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CAPÍTULO I – ELLEN G WHITE EM CONTEXTO

2.3 Ambiente Social

2.3.6 As diversões degradantes

Com as transformações sociais do século XIX, principalmente aquelas diretamente decorrentes do processo de industrialização, os costumes e as preferências do povo norte- americano foram diretamente afetados. Uma das mudanças rápidas ocorreu no campo do lazer, que passou da busca por recreações em família para a busca por diversões individualistas, cuja oferta no decorrer do século se tornou crescente e complexa. As causas de tal mudança de hábito são inúmeras, e alguns historiadores apontam aquelas que são as mais evidentes:

As razões da crescente demanda por diversão pública são fáceis de reconhecer. Aquilo era, antes de qualquer coisa, o resultado da grande concentração de pessoas nas cidades. Nas sociedades do tipo rural, os indivíduos dependiam de si mesmos e seus vizinhos para recrear-se. Seus passatempos favoritos, como a caça, a pesca, o tiro ao alvo e as corridas de cavalos estavam diretamente relacionados com as atividades da vida diária. As reuniões da comunidade para debulhar milho, construir casas e celeiros, fazer festas ao ar livre, eram uma boa oportunidade para escutar música, dançar, beber e conversar. A diversão rural estava fortemente arraigada no modelo de trabalho e de sociedade agrícola de onde havia surgido.190

Agora, porém, o modelo de sociedade havia mudado, e com ele todo o estilo de vida, o que incluía as opções de diversão. Os tipos de divertimentos da América rural não cabiam mais nas propostas de ocupação do tempo livre, conforme oferecidas nas cidades. A diferença, a princípio, não estava no divertimento em si, mas na forma como era praticado. Com o desenrolar do século, porém, novos tipos de diversões foram surgindo para fascínio das massas, que passaram a achar normal certo grau de violência e sensualidade. Diz-se que:

As pessoas da cidade se dividiam [...] empregavam seu tempo livre de diversas maneiras que desagradavam aos norte-americanos rurais: além do beisebol e do boxe público, muitos frequentavam teatros, salas de teatro de variedades, salões de jogos de baralho, bilhares e cantinas. A América do Norte rural tinha seus vícios; porém nenhum deles parecia tão ofensivo como os da metrópole.191

190 MCARTHUR, Benjamin. Divirtiendo a Las Masas. In: LAND, Gary y Otros. El Mundo de Elena G. de

White. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 202, com tradução própria.

191 SCHWANTES, Carlos A. El Surgimiento de Una Norteamérica Urbana e Industrial. In: LAND, Gary y

Otros. El Mundo de Elena G. de White. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 95, com tradução própria.

Além disso, os objetivos para se praticarem diversões agora eram outros. Antes do século XIX, os divertimentos esportivos e teatrais eram realizados com a finalidade de complementar o lazer da família, sendo atividades ocasionais, praticadas sempre em família, e sem nenhum acompanhamento de vícios. Durante o século industrial, e com mais intensidade no período pós Guerra Civil, tais divertimentos passaram a ser praticados rotineiramente pelos indivíduos com objetivos egoístas, ora de prazer, ora de fuga da pressão causada pela miséria urbana. Os ditos divertimentos eram sempre praticados de forma isolada da família, regado aos vícios do álcool, fumo, ópio e prostituição sexual. Essa nova dimensão de prazer egoísta que as cidades ofereciam se tornara um estilo de vida que afetava todas as classes sociais de Norte a Sul do País192, embora com graus de intensidade distintos de acordo com o lugar e classe social.

Tais ocupações eram buscadas diuturnamente, principalmente nos locais considerados mais imorais na época, como as inúmeras tabernas, cantinas e casas de bailes, as quais ofereciam seus atrativos ao preço do aumento da miséria dos que já pouco ganhavam para sobreviver. Falando especificamente das cantinas, os historiadores registram:

As cantinas suscitavam particularmente as críticas contra a cidade [...]. Nas cidades, o número de cantinas aumentou notavelmente. Em muitas localidades, as cantinas excediam ao número de igrejas. A cantina servia de clube social para o homem pobre; no entanto, também era um centro de vícios que frequentemente proporcionava fácil acesso às drogas, aos jogos de apostas e à prostituição, além de bebidas. Mais de uma taberna servia como vínculo entre o crime e o aparato urbano.193

No tocante às chamadas casas de bailes, a realidade não era muito diferente. Embora algumas poucas fossem consideradas respeitáveis por certa parte da população, os historiadores registram que muitas delas chegavam a servir de fachada para os empreendimentos da prostituição e das apostas194. Além disso, noticia-se que esses ambientes eram usados com frequência para abrigar criminosos, muitos dos quais foragidos das autoridades policiais. A maioria dos frequentadores desses lugares era composta demiseráveis

192 MCARTHUR, Benjamin. Divirtiendo a Las Masas. In: LAND, Gary y Otros. El Mundo de Elena G. de

White. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 202.

193 SCHWANTES, Carlos A. El Surgimiento de Una Norteamérica Urbana e Industrial. In: LAND, Gary y

Otros. El Mundo de Elena G. de White. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 95-96, com tradução própria.

desempregados vindos das zonas rurais ou operários das indústrias, os quais viam aumentada sua miséria em razão de gastarem seus poucos recursos nos preços cobrados pelos vícios que ali eram oferecidos.

Como tudo era negócio no mundo urbanizado industrial, com as diversões não seria diferente. Valia qualquer coisa para garantir os lucros dos capitalistas que se preocupavam em especializar o ramo. Surgiram nesse tempo os circuitos profissionais de esportes, que no final do século haviam se tornado a obsessão nacional que até hoje ainda se conhece195. Esportes como beisebol, futebol americano, boxe e outros se tornaram a grande atração das escolas e do meio cultural urbano até o surgimento de outros esportes considerados participativos por parte da população, tais como ciclismo, corridas de cavalos, golfe, tiro ao alvo, tênis e patinação sobre gelo196. Não bastando assistir, a massa urbana era incentivada a participar. As pessoas queriam agora ocupar seu tempo livre praticando, elas mesmas, alguma atividade esportiva, não importando o que isso lhes custasse. Era o “florescimento dos esportes participativos na última metade do século XIX”197.

Nesse ambiente, o mercado encontraria a oportunidade ideal para suas pretensões de lucro. Oferecia produtos antes já conhecidos, a exemplo da bicicleta, a qual passou a custar grande soma em dinheiro por ter se tornado objeto indiscutível do desejo de status e inclusão social no modismo do ciclismo, esporte muito apreciado na última década do século XIX. Conforme se registra desse exemplo, “a bicicleta se converteu em objeto da poesia, da ficção e o canto, e a imprensa popular publicava artigos escritos por médicos que defendiam o ciclismo como um antídoto para o estilo de vida sedentário”198. Os capitalistas de plantão souberam aproveitar cada uma das inúmeras febres de consumo do desejo individualista norte-americano dessa época, não lhes importando se o preço cobrado era a miséria das massas.

O teatro, a exemplo do esporte, também se profissionalizou199. Nesse meio, a prostituição, o alcoolismo, o fumo, o adultério e todo tipo de imoralidade encontravam

195 MCARTHUR, Benjamin. Divirtiendo a Las Masas. In: LAND, Gary y Otros. El Mundo de Elena G. de

White. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 209, pontua: “Junto com o teatro e o circo, os norte-americanos desenvolveram o gosto pelos esportes. Obviamente, certos esportes eram conhecidos desde havia muito; porém, ao começar a segunda metade do século, os Estados Unidos passaram por uma revolução esportiva que chegou a se converter na obsessão nacional que hoje conhecemos”. (tradução própria)

196 Ibid., p. 212.

197 Ibid., p. 212, com tradução própria. 198 Ibid., p. 213, com tradução própria. 199 Ibid., p. 202-203.

lugar200. Enquanto alguns não faziam diferença entre competição, encenação e vida real, outros protestavam contra tal realidade, declarando ser ela nada mais do que um tipo de libertinagem moderna. Mas se diz que tais protestos, em seu início vindos da maioria, não continuaram por muito tempo. Registra-se que não demorou muito e a resistência dos conservadores havia desaparecido quase por completo quanto ao teatro em sua concepção moderna201.

Diante desse quadro, de um lado estavam aqueles que se mantinham longe de tais tipos de diversões, por motivos religiosos, e de outro, estavam aqueles que os praticavam sem o menor peso de consciência. Em meio a ambos, havia aqueles que mantinham ao mesmo tempo sua vida religiosa e insistiam na prática das ditas diversões, muitas das quais condenadas pela própria denominação religiosa à qual estava ligado. Para os mais atentos, já havia ficado claro que o entretenimento oferecido nada mais era que o resultado de uma fórmula que combinava a ambição comercial como motivo, o abandono de valores como método, e a degradação humana como resultado. Diante de tal quadro, “a resposta predominante ante a maioria das diversões foi o repúdio”202.

No final do século, ao protesto veemente dos religiosos, motivados pela notória imoralidade dos entretenimentos, somou-se o protesto da classe média e empresária emergente, esta última motivada pela pretensão de se evitar o que se entendia ser prejudicial ao trabalho e à produção203. Mas o estrago já estava feito na cultura. Os tipos de diversões urbanas pagas, que contrariavam os princípios bíblicos, haviam se tornado parte do estilo de vida norte-americano. Essa, segundo os historiadores, era uma preocupação de Ellen White: “Uma das mudanças que mais preocupavam Ellen White e a muitos outros era a importância que estavam adquirindo as diversões pagas dentro do estilo de vida norte-americano”204.Não somente por serem pagas, mas sobretudo por serem degradantes. O benéfico se confundia com o prejudicial, e a diferença esdrúxula entre os sentidos antagônicos dos conceitos de recreação e de diversão já não era mais percebida socialmente.

200 MCARTHUR, Benjamin. Divirtiendo a Las Masas. In: LAND, Gary y Otros. El Mundo de Elena G. de

White. 1. ed. Flórida (Buenos Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995, p. 205.

201 Ibid., p. 205, registra que “à medida que a década de 1800 chegava a seu término, o legado puritano hostil ao

teatro foi desaparecendo. Com os cristãos conservadores postos de lado, a maioria dos norte-americanos havia se desprendido de seus preconceitos e havia aceitado os espetáculos teatrais”.(tradução própria)

202 Ibid., p. 215, com tradução própria. 203 Ibid., p. 215-216.

A sensibilidade da autora quanto ao assunto a fez abordá-lo de forma clara em suas obras. Condenou abertamente alguns tipos e formas de diversões de sua época, cuja prática nos moldes oferecidos contrariava o princípio cristão da recreação saudável e edificante. Por isso, ela protestou contra o “ciclismo e degradante ambiente dos salões de bilhar, de boliche, de baile e das cantinas”205. Ela via na prática dessas atividades a quebra expressa dos princípios bíblicos do equilíbrio, do aproveitamento do tempo e da saúde integral. Uma de suas declarações demonstra seu protesto contra essas atividades que considerava como “enervantes”:

Os esportes enervantes – o teatro, as corridas de cavalos, os jogos de azar, as bebidas e as orgias – despertam ao máximo todas as paixões. A juventude é levada de roldão pela onda popular. Os que se deixam dominar pelas diversões abrem a porta para um dilúvio de tentações. Dedicam-se a divertimentos sociais e à irrefletida hilaridade. Passam de uma a outra forma de dissipação, até perderem tanto o desejo como a capacidade de viver de maneira útil. Esfriam as aspirações religiosas; debilita-se a vida espiritual. As mais nobres faculdades da alma, numa palavra, tudo quanto liga o homem ao mundo espiritual, é envilecido.206

Se não bastasse tal preocupação, a realidade revelava uma condição social ainda mais complexa em termos de imoralidade, chamando a atenção para o fato de que a sociedade estava se degradando socialmente também em outros aspectos, e não apenas no âmbito das diversões.