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Pode o ato de vingar-se representar uma expressão dessa igualdade?

O verbo latino vindicare, origem do vocábulo em português, aparece com indicação de vários sentidos, a maioria relacionados entre si. Libertar, livrar, punir,

castigar89. Daí verte vindicta, identificada com reconquista, livramento, resgate. Derivam também vindicação e reivindicação. A elas equivale o termo vindícia, significando reclamação. Vindicação, reivindicação e vindícia são tidos por sinônimos e tratados pelo Código Civil brasileiro de 1916 e pelo Código de Processo Civil como “ato de propor ação judicial para reaver propriedade que está injustamente na posse de outrem”. 90

Não deixa de ser interessante este sentido adotado pelo direito positivo, que remete um vocábulo sinônimo à vingança ao juízo estatal e à idéia de retomada de uma posse injusta, deixando talvez transparecer que a vindicação, ou a reivindicação, ou a vindícia constituem meios para repor as coisas em seus devidos lugares e assim produzir uma situação de igualdade e equilíbrio.

Igualmente é encontrável um sentido do termo latino vindicta como representando a reivindicação de liberdade de um escravo. 91 O interessante é que se tratava de verdadeiro ritual, em que a parte reivindicante se apresentava munida de uma

varinha. 92 A presença da varinha é significativa e oferece uma atmosfera mágica à

cerimônia, sugerindo um caráter sacral à vindicta, ao mesmo tempo em que o seu objeto consistia numa tensão entre a escravização e a liberdade, dois bens opostos e equivalentes, sendo o último frequentemente tratado como um dos bens mais caros ao homem, o de maior valor depois da vida, senão às vezes tido mesmo por mais valioso que ela.

Não constitui novidade no universo dos códigos de conduta o status mágico de certas prescrições. Esse fenômeno representa, na verdade e em certa medida, o processo mesmo de iniciação do fenômeno do direito. A ele se referindo, GUERRA FILHO aponta:

Nas primitivas comunidades, [...] as normas que regulam a vida social acham-se condensadas num agregado indiviso, onde é impossível discriminar quais teriam natureza moral, jurídica, religiosa ou de mero trato social. Neste sentido, costuma-se apontar para o caráter religioso de que se revestem as primeiras manifestações jurídicas no seio social, por serem as instituições religiosas aquelas dotadas de maior autoridade, em grupos sociais onde a especialização de

89 ibidem, p. 1066.

90 Comissão de Redação, in Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 77, p. 309. 91 FARIA, Ernesto (org.). Dicionário escolar latino-português, p. 1066. 92 Como em Horácio. Sátiras 2, 7, 76, apud FARIA, Ernesto, op. cit.

funções e divisão do trabalho ainda não ensejou o aparecimento de algo como o Estado. 93

A seguir, o mesmo autor, citando Fustel de Coulanges 94, aponta que

[...] a razão pela qual “os mesmos homens eram, ao mesmo tempo, pontífices e jurisconsultos, resulta do fato de direito e religião se confundirem, formando um todo.” Jurisprudentia est rerum divinarum atque humanorum notitia, rezava uma definição antiga, conservada no corpo legislativo justinianeu. 95

No caso da retomada da posse, referido pelo direito civil e processual civil, segundo se verificou, é expressa a identificação de tal retomada com um ato de justiça, considerando que a posse que é necessário extinguir é injusta. Vindícia significa portanto, aqui pelo menos, realizar justiça.

Da mesma origem latina deriva também o termo em português vindita, próxima do italiano vendetta, sinônimo de vingança. Cuida-se de vocábulo reconhecido pela Enciclopédia Saraiva do Direito 96, que lhe atribui o significado de uma “forma primitiva

para solucionar conflitos nos quais prevalece a vontade particular.”

Do mesmo verbete consta que está colocada entre as formas aceitas pelo direito de resolver conflitos, sendo frisado que a conclusão de uma disputa em termos de força não é desprezada. Interessante é ainda notar que, ao mencionar a solução de conflitos na área penal, a mesma fonte, conquanto sublinhando a busca para eliminar tais manifestações, reconhece na vindita uma “força (ou forma ? 97) de satisfação de justiça”.

Outro ponto de interesse é que a literatura jurídico-penal, de maneira genérica, situa a solução de conflitos por meio da vindita, ou vingança, num momento primitivo da vida humana na terra, algo que vai se tornando obsoleto à medida em que “o progresso” vai se impondo. Em outras palavras, um componente da tensão entre civilização e barbárie.

O que o mundo dito civilizado imagina serem as categorias progresso,

civilização e barbárie é assunto no qual certamente se refletem seus próprios referenciais práticos e teóricos.

93 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria política do direito. Brasília Jurídica, 2000, p. 29. 94 A cidade antiga, 1975, p. 150-151

95 GUERRA FILHO, Willis Santiago. op. cit., p. 29. 96 Enciclopédia Saraiva do Direito, op. cit., p. 309. 97 “força”, no texto original.

Lembre-se, a título de ilustração, o que DUPAS, ao cabo de sua obra O mito do

progresso, conclui:

O progresso, assim como hoje é caracterizado nos discursos hegemônicos de parte dominante das elites, não é muito mais que um mito renovado por um aparato ideológico interessado em nos convencer que a história tem um destino certo – e glorioso - que dependeria mais da omissão embevecida das multidões do que da sua vigorosa ação e da crítica de seus intelectuais. 98

Ora, nada obstante essa relativização de uma categoria que costuma apresentar- se como universalmente válida, parece inegável que, de uma forma ou de outra, a vindita vai sendo abandonada - pela legalidade positivada nos códigos - como agente solucionador de conflitos, na exata medida em que fórmulas substitutivas vão se impondo.