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III ESTUDO EMPÍRICO

No documento Alcoolismo no feminino (páginas 91-95)

3.1 Objectivos

Propomos neste ponto uma reflexão sobre conteúdos que se destacam da introdução teórica formulada anteriormente, com o intuito de se criar pontes que permitam a passagem e a articulação com a componente prática e empírica que vem complementar e viabilizar a criação de novas concepções no âmbito deste trabalho.

Como vimos anteriormente, o estudo da associação entre diferentes perturbações da personalidade e o alcoolismo ocupa um lugar importante no vasto campo da Alcoologia. No contexto da nossa prática clínica, esta temática tem sido acompanhada por uma contínua reflexão, aliada à curiosidade e à indagação por novos prismas sobre a realidade psicológica do sujeito alcoólico. Neste sentido, surgiu em determinada altura, a necessidade de aprofundar a questão relativa às possibilidades de desenvolvimento mental por parte da pessoa dependente do álcool. Encontramos na teoria bioniana, a conceptualização do conceito de Transformações Mentais, enquanto conjunto de processos a partir dos quais se gera o crescimento mental.

Neste sentido, poderemos pensar o sujeito alcoólico como um sistema, no seio do qual coexiste o caos psíquico, mas também a possibilidade de criação de novos sentidos para a sua existência. Procura-se, desta forma, saídas de um estado psicológico onde impera a alienação, a coisificação, a impossibilidade de criação de novos significados que por sua vez leva à mecanização do ser e a perda da liberdade de acção.

A curiosidade e a exploração de novas verdades psicológicas coexistem com a turbulência das desorganizações e das consequentes reorganizações, provocadas pelas sucessivas transformações, integrando o novo e o estranho no que havia sido constituído, no mundo subjectivo do sujeito, sempre numa dinâmica construtiva e relacional da subjectividade. A descoberta de novas possibilidades de se ser encontra-se condicionada pela criação de novos vínculos, sem os quais o sujeito não evolui, tornando-se numa coisa “não pensante”.

A partir dos elementos seleccionados da teoria psicanalítica, reformulados na especificidade do quadro por nós constituído, e na tentativa de os integrar num segundo momento – na análise interpretativa das entrevistas clínicas aplicadas e dos protocolos Rorschach, propomos uma reflexão clarificadora sobre a forma como o sujeito alcoólico

se relaciona com a verdade sobre si próprio e os outros e dessa forma tecer algumas considerações sobre a (in)viabilização do processo de construção da subjectividade. Em Estudos Psicanalíticos Revisitados, Bion (1967/1994) considera que “na personalidade em que predominam os instintos de vida, o orgulho converte-se em respeito a si mesmo; predominando os instintos de morte, o orgulho transforma-se em arrogância” (p. 101). Interessa perceber de que forma se opera a interligação da arrogância, a curiosidade e a estupidez com o novo e disruptivo, com maior ou menor flexibilidade, providenciando novas possibilidades de integração(ões) e de transformação(ões). É deste equilíbrio instável, que poderá renascer a saída de um processo auto-destrututivo, instituído sob a égide das pulsões de morte.

As diferentes transformações da realidade encontram-se inscritas no modelo continente-conteúdo, onde, por sua vez, as particularidades desta interligação dependem, entre outros factores, da natureza dos vínculos que estabelecem as ligações. A possibilidade de se (re)criarem novos significados decorre da combinação entre esses elementos. O carácter inatingível de se chegar a (O) resulta de um processo mutacional constante, que confere ao sujeito psicológico a possibilidade de criação de novos vértices sobre a realidade e de tomada de decisões em função dos mesmos, qualificando-o de ser livre. A verdade dos vínculos (L, H e K) viabiliza a aproximação a (O), num movimento permanente, construído ao longo do tempo. Pelo contrário, a inversão da função vincular, o afrouxamento da relação continente-conteúdo, e a incapacidade de transformação, impossibilitam a capacidade de pensamento e de crescimento, abrindo-se caminho para a manifestação da identificação projectiva patológica, como acontece nos estados psicóticos, onde a arrogância se sobrepõe à indagação e à curiosidade, num processo de afastamento de (O), inviabilizando-se assim a capacidade de criação de sentidos.

Esta caminhada até (O) é condicionada pela tessitura dos afectos, no seio da qual se alicerça a identidade, os processos de identificação e a natureza da comunicação. A aprendizagem do amor, do ódio, e da verdade sobre quem somos, resultam destas trocas, que constituem um legado que ganha dessa forma um cunho “hereditário”, na medida em que se ama como se foi amado. Neste sentido, a par da importância dada aos processos psicológicos apresentados pelas mulheres alcoólicas, que assumem uma dimensão intrasubjectiva, importa diferenciar igualmente a sua realidade intersubjectiva, na medida em que nos dá conta da forma como ambas se nutrem, possibilitando ou não a sua transformação e a sua diferenciação.

Desta forma, com o objectivo de captarmos as verdades psicológicas relativas a esta dimensão intersubjectiva, iremos proceder à realização de uma entrevista clínica por forma a aceder às diferentes expressões da subjectividade, constituídas sobre a forma de um mito individual. Transparecerá a unicidade e/ou a arrogância, ou pelo contrário, a pluralidade de ideias, fruto de diferentes vértices da realidade, indiciadoras de um percurso no sentido de (O).

Consideramos que os comportamentos alcoólicos assentam em diferentes percursos de vida, no seio dos quais se torna fundamental estudar de que forma certas vivências consideradas significativas e se encontram associadas ao consumo progressivo e patológico de bebidas alcoólicas.

O dionisíaco a par do apolíneo, representam estados mentais inerentes à nossa condição humana. Se Apolo apela ao cumprimento das regras, e ao rigor, representado na tragédia de Eurípides As Bacantes por Penteu, enquanto representante da Polis, Dioniso interpela-nos à descoberta do irracional, da alegria e do êxtase.

O dionisíaco não é sinónimo de embriaguez alcoólica, mas sim o sorver da vida até aos limites. Assim, a decadência encontra-se nos antípodas destes dois estados: a impossibilidade de afirmação perante uma realidade vivida como intransponível, onde o núcleo da problemática se encontra na dificuldade em agir como forma de resolver o problema, ou pelo contrário, a perda do contacto com a realidade desencadeada pela exaltação, a euforia, onde a actuação dos impulsos, surge de forma não pensada.

Partindo do significado destes dois estados mentais, evidenciados na tragédia de Eurípides, pretendemos ver de que formas se manifestam e quais as reais possibilidades de crescimento mental passíveis de mobilizar a saída dos estados de decadência em que se encontram e o regresso a um equilíbrio sempre instável entre o apolíneo e o dionisíaco.

Iremos aceder à relação continente-conteúdo e Ps↔D, os vínculos (L,H e K), as transformações, sublinhando o papel comunicacional desempenhado pela identificação projectiva, sob o vértice da intersubjectividade, permitindo o estabelecimento de pontes entre a teoria e a prática e a interpretação das narrativas apresentadas.

A partir do método Rorschach, pretende-se aceder à forma como se processa a ligação entre o interno e o externo, conhecendo desta forma a natureza do objecto interno e as suas relações e transformações com o objecto externo. Lugar e espaço onde se inscreve a função simbólica, actividade que mobiliza a linguagem e sucessivas ligações que sucedem a “situação catastrófica” do objecto externo e desconhecido

(mancha). Esta condição suscita ao sujeito a capacidade de pensar, transformando, ligando e recriando o que é percepcionado – pelas capacidades de diferenciação e da distância sujeito-objecto, interno-externo e as oscilações entre a dispersão e a integração, através da relação continente-conteúdo – na sua interpretação, através de palavras e de conceitos (Marques, 1999).

Sustentada num referencial Bioniano, propomo-nos a analisar a forma como o Rorschach mobiliza os processos psíquicos que nos dão conta das potencialidades presentes na exploração do conhecimento e expansão através de novas integrações, pela significação das respostas Rorschach como verdades do sujeito no sentido de uma aproximação a “O”.

Propomo-nos a analisar as entrevistas clínicas e os protocolos Rorschach, guiados pela questão: De que forma se expressam os mitos individuais e quais as reais possibilidades de criação de novos vértices face à realidade? Procura-se analisar e destacar de que forma se geram novos sentidos ou, pelo contrário, qual o peso da “arrogância” no comprometimento do processo de construção da subjectividade?

Estas questões integradas na teoria procuram a captação da essência do sujeito psicológico, evidenciada pelas participantes que integram este estudo. Esperamos identificar potencialidades psicológicas que remetem para a possibilidade saída de um estado de doença física e psicológica, há muito iniciado pelo consumo de bebidas alcoólicas e que se não for interrompido, comprometerá a qualidade de vida destas mulheres, em última instância a possibilidade de sobrevivência.

Para além destes objectivos focalizados nas potencialidades de crescimento psicológico por parte de mulheres alcoólicas, pretendemos igualmente ampliar os conhecimentos sobre o método Rorschach e a sua aplicação futura na praxis clínica.

3.2 Metodologia

No documento Alcoolismo no feminino (páginas 91-95)