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A verdade como ato de poder e as verdades possíveis

No âmbito de um processo para julgamento de um homicida vigoram os princípios comuns a todo processo criminal. Entre eles está o chamado princípio da

verdade real. Real para se contrapor à verdade formal, que se relaciona com os efeitos de certos atos processuais, que, por ficção, implicam em determinada verdade. Assim, a falta de contestação de uma ação civil significa confissão daquilo que foi afirmado na petição inicial, que passa a ser a verdade. O processo penal não opera com tal sistemática, uma vez que lida com bens menos disponíveis que os do direito civil, como a liberdade e, por vezes, a própria vida. Busca então o processo criminal a verdade real, autêntica, independentemente dos atos praticados ou não praticados nos limites do processo. É a verdade fática, em oposição à verdade legal. A verdade do conteúdo, da essência, em contraste com a verdade das formas. Como resume TOURINHO FILHO,

A natureza pública do interesse repressivo exclui limites artificiais que se baseiam em atos ou omissões das partes. A força incontrastável desse interesse consagra a necessidade de um sistema que assegure o império da verdade, mesmo contra a vontade das partes. 158

Mas é possível alcançar essa verdade no bojo de um processo?

O pensador francês Michel Foucault faz interessante análise dessa questão em sua obra A verdade e as formas jurídicas. Alguns aspectos desse trabalho delineiam um quadro que, resumidamente, conduz ao que se segue.

A verdade pretende-se fruto do conhecimento. Esse conhecimento, que não é

necessariamente um conhecimento empírico, é algo inventado pelo homem, na opinião de Nietzsche, que tinha também como inventados o ideal, a poesia, a religião. O conhecimento não tem um direito de descobrir coisas. “Não há nada no conhecimento que o habilite, por um direito qualquer, a conhecer esse mundo”. Ele tampouco é próprio do objeto a ser conhecido. “Não é natural à natureza ser conhecida”, afirma. Esse mundo a conhecer também não tem uma ordem que o conhecimento descobre. Assim, é com um mundo sem ordem “que o conhecimento se relaciona”. “O conhecimento não tem afinidade com o mundo a conhecer”, diz ele, e sim com o sujeito que pretende conhecê-lo. 159

Por outro lado, esse saber não é fruto de um instinto humano, mas, ao contrário, de um confronto de instintos. A fome e a limitação de alimentos disponíveis, por exemplo, leva o homem a descobrir, ou inventar, desde técnicas de produção de mais alimentos, da forma que lhe convém, até o direito de propriedade sobre bens, assim como leis da natureza que fazem os homens desiguais e, portanto, passíveis de uma distribuição de alimentos também desigual. De tal sorte é que o homem inventa o conhecimento que deseja. O estabelecimento desse conhecimento pela autoridade do que se vem a chamar quer de ciência, prudência, sabedoria, ou senso comum, determina as verdades. A verdade, portanto, decorre do sujeito do conhecimento, não de seu objeto.

Sob tal ótica, é muito natural que a busca da verdade seja uma questão de relação de poder, já que só um poder a estabelece, porque é uma posição de poder que determina quem, ou o que, tem aquela autoridade.

Desse modo fica fácil visualizar que o poder estabelece qualquer verdade. Isso é feito em certas instâncias, ou lugares. Existem na sociedade, aponta FOUCAULT,

[...] lugares onde a verdade se forma, onde um certo número de regras de jogo são definidas – regras de jogo a partir das quais vemos nascer certas formas de subjetividade, certos domínios de objeto, certos tipos de saber – e por conseguinte podemos, a partir daí, fazer uma história externa, exterior, da verdade.” 160

Cuidando-se de assunto tratado em um procedimento criminal, considerando que o objeto do conhecimento são fatos ocorridos no passado – e que o passado não existe, é um não ser – resulta compreensível que, mais do que nunca, a verdade será aquilo que for

159 NIETZSCHE, Friedrich, apud FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003.

estabelecido como tal, de acordo com normas procedimentais criadas para esse fim. Essas normas são uma espécie de regras de um jogo. Esse jogo frequentemente é, de fato, o praticado no âmbito do processo penal. Como lembra de novo esse pensador,

As práticas judiciárias – a maneira pela qual [...] se arbitram os danos e as responsabilidades, o modo pelo qual, na história do Ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a maneira como se impôs a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras, todas essas regras [...] me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudadas. 161

O direito processual penal se apresenta, portanto, “como lugar de origem de um determinado número de formas de verdade [...]. 162, existente no centro de uma autêntica história política do conhecimento, já que a essência deste último é explicada e determinada por uma relação de poder. Isso desmente o mito de que a verdade não tem relação com o poder político e que o saber autêntico é aquele que é fruto de nossa recordação dos fatos.

“O poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber”. 163 Isso é

inevitável porquanto entre o sujeito e o objeto do conhecimento o que existe é uma relação de força, de violência. Consequentemente o conhecimento nunca pode ser uma percepção ou um reconhecimento, mas uma violação.

Assim, é possível dizer que há diversos modelos de alcançar a verdade, forjados em práticas processuais de várias épocas e sociedades. A Antiguidade conheceu traços do inquérito – cuja origem etimológica remete a enquete, sugerindo pesquisa empírica -, embora referências encontráveis, por exemplo, na Ilíada, de Homero, apontem o juramento – e não o testemunho de quem viu ou ouviu - como forma de estabelecer a verdade. Na Idade Média a junção do direito germânico com o romano produziu determinado sistema de solucionar conflitos. O conflito só existia porque houve um dano. Ao invés de as partes resolverem sozinhas o conflito, o faziam sob o manto do direito. Este não condenava a guerra, apenas a jurisdicizava, regulamentava. Era possível interromper essa guerra indicando um árbitro e participando de uma prova – épreuve 164, que não tinha relação alguma com o fato em si. Demonstrações do prestígio social de cada um, da

161 Ibidem, p. 11. 162 Ibidem, p. 12. 163 Ibidem, p. 50-51.

capacidade em dizer certas fórmulas, um juramento, um torneio, provações corporais, como as ordálias. Não se considera se existe ou não uma infração e não há sentença. O vencedor da prova é quem está com a razão e esta passa a ser a verdade. A conseqüência pode ser a entrega dos bens e das armas do vencido ao vencedor. O papel do juiz é simplesmente certificar-se da obediência às regras do procedimento. Essas formas de estabelecer a verdade começam uma tendência ao desaparecimento já no curso do séc. XIII, à medida em que se percebe que o litígio judiciário era, afinal, uma forma de fazer circular bens. Então os que têm as armas e a riqueza - o poder enfim - assumem o controle do procedimento judiciário, por ser este uma forma de acumular riquezas.

Surge o Judiciário, um poder exterior às partes, ao qual estas deverão submeter- se. Aparece o procurador, representante do soberano, em nome de um poder lesado por ter havido um crime. É aí que aparece – ou se inventa - a idéia de infração, que não existia - havia somente o dano. A infração é uma ofensa à ordem, ao Estado. Este Estado, além de

vítima, é também o que exige reparação. Esta se concretiza através das multas, possibilitando aquela desejada transferência de riquezas. Ora, se o Estado é vítima,

O rei ou seu representante, o procurador, não podem arriscar suas próprias vidas ou seus próprios bens cada vez que um crime é cometido. Não é em pé de igualdade, como em uma luta entre dois indivíduos, que o acusado e o procurador se defrontam. É preciso encontrar um novo mecanismo que não seja mais o da prova, da luta entre dois adversários, para saber se alguém é culpado ou não. 165

É então que surge, ou ressurge, o inquérito, que traz o conhecimento empírico como forma de alcançar a verdade. Mesmo assim, a verdade que ele procura estabelecer é oriunda de um procedimento que considera relatos de acordo com o grau de riqueza, idade, situação social das testemunhas, as quais não podem ser forçadas a narrar o que viram, senão consultados sobre o que entendem ser a verdade. No século XIX são acrescentados exames: perícias do domínio da psicologia, criminologia, toxicologia etc. Essas formas de buscar uma verdade se relacionam, na sua origem, com formas de controles políticos e sociais, estes últimos em especial coincidindo coincidem com o desenvolvimento da sociedade capitalista e a divisão do trabalho.

Esse inquérito se espraiou como coisa racional e a idéia de prova enquanto provação começou a desaparecer. Mas isso não deve ser visto como constituindo apenas uma forma de avanço da racionalidade. Não foi necessariamente racionalizando os procedimentos judiciários que se chegou ao inquérito. Ele é resultado de uma transformação política, que tornou possível, necessária e conveniente a utilização desse mecanismo de estabelecimento da verdade no procedimento judiciário. O inquérito é, assim, uma determinada maneira do poder se exercer. Arrematando, FOUCAULT assinala que

[...] o inquérito não é absolutamente um conteúdo, mas a forma de saber. [...] a verdadeira junção entre processos econômico-políticos e conflitos de saber poderá ser encontrada nessas formas que são ao mesmo tempo modalidades de exercício de poder e modalidades de aquisição e transmissão do saber. O inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício do poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de autentificar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir. O inquérito é uma forma de saber-poder. 166