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Júri: história, competência, características

O crime de homicídio, de acordo com a dogmática constitucional e processual brasileira, é julgado pelo tribunal do júri, órgão que, no âmbito da organização judiciária, pertence ao chamado primeiro grau de jurisdição, ou, na expressão corrente, primeira instância.

O júri, com a natureza que tem hoje, é conquista de uma certa nobreza inglesa que, em pleno século XIII, impôs ao soberano conhecido como João sem terra, o direito de ter suas possíveis faltas apreciadas por seus iguais, ao invés de por agentes do próprio rei. Na realidade, foram barões, sem sangue azul, que receberam esse título por terem lutado nas Cruzadas junto com Ricardo coração de leão, irmão do rei João. Com o título receberam propriedades isentas de impostos. A conquista do direito de julgamento pelos pares se deu em meio a outras duas importantes, a sugerir um período de notável evolução político-jurídica: a Magna Carta, limitando os poderes do soberano em relação aos súditos, e os primeiros albores do habeas corpus. Alguns situam sua origem em instituições bem mais antigas: os judices jurati romanos, os dikastas gregos ou os centeni comites germânicos, assim como no Código de Alarico, do século VI, segundo lembra

TOURINHO FILHO 136. A denominação jurado se explica pelo fato de os juízes, desde

esses primórdios, prestarem um juramento antes de julgar o acusado.

Conforme lembrado pelo mesmo autor, não são muitos os países que adotam a instituição do júri com o formato admitido no direito brasileiro: Bélgica, Noruega, Espanha, certos cantões suíços, Austrália, África do Sul, Inglaterra, Estados Unidos, Colômbia, alguns Estados mexicanos. Na França, Itália, Grécia, Áustria, Alemanha, Portugal adota-se o júri do tipo escabinado, que se caracteriza por reunir juízes togados e

leigos.

No Brasil, conta ESPÍNOLA FILHO, foi o tribunal do júri introduzido por uma lei de junho de 1822, tendo atribuição para julgamento dos crimes de liberdade de imprensa. Mais tarde, a Constituição imperial o classificou como ramo do Poder Judiciário, ampliando sua competência, que passou a ser de julgamentos tanto em matéria criminal como em civil. 137.

De modo consentâneo com a sua origem histórica, a Constituição vigente reconhece, entretanto, a instituição do júri entre os direitos individuais (art. 5º, XXXVIII). Significa que o considera, antes que um órgão do Poder Judiciário, um verdadeiro direito do indivíduo. Ser submetido a julgamento por seus pares foi, de fato, na história, uma importante conquista dos súditos, diante do poder absoluto dos soberanos. O direito constitucional brasileiro se mantém fiel a essa fórmula e determina que assim se procederá no caso de julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Aspecto que merece atenção fica por conta da competência originária que a Constituição atribuiu aos tribunais para julgar o presidente da República, ministros, deputados, senadores, magistrados, membros do Ministério Público e dos Tribunais de Contas. Cuidando-se de exceção criada pelo próprio texto constitucional, tem sido aceito que, em se tratando dessas pessoas, mesmo nos crimes dolosos contra a vida, deverão ser julgadas pelo tribunal aí assinalado.

A questão comporta, no entanto, alguma reflexão. É que a competência do tribunal do júri vem estabelecida no bojo dos direitos individuais e, segundo se vem firmando na doutrina, as normas referentes a essa espécie de direitos têm prevalência sobre as demais. Tanto foi esta a intenção do constituinte brasileiro que ele inscreveu no texto da Constituição (art. 60, § 4º, IV) regra expressa no sentido de não poder ser objeto de deliberação proposta de emenda constitucional tendente a abolir os direitos individuais.

Ora, nessa perspectiva, seria razoável que, em meio a normas disciplinadoras do funcionamento do Poder Judiciário, se pudesse validamente excluir um direito individual? Se o texto da Constituição deve merecer uma interpretação lógico-sistemática e não simplesmente positivista, abre-se aí uma brecha para a curiosa discussão acerca da constitucionalidade de um dispositivo da própria Constituição, formalmente nela inserido mas possivelmente em desacordo com os valores maiores que o constituinte claramente proclamou abraçar. Veja-se, a propósito, o que fez ele constar do preâmbulo da Carta, a

137 ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal brasileiro anotado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1965, IV v., p. 482-3.

frisar que o Estado Democrático que então se instituía destinava-se a “assegurar o exercício dos direitos [...] individuais”, e ainda o disposto no art. 1º, III, do texto, elevando a fundamento desse Estado Democrático a dignidade da pessoa humana.

Emblematicamente foi escolhida como atribuição do júri uma espécie de delitos dentre os mais gravemente apenados e relacionados ao bem maior do homem - a vida -, aparentemente se querendo sugerir a necessidade de uma sensibilidade adquirida longe da rotina dos fóruns para lidar com questões de tal envergadura. De fato, os componentes do júri brasileiro são todos leigos, no sentido de que não são juízes profissionais, ou de carreira. Apenas o presidente do júri é um juiz de carreira, que no entanto não vota e cuja função é mais de natureza administrativa e fiscalizadora, salvo a atribuição de aplicar a pena em caso de condenação. Não é o que ocorre com a instituição do escabinado, como se viu. Diversamente também desse, o júri tem competência para decidir sobre a autoria e materialidade do fato, causas excludentes de ilicitude e culpabilidade, circunstâncias de aumento e diminuição da pena e até mesmo sobre a imputabilidade do acusado, ficando somente a dosagem da pena, em caso de condenação, a cargo do juiz presidente.

A competência atribuída ao júri produz certo contraste com princípios processuais que devem ser observados pelos juízes togados. O júri não fica, por exemplo, completamente adstrito às provas dos autos no ato de julgar, podendo considerar fatos que não vieram ao processo, ou simplesmente seguir os ditames de sua consciência. Isso se mostra verdadeiro porquanto, embora possa a instância superior determinar a realização de novo julgamento se o primeiro contrariou as provas, este segundo se torna definitivo, na medida em que um terceiro, pelo mesmo motivo, não será possível. 138

Outro aspecto que dá aos jurados uma elasticidade bem maior que a do juiz togado é o fato de não precisarem motivar seu julgamento. Votando apenas com cédulas que contêm as palavras sim ou não, apreciam as teses da acusação e da defesa de forma que, ao final do questionário, terão delineado o tipo penal da conduta em julgamento, com todas as suas circunstâncias, sem ter tido que, por uma só vez, fundamentar a razão de suas escolhas, o mesmo valendo para o caso de terem decidido pela absolvição. Quer dizer, a ausência total de justificação dos veredictos, que no julgamento proferido por um juiz de carreira, constitui indiscutível causa de nulidade da decisão, no caso do júri, representa uma regular atividade dos jurados.

138 É verdade que sempre haverá a possibilidade de revisão criminal. Mas se trata de medida que só pode ser tomada em favor dos interesses do réu e que, para ter sucesso, requer a existência de uma decisão “contrária à evidência dos autos”, vale dizer, sem apoio algum no acervo probatório.

Essa forma de julgamento, imotivado e, demais disso, secreto, não representa violação alguma à norma constitucional inscrita no art. 93, IX, que enuncia deverem ser públicos todos os julgamentos e fundamentadas as decisões. Por um lado, no tocante à publicidade, porque é o próprio dispositivo que ressalva a possibilidade de que a lei reguladora da matéria, em caso de o exigir o interesse público, limite “a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”. Por outro, porque tanto o sigilo das votações quanto a falta de fundamentação – esta é conseqüência daquele - constituem, antes de mais nada, garantias dos jurados. A propósito leciona MARQUES PORTO que

[...] o sigilo das votações não colide com o julgamento público que a Lei Maior quer para as manifestações do Poder Judiciário (art. 93, IX). Em etapas, e de acordo com o Código de Processo Penal, tem-se assegurada, primeiramente, a incomunicabilidade dos jurados (CPP, art. 458, § 1º). Em seguida, a exteriorização da decisão (“cédulas feitas em papel opaco” – art. 485). Tais cautelas de lei visam a assegurar aos jurados a livre formação de sua convicção e a livre manifestação de suas conclusões, afastando-se quaisquer circunstâncias que possam ser entendidas, pelos julgadores leigos, como fontes de constrangimento. 139

Aliás, como lembra o mesmo autor, do tema se tratou nos trabalhos da Assembléia Constituinte da qual resultou a atual Constituição, tendo aí se cogitado de incluir expressa ressalva em favor do tribunal do júri no que respeita à sessão secreta de julgamento e à falta de fundamentação das decisões, mas disso se tendo enfim abdicado ante a obviedade da mencionada exceção. 140