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A vida no palco

No documento Alcoolismo no feminino (páginas 57-67)

II ENQUADRAMENTO TEÓRICO

2.1 Encenações dionisíacas no feminino

2.1.5 A vida no palco

Há milhares de anos, os gregos estabeleceram os princípios de justiça e liberdade individual que são hoje as bases da democracia. A sua arte, filosofia e ciência tornaram-se fundamentos do pensamento e da cultura ocidentais, pelo que estudar a forma como era encarada a realidade humana sob múltiplas expressões culturais certamente contribuirá para a compreensão da condição humana.

A religião grega, politeísta e antropomórfica, reflectia os sentimentos, os sonhos e as ambições dos humanos. Os deuses, tal como os homens, eram arrebatados por sentimentos de amor e de ódio. O bem e o mal existiam no âmago dos deuses.

Segundo Burkert (1977/1993), anualmente realizavam-se quatro festivais dionisíacos gregos: a festa das Antestérias na região Jónico-ática que está directamente ligada ao saborear do vinho, conjuntamente com a festa das Leneias que a precede; a festa das Agrionias na região dórica e eólica, uma festa da dissolução e da inversão com uma rebelião das mulheres, “loucura” e fantasias canibais. As Dionísias rurais com o sacrifício do bode e uma procissão fálica. Finalmente as Grandes Dionísias que foram introduzidas em Atenas no século VI.

O que é comum a todas é a legitimação para a embriaguez. No entanto, segundo Pereira (1998), não era esta a via para se atingir o êxtase: “Trienalmente em pleno

Inverno, descalças e com vestes ligeiras, mulheres em grupo, subiam às montanhas cobertas de neve e aí ao som da música de flauta e tamboris, efectuavam correrias, danças frenéticas, apanhavam e dilaceravam um animal selvagem e, finalmente comiam-no cru, alcançando assim o êxtase” (p. 12).

Numa sociedade organizada em torno da definição rígida dos papéis sociais que cada um desempenhava, estes ritos permitiam o extravasar das emoções.

A sociedade encontrava-se organizada em estratos sociais, no qual cada um sabia o papel que iria desempenhar:

Os gregos da antiguidade chamavam-se a si próprios “helenos” (todos os que falavam grego, mesmo que não vivessem na Grécia) e davam o nome de Hélade à sua terra. Os que não falavam grego eram chamados “bárbaros” ou “estrangeiros”. As classes da sociedade grega variavam de uma cidade para outra. Atenas contava com três classes: os cidadãos, os escravos e os estrangeiros.

Somente os cidadãos possuíam direitos políticos para participar da democracia. As mulheres, as crianças e os estrangeiros, não faziam parte do grupo dos cidadãos. Não tinham direitos políticos e estavam proibidos de adquirir terras, podendo apenas dedicar-se ao comércio e ao artesanato. Em geral, pagavam impostos para viver em Atenas e estavam obrigados à prestação do serviço militar. Os escravos formavam a grande maioria da população ateniense, pois para cada cidadão havia cerca de dezoito escravos. Os escravos eram considerados propriedades do seu senhor, embora houvesse leis que os protegiam contra excesso de maus-tratos.

A par destas distinções sociais, destacava-se igualmente uma diferença abissal entre os papéis sociais exercidos pelos homens e pelas mulheres. Segundo Cambiano et al. (1991/1994), havia uma distinção logo desde o nascimento entre as meninas e os meninos pois, caso nascesse mais do que uma menina em cada família, esta poderia ser sujeita à “exposição” (a criança exposta podia ser recolhida por outros, que tinham a faculdade de a tratar como livre ou como escrava ou de a utilizar para a prostituição). “Uma mulher estava integrada na cidade não como cidadã mas como filha ou mulher de um cidadão” (p. 81). Para a maior parte das raparigas gregas de condição livre, a passagem à idade adulta era marcada pela etapa decisiva do matrimónio.

Desde o nascimento que as jovens passavam grande parte da sua vida em casa entregues aos cuidados da mãe ou das escravas. Só as mulheres mais pobres eram obrigadas a sair de casa para ir trabalhar nos campos ou como vendedeiras. Em casa, as jovens aprendiam desde muito cedo a fiar e a cozinhar. As festas religiosas da cidade

eram a única oportunidade de saída, dado que os simpósios eram proibidos a mulheres que não fossem cortesãs, bailarinas ou flautistas.

Com o matrimónio, a situação da mulher, mais do que a do homem, sofria uma mudança radical. Tornar-se adulto, deixar de ser “parthenos”, significava converter-se em esposa e mãe potencial de futuro cidadãos, do sexo masculino. Em geral, e ao contrário dos filhos varões, as filhas não permaneciam durante muito tempo em casa do pai, casavam-se cedo, muitas vezes antes dos dezasseis anos e com homens mais velhos, pelo menos uma dezena de anos. A promessa de matrimónio ocorria muito antes da sua celebração e correspondia ao contrato entre dois homens, o pai ou o tutor e o futuro esposo.

Durante muito tempo a distinção entre homens e mulheres condicionou a relação entre ambos, e reflectiu-se igualmente nas diferentes expressões artísticas.

Todas as formas de autocontenção social acarretam as suas tensões peculiares. Mas essa pressão, progressivamente crescente, não se pode suportar perpetuamente; de modo que qualquer sociedade necessita de (re)criar “válvulas de escape” para todos os tipos de tensão. As festas em honra do deus Dioniso são um claro exemplo da boémia e da exaltação, a qual estava ligada à expressão dos impulsos, favorecida certamente pelo álcool. A participação social das mulheres, dos estrangeiros e dos escravos surgia nestes períodos como uma inversão social.

A aproximação à divindade e o assumir de papéis estranhos ao quotidiano, era facilitada pelo uso de máscaras. Nestas celebrações, as máscaras tinham uma função cénica, associada aos elementos do vestuário, e uma função ritual, quando os fiéis se fantasiavam com fins propriamente religiosos (Vernant & Naquet, 1981/1999).

O Universo Dionisíaco é marcado por um conjunto de opostos. Desde logo, a proposta dionisíaca remete para a descoberta da nossa centelha divina, na qual reside o mundo do sonho, da fantasia e da ilusão, que se opõe à ordem e à razão, representada no mito por Penteu.

Em Tebas (Pólis) demarcam-se estatutos sociais sem possibilidade de questionamento, enquanto no Monte Citéron vive-se na eudaimonia “uma felicidade feita de uma aliança com a divindade”, assim designada por Romilly (1970/1997), que, levada ao extremo, é fonte de barbárie, de despedaçamento de corpos e de morte. Se o princípio do prazer habita em Citéron, o princípio da realidade estrutura-se nas

muralhas da Pólis, onde Agave toma contacto com a realidade e consciencializa que cometeu o filicídio.

O masculino e o feminino surgem igualmente como mutáveis, pois desde logo Dioniso foi gerado na coxa do pai, assumindo dessa forma o papel materno de gerar o filho. No decurso do seu crescimento, Dioniso é disfarçado de menina para escapar à ira de Hera.

A oposição entre submissão e poder, representada pelas mulheres que destroem Penteu, ilustre representante dos cidadãos (homens), questiona dessa forma o poder instituído. Na inversão dos poderes propiciada pelo dionisíaco, há o risco de destruição do homem, o risco do materno suplantar o paterno, e o risco da inversão da lei.

Na epifania de Dioniso, o materno assume uma importância fulcral, na medida em que Dioniso se pretende afirmar como um deus olimpiano e assim, afirmar o nome da sua mãe. No término da sua odisseia, Dioniso resgata a mãe do mundo de Hades e leva-a consigo para o Olimpo, juntamente com a sua amada Ariadne. Ser guiado por Dioniso, representa então o retorno ao materno, uma regressão que tem implícito o apaziguamento das tensões, implicando no entanto, um mergulho aos infernos, com todos os males e sofrimentos que daí advém.

Por fim, a vida e a morte marcam igualmente a epifania de Dioniso, pois este ressuscitou duas vezes, uma das quais depois de ter sido destroçado, o que remete para a oscilação entre o sparagamos, a fragmentação do corpo levada ao extremo e a integração da unidade corporal.

No texto mítico, para além do conteúdo manifesto é o conteúdo latente que nos dá as pistas para a “aproximação ao humano”. Em nós, existe Citéron e Tebas, dois mundos, aos quais nos podemos deslocar, sem que aí fiquemos indefinidamente, pois as consequências seriam trágicas. Negar a possibilidade de sonhar, de ilusão, é tão perigoso como o enquistamento nas “muralhas de Tebas”. Nos extremos, reside a arrogância e esta opõem-se à possibilidade de aceder à verdade e ao conhecimento. Vida e morte, integração e dispersão coexistem e conferem à natureza humana a possibilidade de renovação.

O desafio lançado pelo deus do dilaceramento e da ressurreição poderia ser: “conhece o estranho (estrangeiro) que há em ti”. Seria o convite para sair do espaço de uniformidade dos homens a fim de se poder conhecer melhor o próprio. Face ao rigor apolíneo, Dioniso propõe-nos as leis do acaso, do devir e do caos. Um movimento de

exaltação da vida, com tudo o que tem de bom e de mau, perfeito e imperfeito, alegria e dor.

Neste processo de libertação e de êxtase, a decadência surge quando nos opomos ao movimento de autoconhecimento, como Penteu, que se encontra agrilhoado ao mundo das leis e das regras, ou quando esquecemos a nossa condição humana que nos distingue dos deuses, a de sermos mortais, como Agave que no extremo mata com as mãos o próprio filho sem se dar conta.

O universo dionisíaco envolve uma dinâmica entre os opostos: masculino e o feminino, morte e ressurreição, integração e dispersão (fragmentação), animalidade e humanidade, loucura e razão, liberdade e escravidão. São estas as vivências que se escondem sob a máscara apolínea e que são passíveis de se manifestar, quanto mais não seja sob o efeito da embriaguez. No entanto, os homens têm limitações. Pode viver-se um sonho, mas não viver no sonho. Podem representar-se múltiplos papéis no palco da vida, recorrendo a diferentes máscaras, mas não se pode representar eternamente. Nesse caso, “a máscara fica pegada à cara”, e nessa altura afastamo-nos da verdade e deixamos de saber quem somos, desencadeando-se dessa forma o processo de decadência existencial, onde impera a alienação, a mecanização, o agir sem pensamento, podendo colocar a própria vida em causa.

Desde Nietzsche (1869/1977), na obra O nascimento da tragédia, que Dioniso se torna o dionisíaco - um símbolo de um estado mental no seio do qual se manifestam alguns aspectos essenciais, relativos à nossa condição humana como: a tragédia, o dionisíaco, a contradição dos opostos, a que nos referimos anteriormente, a dissolução das fronteiras homem/natureza, e o apolíneo e o dionisíaco enquanto princípios metafísicos.

Nietzsche aponta todo um conjunto de condicionalismos da vida tais como a dor, o sofrimento, a humilhação e o erro, que podem ser superados pelo estado de embriaguez.

O regresso do homem “às fontes originais” da vida passa pela edificação de novos valores, a partir do “nihil” (nada). Dioniso, o deus da “embriaguez”, conduz Zaratustra à exaltação de si mesmo, ignorando os homens fracos e débeis. O sacrilégio está em que o homem pode ser feliz a partir da morte de Deus.

O homem dionisíaco possui, ao invés do homem apolíneo, uma superabundância da vida, uma “embriaguez” lúcida e corajosa. Ele tende, exponencialmente, para uma

visão trágica da vida, quer seja interior ou exterior. Dioniso afasta a ideia da morte ao criar o Super-homem, aquele que promove por transmutação dos valores, levando o homem comum a repensar a vida. Só a vontade de poder, provocada pela embriaguez, pode afastar o homem da neurose e da depressão colectiva, própria da vida contemplativa. Os fundamentos da moral cristã impunham, entre outras categorias, o sofrimento, o sacrifício, a humildade, a humilhação, a escravidão e o suplício, próprios de homens inferiores.

O homem nasce para viver da terra e eis porque o espírito dionisíaco prevalece na arte. Na Origem da tragédia, Nietzsche reconhece duas formas de revelação da arte: a forma apolínea e a forma dionisíaca. A primeira é a harmonia das formas e a segunda é a exaltação do poder pela música, pela embriaguez e pelo entusiasmo (En-Teos, Asmos – que significa – “Deus em Mim”). O Homem é o criador de si mesmo e nele habita um Daimon, de que também fala Sócrates (sec. IV a.C), que se caracteriza pelo espírito da ironia e da maiêutica. Assim, o sublime dá lugar ao trágico, dado que a arte apolínea é estéril, incapaz de produzir paixões exacerbadas. A arte dionisíaca transforma a debilidade humana em força e em vontade de poder.

O trágico surge na existência humana como um destino inevitável, algo que se impõe face aos homens e que se tem que cumprir. Vimos com Penteu, com Agave e noutras personagens da Mitologia Grega, como Medeia, que desenvolvem um conjunto de acções sem consciência das mesmas, como se fossem actores de uma peça da qual desconhecem o guião. Nesse caso, ultrapassa-se do trágico para a decadência, na medida em que o homem se torna um estrangeiro face a si próprio. Ao invés de ocorrer uma caminhada no sentido de se tornar um cidadão com todos os direitos inerentes, torna-se um escravo.

Associado à decadência existencial está o empobrecimento dos mecanismos da consciência individual, como se ocorresse uma perda do contacto com o “ser” e o “ser- no-mundo”.

No que diz respeito ao surgimento de algo que é inerente ao próprio homem e que está fora do seu controlo, Romilly (1970/1997) considera que para que tais dados apareçam como trágicos é preciso que os comportamentos descritos se tornem necessários em nome de circunstâncias que se impõem ao homem. Nesse sentido, pode- se qualificar o alcoolismo como um processo de decadência, na medida em que a dependência impera contra a vontade dos sujeitos, consequência do empobrecimento da consciência de si e da consciência dos outros.

Um dos traços mais notáveis do pensamento grego é, com efeito, a possibilidade de explicar qualquer acontecimento em dois planos ao mesmo tempo e por duas causalidades, que se combinam ou se sobrepõem. Já presente em Homero, esta dupla causalidade existe sempre na tragédia. Assim, por exemplo, a condenação de Agaménon vem de um veredicto divino, mas a sua realização passa por uma série de vontades humanas: Clitemnestra é o agente do assassínio, mas ela age por rancor, por vingança, por crime, por efeito de um ódio totalmente pessoal e, por uma vez, ele terá de responder por isso.

Colocar o problema, a propósito destas questões, da liberdade humana é uma atitude completamente moderna. Para os gregos antigos, as duas causalidades coexistem sem contradição. Como diz Ésquilo, “quando um mortal se apressa para a ruína, os deuses ajudam.” Nada do que acontece, acontece sem a vontade de um deus, mas é necessário também que o homem tome parte e se comprometa nisso: o divino e o humano sobrepõem-se. Penteu também está implicado na sua morte (por recusa de certas tendências naturais ou pela recusa em reconhecer o deus Dioniso).

Há assim uma referência implícita ao lado pulsional que apesar de estar oculto, pode irromper. Para Monjauze (1991), Dioniso, encarna as pulsões mais obscuras, com o objectivo de as integrar na ordem de modo a não mais permanecerem como uma ameaça. No entanto, como deus “duplo” e insaciável, ele mostra o outro lado da máscara na expressão crua e delirante destas pulsões.

O homem encontra-se na dupla contingência de aceitar o seu lado irracional, ao mesmo tempo que tem que assumir o seu lado apolíneo, racional, que lhe permitirá a adaptação à vida de todos os dias. Se a decadência surge na medida em que nos afastamos de nós próprios, então esta revelar-se-á por incapacidade de aceitação do lado irracional, ou pelo contrário, pela impossibilidade de o conter.

Podemos dizer que ao homem resta a possibilidade de dissimulação das suas pulsões, através das inúmeras máscaras que usa no seu quotidiano. O lado pulsional manifesta-se através de símbolos, de imagens.

Perante as questões colocadas inicialmente, apraz-nos dizer que as Bacantes transportam para o palco o peso da submissão perante as figuras de poder, edificada sob as leis e os preceitos sociais da época. Perante esta realidade existencial, brota o desejo da libertação, no encontro com o sonho e a fantasia. O ser humano pode viver como um estrangeiro perante si próprio, pelo que o convite último será a descoberta de si próprio.

Nas múltiplas expressões artísticas revela-se o outro lado do humano, o que não é consensual, abrindo a porta para o questionamento relativo aos valores individuais e colectivos. A ordem e a estabilidade social podem sempre ser questionáveis.

Girard (1982) explica as perseguições colectivas face às minorias, entre as quais, se incluem as Bacantes, através do conceito de “bode expiatório”. Desde logo, a causa que justifica essas perseguições resulta da indiferenciação dos papéis sociais desempenhados pelos diferentes membros de um determinado grupo social, mecanismo que colocaria em causa o poder das diferentes instituições sociais. O grupo minoritário, ao assumir a responsabilidade pela crise, vai legitimar essas perseguições, pela necessidade de repor a ordem perdida.

O espírito dionisíaco é marcado pelo júbilo, pela liberdade e pela violência. As bacantes mostram-nos que o caminho da afirmação da vida é traçado até aos limites da existência.

O dionisíaco poderá representar a abertura para a libertação social e psicológica, perante as múltiplas constrições sociais, com que as mulheres, a par dos escravos e dos estrangeiros, aí se deparam, a par da necessidade de respeito pelas leis. A tragédia tem implícita a semente da ética, na medida em que apela à individualização das escolhas, ao desafio de existir fora do plano da moral. O individuo age de acordo com a sua consciência.

O jogo destas tensões dramáticas habita em nós, estando agora dependente da consciência individual. O risco encontra-se no momento em que os homens e as mulheres deixam de perceber que só os deuses são imortais e se auto-elegem como divindades, com todas as consequências que daí possam advir.

A viagem pela mitologia grega, onde destacamos a senda de Dioniso, abre-se assim como uma chave hermenêutica para os movimentos de vida e de morte, de racional e irracional que encarnam a condição humana, onde a procura do êxtase é a chave para compreendermos a necessidade que os indivíduos revelam de “saírem de si próprios” e de procurarem novos mundos de felicidade e de apaziguamento das tensões, mesmo que essa procura leve a uma descida aos Infernos onde podem permanecer para sempre.

Na Grécia Antiga, berço das civilizações ocidentais modernas, “a religião dionisíaca e a experiência psíquica que ela comporta, surge como uma exploração em profundidade da psyche humana, quando sujeita a forças para além da razão” (Pereira, 1998, p. 27). No contexto desta experiência, a eudaimonia resulta de uma “felicidade

que advém de uma aliança com a divindade, daimon” (Romilly, 1970/1997). Todos são convidados à comunhão desta euforização, mesmo os grupos geralmente subjugados a grandes condicionantes sociais, como as mulheres, os escravos e os estrangeiros. O elemento trágico surge quando o individuo perde a capacidade de aceder ao irracional, ou pelo contrário, quando se perde no ilusório, e se exclui da realidade.

Para Vernant e Naquet (1981/1999) a experiência religiosa dionisíaca, em vez de promover a integração das pessoas no mundo, no seu devido lugar, visa projectá-las para fora dele, no êxtase, ao uni-las ao deus na possessão: “A crise de possessão dionisíaca, instrumento temporário capaz de fazer o homem reencontrar a saúde e reintegrar-se à ordem do mundo, torna-se única pelo qual ele pode escapar do mundo, sair da condição humana e chegar assemelhando-se ao divino, a um estatuto de existência que as práticas culturais correntes não poderiam alcançar mas que também não tinha lugar, nem sentido, no sistema da religião cívica” (p. 340).

A experiência dionisíaca corresponde desta forma, a uma comunhão íntima com o divino, assumindo por vezes um carácter delirante, que encontramos descrito por exemplo no diálogo entre Penteu e Dioniso no caminho para Citéron, descrito nas Bacantes de Eurípides:

- Penteu: “Vê lá! Parece-me que avisto dois sóis e duas Tebas, duas cidadelas com sete portas. E parece-me que tu, que caminhas à minha frente, és um touro, e que na tua cabeça crescem chifres. Acaso foste sempre um animal? O certo é que agora te transformaste em touro” (p. 81).

- Dioniso: “O deus acompanha-me: ele que dantes não nos era propício é nosso

No documento Alcoolismo no feminino (páginas 57-67)