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A categoria equilíbrio foi, desde sempre, objeto de apropriação por parte de outra, a de justiça. Compreendida como uma virtude – vale dizer, uma qualidade desejável no homem – a justiça tem sido objeto de abordagens filosóficas que procuram explicar o porque dessa tendência da espécie humana em buscá-la como meta, frequentemente inatingível.

A resposta a essa indagação – a primeira de muitas – certamente pode estar na teorização desenvolvida por Jung a propósito dos arquétipos do inconsciente coletivo. Há, como se viu, imagens primordiais, desvinculadas de qualquer experiência concreta de cada indivíduo, que se repetem universalmente, herdadas de forma impossível de explicar por inteiro – ressalvada a tentação de para isso lançar mão do lamarckismo.

Dentre essas imagens emerge aquela que significa totalidade, um conjunto de que o bem e o mal fazem parte e que alcança o seu momento central e mais importante na situação de equilíbrio completo a que visa, isto significando o atingir a harmonia entre as partes consciente e inconsciente da psique, num processo denominado individuação. Procurando essa totalidade – que se expressa na categoria Deus – essa atitude tem natureza religiosa.

Esse proceder – no rumo de um pretendido equilíbrio - vai encontrar seu padrão em categorias relacionadas com uma certa idéia de igualdade, o que aponta direta e inevitavelmente para a de justiça.

Vale dizer, portanto, que a busca religiosa por essa totalidade produtora de equilíbrio, que se vale da categoria justiça, situa-se no cerne de um instinto do homem, que emerge das profundezas do seu inconsciente, determinado por formas ancestrais e exteriores a qualquer experiência do indivíduo. Essa interface coloca a justiça como: 1) instrumento para o alcance de um sentido de totalidade e de harmonia entre o consciente e o inconsciente; 2) agente da possível concretização do arquétipo Deus; e 3) parte integrante de uma atitude religiosa, tendo, por isso, também uma natureza religiosa.

Como observa KELSEN,

A necessidade de justificação absoluta, contudo, parece ser mais forte que qualquer reflexão racional. Por isso, o homem busca na religião ou na metafísica essa justificação, isto é, a justiça absoluta. Isso significa, todavia, que a justiça deste mundo é deslocada para um outro mundo, transcendental. Ela se torna sua qualidade essencial, e sua concretização se torna a função essencial de uma autoridade sobre-humana, uma divindade, cujas características e funções são, por sua natureza, inacessíveis à cognição humana. O homem deve acreditar na

existência de Deus, na existência de uma justiça absoluta, mas é incapaz de compreendê-la, quer dizer, de defini-la abstratamente. 49

Para outros, como Del Vecchio, são justamente essa intangibilidade da justiça e seu relativismo os seus principais problemas. Como anota MONTORO, citando esse autor, a falta de compreensão da diferença entre a essência humana e sua existência histórica levou a uma abstração que, por sua vez, conduziu ao surgimento de escolas, como o historicismo, criticada por “desconhecer o critério absoluto de justiça, que decorre da natureza humana.” 50

Mas KELSEN também compactua com a impossibilidade de alcançar um sentido absoluto e objetivo de justiça e aponta:

Não há e não pode haver um critério objetivo de justiça devido ao seguinte: afirmar que algo é justo ou injusto é um julgamento de valor em referência a um fim último e estes julgamentos de valor são por natureza de caráter subjetivo, porque baseados em elementos emocionais de nossa mente, em nossos sentimentos e desejos. Eles não podem ser verificados pelos fatos, como podem as afirmações sobre a realidade. Os julgamentos dos valores últimos são sobretudo atos de preferência; eles indicam o que é “melhor” e não o que é “bom”; eles implicam uma escolha entre dois valores conflitantes, como por exemplo a escolha entre liberdade e segurança. 51

Mas no que consiste essa categoria?

Diz a Bíblia cristã, no Livro da Sabedoria: “a sabedoria ensina a temperança, a prudência, a justiça e a fortaleza”. Nessa concepção está a justiça entre as chamadas virtudes cardeais. Virtude é “disposição firme e constante para a prática do bem”, segundo

o Médio Dicionário Aurélio 52. Aí estão o bem como oposto de mal e o mal como

pressuposto do bem, que seria conceito vazio sem o seu oponente. Fazer o bem significa não só evitar o mal como também praticar o contrário dele. Sem o mal, não haveria como identificar o bem. Aí vem a idéia de totalidade, em que bem e mal têm seus espaços, de tal sorte que o bem buscado pela virtude da justiça pode ser compreendido como o estado desejável que se estabelece após o re-equilíbrio de uma situação antes perturbada pelo mal.

49 KELSEN, Hans. O que é justiça?. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 11.

50 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 138.

51 Op. cit., p. 292-293.

52 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Médio dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 1755.

Mas “as considerações sobre a prática da Justiça são apenas uma espécie das considerações sobre a prática do bem” 53 (Frankena in Brandt, p. 4-5, apud Bobbio etc., p. 661). Veja-se, por exemplo, que “nem todas as ações moralmente boas – como são, por exemplo, os atos de benevolência, os atos de piedade, o pagar o mal com o bem – podem ser apropriadamente descritas como justas. Nem todas as ações moralmente más são injustas.” (ibidem)

Cuida-se a justiça de uma categoria que, na opinião de Bobbio, Matteucci e Pasquino, não é descritiva e sim normativa. Por isso, advertem, deveria ser utilizada na forma adjetiva, apenas. Assim, aJustiça não é uma coisa e muito menos uma coisa visível, mesmo em sentido platônico. Deveríamos evitar o substantivo e usar o adjetivo, para sermos mais claros. “X é justo” é mais semelhante a “X tem razão” do que a “X é igualitário”.

Não é preciso ir muito longe para se perceber a fluidez do conceito e a extrema dificuldade de sua apreensão por qualquer abordagem que pretenda tomá-lo na sua acepção subjetiva, que é o que interessa a esse trabalho (na acepção objetiva ela é identificada como ordem social ou mesmo como algum órgão do Poder Judiciário).

Não deixa de ser interessante, por outro lado, a análise de Hume, que parece ver na angústia dos analistas apenas o resultado de uma forma de escassez material, ao postular que os problemas relacionados à apreensão do conceito de justiça somente se colocam em razão da falta de bens para satisfazer a todos os homens, estes interessados principalmente em si próprios. Pare esse autor, lembrado por Oppenheim 54,

É apenas no egoísmo e na limitada generosidade dos homens – juntamente com os escassos recursos que a natureza colocou à disposição pra suas necessidades – que a Justiça tem suas origens... Aumentai a bondade dos homens ou a abundância da natureza em grau suficiente e tereis tornado inútil a Justiça, substituindo-a com virtudes mais nobres e com bênçãos mais preciosas (A

treatise of human nature, 1739, livro III, II parte, 2ª. Seção).

De Aristóteles se extrai que a justiça é a maior das virtudes e consiste no meio- termo entre dois extremos, que são o ato de praticar a injustiça e sofrer a injustiça. Além disso, é um hábito. Significa dizer que só é justo aquele que costumeiramente o é.

53 FRANKENA in BRANDT, p. 4-5, apud BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO. Dicionário de política. Brasília: Universidade de Brasília, 1983, p. 661.

Dessa mesma fonte pode ter bebido Cícero, em Roma, que nela vê uma tendência do espírito humano a dar a cada qual o que lhe é devido, sem prejuízo do bem comum. Na sua fórmula, “justitia est habitus animi, communi utilitate conservata, suum cuique tribuens dignitatem”.

Também de Roma vem a formulação de Ulpiano, no sentido de que “justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi” 55. Justiça nesse caso é sobretudo vontade.

SALDANHA lembra ainda a tradicional junção das idéias de justiça e verdade, como sendo duas faces da mesma coisa, uma prática, outra teórica. E anota:

Esta idéia, bastante antiga, provém certamente dos “transcendentais” platônicos refeitos pela escolástica, e revela a abrangência e a radicalidade da própria noção de justiça. Radical e irredutível como a verdade (ou antes: como a noção clássica de verdade), a justiça seria impartivelmente uma [...] 56.

O objetivo dessa ação supostamente justa – voluntária ou habitual – é concretizar um valor.

Valor é a medida de um objeto de escolha, ou de preferência. Inicialmente o termo foi empregado na sua acepção objetiva, querendo referir-se a algo que corresponde a outra coisa. Assim, o “valor de determinado trabalho”, o “valor de um cientista” etc. Mesmo assim esteve presente a idéia de que valor é uma categoria que depende do juízo de alguém, ou seja, representa uma preferência. A anotação de Hobbes, no Leviatã, é significativa:

O valor de um homem, como o de todas as outras coisas, é seu preço, o que poderia ser pago pelo uso de suas faculdades: portanto, não é absoluto, mas depende da necessidade e do juízo de outro. O preço de um hábil comandante militar é alto em tempo de guerra, presente ou iminente, mas não em tempos de paz. 57

Mas foi num momento posterior, fruto de uma abordagem fundada no kantismo, que a noção de valor ganhou a tonalidade de categoria imaterial, passando a frequentemente ser apropriada pela filosofia. Como lembra ABBAGNANO,

55 MONTORO, op. cit., p. 142.

56 verbete in Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977, 47 v., p. 306. 57 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 989..

A extensão do termo para indicar não só o bem, mas também o verdadeiro e o belo, se deve aos Kantianos, principalmente à corrente psicologista do Kantismo. Polemizando contra o próprio Kant, Beneke afirmava que a moralidade não pode determinar uma lei universal da conduta, mas pode e deve determinar a ordem dos valores que devem ser preferidos nas escolhas individuais; [...] 58

Nietzsche deu impulso à corrente que sustenta o relativismo dos valores, ao postular, não sem causar escândalo, a inversão dos valores tradicionais, em especial os da moral cristã, com o objetivo de preparar novos caminhos, com fundamento em novos valores, chamados vitais, nascidos da aceitação dionisíaca da vida. 59

Tal relativismo surge no bojo do historicismo, que atribui a determinação dos valores pelos fatos encadeados e formadores da história. Nessa linha de pensamento, DILTHEY frisa que “aprópria história é a força que produz a determinação de valor, idéias e metas com base nos quais se determina o significado de homens e acontecimentos”. 60

Com base nessa afirmação, ABBAGNANO ressalta que “portanto, os valores e as normas nascem e morrem na história e não subsistem fora dela nem acima de seu curso.” 61

No auge dessa vertente do pensamento relativista encontra-se o materialismo histórico, categoria elaborada principalmente por Marx e Engels, que elimina todo e qualquer vestígio de componente absoluto, ou metafísico no processo de desenvolvimento dos valores. Resumindo essa postulação do marxismo, PISTONE esclarece: “nesta perspectiva, a individualidade das instituições e dos valores políticos surgidos nas diversas épocas e situações históricas parece determinada pelas várias fases da evolução do modo de produção e com elas relacionada”. 62

58 Ibidem, p. 990.

59 NIETZSCHE, Friedrich, in Genealogia da moral, I, par. 10, apud ABBAGNANO, op. cit., p. 991. 60 ABBAGNANO, op. cit., p. 992.

61 Ibidem.

62 PISTONE, Sérgio. Verbete in Dicionário de política. Org. BOBBIO; MATEUCCI; PASQUINO. Brasília: Universidade de Brasília, 1983, p. 584.

CAPÍTULO IV IGUALDADE E JUSTIÇA