma nação urbana, os registros apontam que “o número de norte-americanos que viviam em centros com mais de 2.500 habitantes havia crescido de 19 por cento em 1860 para 39 por cento em 1900 e 52 por cento em 1920”130. Outro historiador registra que “Durante a década de 1840 a população aumentou cerca de 36%, enquanto as cidades cresceram 90%”131. Muitas pequenas aldeias e vilarejos se transformaram rapidamente em grandes cidades.132 Em apenas vinte e três anos, no período de 1870 a 1900, a quantidade de cidades com mais de 100.000 habitantes nos Estados Unidos aumentou de 14 para 38.133

Muitos eram os apelos que contribuíam para tamanho crescimento das cidades. Educação gratuita134 e inovações úteis135, como o telégrafo, o telefone, a lâmpada elétrica, o

127 SEPÚLVEDA, Ciro. Elena G. de White: Lo Que No Se Contó. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación

Casa Editora Sudamericana, 1998, p. 23, informa que “num período de 100 anos, de 1815 a 1915, mais de 30 milhões de europeus migraram para a América do Norte.” (tradução própria)

128 SCHOEPFLIN, Rennie B. La Salud y Su Cuidado. In: LAND, Gary y Otros. El Mundo de Elena G. de

White. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 177, com tradução própria.

129 SCHWANTES, Carlos A. El Surgimiento de Una Norteamérica Urbana e Industrial. In: LAND, Gary y

Otros. El Mundo de Elena G. de White. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 90, com tradução própria.

130 SCHWANTES, Carlos A. The Rise of Urban-Industrial America. In: LAND, Gary. The World of Ellen

White. Hagerstown, MD: Review and Herald Publishing Association, 1987, p. 47.

131 SEPÚLVEDA, op. cit., p. 22, com tradução própria. 132 Ibid., p. 22, com tradução própria.

133 Ibid., p. 230-231.

134 Ibid., p. 18, refere-se à educação gratuita como “educação para todos”.

135 Ibid., p. 176-178, descreve algumas dessas invenções com alusão aos anos em que se tornaram grandes

bonde elétrico e o balão de transporte de passageiros, dentre outras invenções, alimentavam o entusiasmo daqueles que encontravam nessas comodidades motivos atrativos que ao lado de outros os faziam correr para as cidades na busca de desfrutar de suas novidades. Além disso, “[...] numerosos atrativos culturais e econômicos, partindo do agradável ambiente das bibliotecas públicas, as sinfonias e os teatros, até os empregos e outras formas de oportunidade financeiras”136, serviam aos interesses da turba ansiosa por desfrutar das supostas benesses da modernidade, disponíveis nos ajuntamentos urbanos.

Mas nem tudo era sonho. Afirma-se que “as cidades simplesmente haviam crescido muito rápido e com muito pouco planejamento”137. A falta de cuidado quanto à infraestrutura básica, minimamente necessária para fazer frente à rápida e repentina demanda de ocupação populacional, foi o gatilho que disparou a ocorrência e agravamento de sérios problemas sociais nos recém-surgidos centros urbanos. Realidades como incêndios de grandes proporções138, poluição excessiva do ar, aparência estética descuidada dos prédios, construção de ambientes apertados e extremamente aglomerados e sem ventilação, ruas não pavimentadas que com as chuvas se tornavam um fétido depósito de esterco de cavalos misturado com lama, enxames de moscas e outros insetos, infestações de ratos, esgotos correndo a céu aberto, água sem tratamento ou com tratamento primitivo ineficaz, tudo isso se tornou uma bomba-relógio para a saúde pública de quem vivia nesses centros.139 Pontua-se quanto a tal realidade que:

A historiadora médica Judith Walzer Leavitt havia descrito acertadamente os problemas sanitários da vida na cidade, com suas „moradias abarrotadas de ocupantes, escuras e sem ventilação adequada; ruas sem pavimentação, repletas de esterco de cavalos e cheias de restos de alimentos espalhados; abastecimento de água inadequado ou inexistente; poços vedados que permaneciam todo o ano sem ser esvaziados; caixas d‟água com vazamentos; sistemas de esgoto abertos em mau funcionamento e um odor insuportável‟.140

136 SCHWANTES, Carlos A. El Surgimiento de Una Norteamérica Urbana e Industrial. In: LAND, Gary y

Otros. El Mundo de Elena G. de White. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 90, com tradução própria.

137 Ibid., p. 91, com tradução própria.

138 SEPÚLVEDA, op. cit., p. 131, dá o exemplo do grande incêndio de Chicago ocorrido em 1871. 139 SCHWANTES, op. cit., p. 91-92, com tradução própria.

140 SCHOEPFLIN, Rennie B. La Salud y Su Cuidado. In: LAND, Gary y Otros. El Mundo de Elena G. de

White. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 177, com tradução própria.

Como consequência imediata do aglomerado de vidas humanas num ambiente de tal realidade, inadequado à saúde, a literatura relata a incidência, em proporção assustadora, dos mais variados tipos de doenças, algumas das quais ainda sem possibilidade de cura e até mesmo de tratamentos à época. Relata-se que “a cólera, a malária, a febre tifoide e virulenta visitavam com frequência as abarrotadas vizinhanças da cidade”141. As mortes em massa, decorrentes de tais pestilências, se tornaram mais comuns nos ambientes urbanos, desafiando o fraco e quase inoperante sistema de saúde pública das cidades.

Para complicar ainda mais a situação, o ambiente de disputa pela ocupação do espaço urbano deu lugar à especulação imobiliária. Relata-se que “devido ao elevado custo da terra, os urbanistas privados cobriam quase cada centímetro quadrado do solo”142. Esse nível de demanda por espaço de vida foi o gatilho para a oferta imobiliária de apartamentos, cuja novidade prometia ser a solução para os problemas de ocupação urbana desordenada. Mas o problema apenas mudou de dimensão. Mesmo nos edifícios, apelou-se para um tipo de ocupação cada vez mais aglomerada e imprópria para a saúde pública, e ainda a preços altíssimos, o que submetia o comprador à extrema exploração econômico-financeira:

Em alguns dos edifícios de apartamentos, mais da metade das habitações careciam de janelas. Em resposta a uma lei de reforma aprovada em 1879, os urbanistas de Nova York aperfeiçoaram um tipo de edifício de cinco ou seis blocos e com quatro apartamentos por piso. Uma pequena abertura entre os blocos possibilitaria certa ventilação que se supunha daria luz e ar aos apartamentos interiores; porém, mais que qualquer outra coisa, era uma fonte de maus odores e ruído. O tipo „edifício de apartamentos‟ continuava sendo obscuro, melancólico e perseguido pelas enfermidades.143

Outro historiador relata a mesma realidade, pontuando que, fosse o novo modelo de moradia próprio ou alugado, a situação de exploração econômica ao custo da deploração humana era a mesma, sendo visível sua condição prejudicial às massas:

Amontoados em altos edifícios de apartamentos, cujos proprietários não sentiam nenhuma motivação para melhorá-los ou realizar a manutenção, os inquilinos dormiam sobre os pisos, respiravam ar viciado, consumiam alimentos que não estavam devidamente conservados, bebiam água e leite

141 SCHWANTES, Carlos A. El Surgimiento de Una Norteamérica Urbana e Industrial. In: LAND, Gary y

Otros. El Mundo de Elena G. de White. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 92, com tradução própria.

142 Ibid., p. 92, com tradução própria. 143 Ibid., p. 92, com tradução própria.

em mal estado e usavam os banhos públicos que estavam em condições insalubres.144

Todos esses problemas de ocupação desordenada e aumento das doenças, somados à realidade do crescente desemprego145 e intensificação da pobreza, logo revelariam na miséria urbana o preço mais alto do despreparo e descuido governamental com as aglomerações populacionais da época. O problema não era somente demográfico, mas também político:

A verdade era que esses governos não estavam originalmente preparados para fazer frente a uma multidão de situações complexas. Mais ainda, as legislaturas estatais, dominadas pelo setor rural, refletiam um preconceito contra as metrópoles, frequentemente negando às cidades a faculdade de mudar seu governo para responder às novas circunstâncias.146

Em meio a seus problemas e aparentes vantagens, o fenômeno urbano seguia sendo um motivo de polarização de opiniões no meio social norte-americano. O que muitos achavam ser apenas um canal de progressos e benesses para o deleite populacional, para outros mais atentos era, na realidade, um emaranhado de problemas desafiadores e irreversíveis. Em razão de tal realidade, “enquanto os admiradores louvavam a vida da cidade por seu refinamento e oportunidade e consideravam os triunfos tecnológicos como uma confirmação do gênio inventivo da nação, os críticos encontravam muito que censurar”147. E para os críticos não faltavam motivos, dada a realidade já pontuada.

A demora e dificuldade dos governos em proceder aos ajustes culturais, estruturais e políticos necessários para atender aos referidos desafios trazidos pelas metrópoles contribuiria ainda mais para a polarização política já vivenciada à época entre republicanos e democratas. O fenômeno urbano se tornou uma polêmica visível que polarizou politicamente a nação caracterizadamente rural ao Sul de uma nação já caracterizadamente urbanizada ao Norte. Enquanto a primeira se opunha fortemente ao processo de aglomeração populacional, a

144 SCHOEPFLIN, Rennie B. La Salud y Su Cuidado. In: LAND, Gary y Otros. El Mundo de Elena G. de

White. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 177-178, com tradução própria.

145 Para se ter uma ideia da situação, SEPÚLVEDA, Ciro. Elena G. de White: Lo Que No Se Contó. 1. ed.

Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1998, p. 128, informa que “Em 1870 viviam 1.138.353 estrangeiros na cidade de Nova York; uma grande porcentagem deles não tinha emprego”. (tradução própria)

146 SCHWANTES, Carlos A. El Surgimiento de Una Norteamérica Urbana e Industrial. In: LAND, Gary y

Otros. El Mundo de Elena G. de White. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 92-93, com tradução própria.

segunda alardeava seu desencanto com a vida rural. Esse conflito de ideias foi o pano de fundo que mais tarde abarcaria outros temas, como escravismo, e que culminaria, para enfraquecimento da Nação, na conhecida Guerra Civil Americana.

Ellen White se mostrou atenta à urbanização desordenada e decorrente aumento da miséria que tal fenômeno trouxe consigo. Ciente da prejudicialidade do estilo de vida urbano de seus dias, ela escreveu no periódico The Youth‟s Instructor, de 10 de setembro de 1884: “Os que se aglomeram em cidades e vilas estão cometendo um grave erro”. O tema ainda continuaria por muito tempo como uma de suas preocupações, e quase vinte anos mais tarde, no Manuscrito 133, de 1902, diante da miséria urbana que continuava crescente, ela aconselhou: “Os pais podem adquirir pequenas propriedades no campo, com terras para cultivo. [...] Nesses lugares, os filhos não estarão rodeados das corruptoras influências da vida da cidade. Deus ajudará o Seu povo a encontrar lares como estes fora das cidades”148.