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CAPÍTULO I – ELLEN G WHITE EM CONTEXTO

2.3 Ambiente Social

2.3.10 As desigualdades sociais

Nenhum outro fenômeno negativo era tão evidente no contexto sociocultural norte- americano da época de Ellen White quanto a crescente desigualdade social, marcada pelo distanciamento abismal cada vez mais evidente entre ricos e pobres. Em todos os lugares e a todos os momentos se tornava comum a segregação econômica, um novo tipo de prática preconceituosa que se somava aos abusos da segregação racial já havia muito conhecida pelos neoingleses e que contribuía para uma ideia distorcida da liberdade. Relata-se, por exemplo, que até nos trens havia separações entre ricos e pobres, determinadas pelos tipos de acomodações, que tinham no poder aquisitivo o critério de separação273.

O país que até pouco tempo conhecia como personagens das riquezas apenas fazendeiros, agora convivia com novos tipos de personagens do capital, dentre eles os especuladores, comerciantes e industriários, os quais surgiram muito rapidamente no cenário socioeconômico da Nação. Acerca desse fenômeno na cidade de Portland,dizem os historiadores:

Portland estava se convertendo em uma cidade cosmopolita, com todas as bênçãos e maldições que acompanha o crescimento urbano. Grandes fortunas floresciam nas mãos de alguns comerciantes, construtores de barcos e capitães de grandes navios; estes eram os novos ricos. Tradicionalmente, os ricos do Estado do Maine e do restante dos Estados Unidos haviam sido donos de grandes fazendas; quem tinha mais terra tinha mais poder. Porém, em Portland começava a aparecer uma nova classe de rico, que já não dependia de terra, mas de comércio.274

272 WHITE, Ellen G. Orientação da Criança. Tradução de Renato Bivar. 8. ed. Tatuí-SP: Casa Publicadora

Brasileira, 1996. 627 p.

273 BUTLER II, Randall R. Viajando En Tren, 1869-1890. In: LAND, Gary y Otros. El Mundo de Elena G. de

White. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 75, informa: “O poder aquisitivo, como sempre, determinava a localização a bordo dos vagões de passageiros. Os viajantes maisopulentos encontravam grandes comodidades a bordo dos camarotes ou vagões para dormir, enquanto os menos abastados se dirigiam aos vagões comuns para imigrantes sem acomodações.” (tradução própria)

274 SEPÚLVEDA, Ciro. Elena G. de White: Lo Que No Se Contó. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación

Esses novos ricos foram capitalizando suas posses materiais com o processo de industrialização no qual tomaram parte, tornando-se personagens sociais milionários, ao mesmo tempo em que os pobres foram sendo vitimados pela miséria provocada pela falta de emprego e aumento progressivo do custo de vida nas cidades. A grande massa populacional, que antes ganhava a vida em serviços braçais nas fazendas do Interior, foi se tornando vítima do excesso de mão de obra nas cidades para onde havia se mudado em busca de emprego, e onde não tinha com que sobreviver sem o trabalho nas indústrias. Essas prioritariamente empregavam nas funções mais intelectuais os brancos, nacionais e que tivessem preparo educacional mínimo oferecido pelas chamadas escolas secundárias275, enquanto alocavam nas funções braçais os brancos e estrangeiros, que aceitavam o trabalho pesado a baixos preços, em razão de sua condição de imigrantes. Acerca dessa realidade, relatam os historiadores:

Nenhum problema causava mais preocupação do que cada vez mais evidente divisão da Nação entre ricos e pobres. Na metade do século, 80% dos americanos viviam no limite da subsistência, enquanto que os 20% restantes controlavam quase toda a riqueza do País. Os membros de uma reduzida, porém definida minoria, que fazia mais dinheiro em um só dia do que o ganhava um trabalhador comum em um ano, competiam para superar-se uns aos outros na ostentação de suas riquezas, almoçando no restaurante Delmonico ou fumando cigarrilhas enrolados em bilhetes.276

O abuso do dinheiro por parte de poucos ao custo da miséria dos muitos277 chegava ao ponto de dar lugar a abusos cujos absurdos são contados em inúmeros relatos da época. Conta-se, por exemplo, acerca de um milionário que celebrou o aniversário de seu cachorro de estimação realizando um caro almoço e presenteando o animal com um “colar de diamantes avaliado em 15.000 dólares”278, ou ainda outro que guardava centenas de canários

275 DOUGLASS, Herbert. Mensageira do Senhor. Tradução de José Barbosa da Silva. 3. ed. Tatuí-SP: Casa

Publicadora Brasileira, 2003, p. 45.

276 SCHWANTES, Carlos A. El Surgimiento de Una Norteamérica Urbana e Industrial. In: LAND, Gary y

Otros. El Mundo de Elena G. de White. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 99, com tradução própria.

277 SEPÚLVEDA, op. cit., p. 87-88, retrata a condição: “Enquanto alguns poucos, como John Jacob Astor e

Stephen Whitney, conseguiam acumular fortunas incríveis de milhões de dólares durante esta época, milhares e milhares de norte-americanos viviam na pobreza, apenas sobrevivendo. Uma minoria, representada por donos de fábricas, comerciantes e banqueiros, começou a armazenar fortunas. Porém, enquanto essa minoria incrementava seu capital de forma surpreendente, milhares e milhares, como Ellen e Tiag,o tinham de viver sem nada.” (tradução própria)

278 SCHWANTES, Carlos A. El Surgimiento de Una Norteamérica Urbana e Industrial. In: LAND, Gary y

Otros. El Mundo de Elena G. de White. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 100, com tradução própria.

em gaiolas de ouro puro279. Enquanto isso, no outro vértice social, as classes mais baixas padeciam sem condições mínimas de existência humanamente digna. Criticando o fato de que a exploração se dava de forma generalizada em todos os níveis e setores da sociedade. Um depoimento publicado por um colunista em 1840 protesta e dá uma ideia da situação:

O homem que os emprega [pobres], e para quem estão trabalhando assiduamente, como tanto outros escravos, é um dos milionários de nossa cidade, alguém que se deleita no luxo; ou é um membro do corpo legislativo, alguém que promulga leis que enchem ainda mais os seus bolsos; ou é um membro do Congresso, alguém que luta por uma tarifa impositiva mais elevada para o pobre, em benefício do rico; ou é quem derrama lágrimas de crocodilo sobre a deplorável condição do pobre operário enquanto reduz seu salário cerca de 25%, se dedica a construir miniaturas e pede que lhe sirvam do melhor champanhe. E este homem seria também prazerosamente aceito como cristão e republicano. Grita por liberdade, luta pela igualdade e está horrorizado ante o proprietário de uma plantação do Sul, que tem escravos.280

E para agravar tal situação, muitas vozes nada bem intencionadas, no objetivo de manter o desnível social predominante num padrão de acomodação social que lhes garantisse a manutenção do seu status, começaram a alardear o discurso do merecimento religioso, ainda muito ouvido nos dias de hoje. Argumentavam que as condições sociais de abastança ou de miséria do indivíduo eram respectivamente resultado das bênçãos ou dos castigos divinos, em resposta ao merecimento religioso de quem os recebia. A realidade foi descrita da seguinte forma pelo historiador:

Na opinião dos senhores que controlavam as riquezas da Nova Inglaterra, os pobres eram pobres por suas próprias faltas: irresponsabilidade, preguiça, delinquência, etc. Eles viviam convencidos de que Deus havia abençoado aos ricos com muito dinheiro porque eram leais a Deus: honestos, pontuais, econômicos, trabalhadores, etc.; por isso tinham riquezas.281

O século foi seguindo e as cidades crescendo, e na mesma proporção foi aumentando o nível de exploração já mencionado. E o que se via era, de um lado, a insuportável miséria dos pobres, e de outro, a declarada esnobação dos ricos, sendo ambos os lados intermediados

279 SEPÚLVEDA, Ciro. Elena G. de White: Lo Que No Se Contó. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación

Casa Editora Sudamericana, 1998, p. 128.

280 LAND, Gary. La Sociedad y Las Ideas. In: LAND, Gary y Otros. El Mundo de Elena G. de White. 1. ed.

Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 246, com tradução própria.

pelas articulações políticas da invejosa classe média que surgia à época. E como toda miséria se faz acompanhar de violência, a situação retratada logo abriu caminho para a explosão da violência social em suas mais diversas formas. E a situação dos miseráveis, que até então parecia não afetar os abastados, logo passou a inquietá-los em razão de verem-se eles intimidados pelos rumores de conflitos, inclusive armados, cujas ameaças passaram a fazer parte do cotidiano das cidades:

A desproporcionada distribuição da riqueza e a violência que aguçava as relações trabalhador-empresário da época faziam muitos temerem „que os trabalhadores norte-americanos não permanecessem para sempre em pocilgas e padecendo necessidades, enquanto um punhado de homens se assenhorava dos benefícios que pertenciam com todo o direito a toda a comunidade como produto de seu trabalho‟.282

A intensificação desses chamados conflitos de classes fez com que empresários buscassem agrupar seus empreendimentos. A preocupação era manter a garantia do poder de controle do mercado de mãodeobra, mas de outro lado os operários buscaram nas entidades sindicais o recurso que pensavam poder lhes garantir melhores condições de trabalho, já que os acordos, antes comuns entre empregadores e operários, não tinham mais credibilidade. Acerca desse período, relata-se:

Outro fator que polarizava as cidades eram os conflitos de classe – ricos ilustres sendo invejados pelos que trabalhavam nas fábricas, constituídos em sua maioria de imigrantes estereotipados com seu jeito não convencional e isolado. Pela primeira vez, a América do Norte ouvia o termo „operariado sindicalizado‟.283

Não demorou muito, porém, e percebeu-se que os sindicatos apenas endureceram ainda mais o conflito. A polarização dos interesses e das forças produtivas complicou ainda mais a situação. Daí por diante, um misto de inveja e de revolta fez com que esses trabalhadores braçais reagissem duramente à situação crítica a que eram submetidos nas indústrias e nos serviços a elas conexos. Nem mesmo as negociações e acordos, que muitas vezes haviam sido feitos no nível sindical, eram bastantes para evitar a violência física que

282 SCHWANTES, Carlos A. El Surgimiento de Una Norteamérica Urbana e Industrial. In: LAND, Gary y

Otros. El Mundo de Elena G. de White. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 100, com tradução própria.

283 DOUGLASS, Herbert. Mensageira do Senhor. Tradução de José Barbosa da Silva. 3. ed. Tatuí-SP: Casa

explodia nas relações de trabalho, âmbito no qual a opressão era mais evidente à época. Noticia-se que ao final do século XIX esse tipo de violência havia se tornado comum:

Durante esse tempo, os Estados Unidos tiveram as relações trabalhador- empresário mais sangrentas que as de qualquer outra nação industrializada. As principais explosões de violência se deram durante a grande greve dos ferroviários, em 1877 (a primeira parada nacional), a revolta de Hay-market, de 1886, a greve de Homestead, de 1892, e a greve de Pullman, em 1894. Na década de 1890, os acampamentos mineiros das Montanhas Rochosas – especialmente os localizados na região de Coeur d‟Alene, ao norte de Idaho – permaneciam em um estado quase permanente de agitação, interrompido por explosões de dinamites, pancadas e disparos.284

Vivendo num ambiente de tamanha conflitividade, Ellen White sentiu de perto a realidade que a cercava. Era lúcida e atenta não somente quanto aos efeitos, mas sobretudo quanto às causas de tais ocorrências, vendo como principal causa do problema das desigualdades humanas o egoísmo e a ganância, que por sua vez revelavam um triste conflito entre os equívocos da liberdade de exploração e a liberdade de reação violenta, ambas alheias à liberdade de fato cristã. Um de seus biógrafos pontua a preocupação da autora quanto aos mais fragilizados nesse jogo:

Desde 1863, Ellen havia começado a falar publicamente acerca da necessidade de se trabalhar em favor dos pobres. Em repetidas reuniões, ela havia insistido no fato de que a Igreja Adventista não estava fazendo o suficiente pelos homens, mulheres e crianças que viviam nas grandes cidades. A condição das cidades e o que a Igreja Adventista não fazia nelas persistia na mente e no pensar de Ellen.285

Vendo a cada dia o agravamento da miséria, marcada por extrema pobreza de um lado e extrema insensibilidade e indiferença do outro, e sentindo ser seu dever cristão protestar contra a passividade frente a tal nível de degradação humana, Ellen White registrou em suas obras protestos veementes contra as desigualdades sociais, cujas causas e efeitos entendia serem contrárias à proposta cristã de uma vida de amor e serviço ao próximo:

284 SCHWANTES, Carlos A. El Surgimiento de Una Norteamérica Urbana e Industrial. In: LAND, Gary y

Otros. El Mundo de Elena G. de White. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 102-103, com tradução própria.

285 SEPÚLVEDA, Ciro. Elena G. de White: Lo Que No Se Contó. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación

A obsessão intensa do ganho, o amor da ostentação, do luxo e da extravagância – são todas forças que desviam a maioria dos homens dos verdadeiros propósitos da vida, e abrem a porta para uma infinidade de males. Muitos, obcecados em sua busca de riquezas terrenas, tornam-se insensíveis aos reclamos divinos e às necessidades do próximo. Consideram a sua riqueza um meio de glorificarem-se. Acrescentam casa a casa, um terreno a outro; entulham de objetos de luxo a residência, enquanto a seu redor seres humanos jazem na miséria e no crime, em doença e morte.286

Inúmeros outros registros compõem as manifestações da autora quanto ao tema, sendo possível observá-las praticamente em todas as suas obras. O teor de seus conselhos no tocante às desigualdades sociais é nitidamente bíblico e equilibrado, e ao mesmo tempo destituído dos extremos da utopia e do comodismo. Em todas as argumentações, demonstra sua postura clara e firme contra a filosofia e a prática de exploração e dominação humana de qualquer espécie, cuja anomalia muito ocorria em sua época, e que ainda se estende até os dias atuais. Para ela, a dominação e a exploração evidenciavam desequilíbrios na compreensão e na prática da liberdade cristã, que somente deveria ser exercida em respeito à dignidade do outro.