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Síntese integrativa

No documento Alcoolismo no feminino (páginas 88-91)

II ENQUADRAMENTO TEÓRICO

2.2 Processos de subjectivação

2.2.3 Síntese integrativa

A partir de alguns conceitos oriundos da Psicanálise, pretendemos definir um campo de reflexão que nos permita aprofundar e compreender diferentes formas que os indivíduos apresentam de estar no mundo, escolhendo-se a si próprios e escolhendo os outros numa lógica de cuidar que abarca o espaço dos afectos, ao mesmo tempo que tomam opções no sentido da prossecução de um projecto existencial. O inverso destes processos torna-se visível em múltiplas formas de decadência existencial, como é o caso do alcoolismo.

Com efeito, o alcoolismo, e mais especificamente o alcoolismo na mulher pode ser visto como um paradigma da negatividade deste processo, onde o ser é conduzido por Dioniso de forma patética para a morte. O trágico assume-se com toda a exuberância, porque o sujeito procura libertar-se, no entanto, a perda da consciência de si próprio, pode levar a um processo de ruptura, pondo em causa a sua existência.

Se usarmos como metáforas, Citéron, lugar onde as Bacantes exacerbam os seus impulsos e Tebas, local onde impera a lei e a ordem, podemos afirmar que no modelo Freudiano, o dionisíaco resulta da expressão do material inconsciente, fonte inesgotável de sonhos e desejos. O acesso à verdade resulta da consciencialização dos mesmos e essa é uma condição essencial para a cura dos problemas psicológicos.

No modelo Kleiniano continuamos a assistir à relevância do sentido de transformação de Ps→D, do registo mais primitivo do pensamento para um registo mais evoluído, expresso ao nível da formação simbólica.

Nestes dois modelos, evidencia-se uma lógica disjuntiva, na medida em que ou existe o sintoma ou não existe. O caos e a ordem excluem-se, numa lógica que associamos aos modelos de cariz médico, onde se impõe o conceito de saúde por oposição à existência de patologia.

Na passagem para o modelo Bioniano, admite-se a coexistência do caos e da ordem como condições inerentes à condição de se ser humano, admitindo-se dessa forma um espaço para a expressão dionisíaca no ser humano. A decadência, a estranheza, e a mentira, fruto da arrogância e da estupidez, coexistem com a possibilidade eterna da renovação.

O caminho da errância para o sério, faz-se pelo conhecimento (vínculo K) e só aí pode brotar novamente a possibilidade de amar os outros e a si próprio, (vínculo L). Só se ama o que se conhece. Entre Penteu e Agave, gera-se a vida, num espaço que engloba o êxtase, a euforia, a carnavalização na sua máxima expressão, mas também a ordem, a razão e a lei. Nos extremos existe a morte e a destruição. Entre Tebas e Citéron, o Homem renova-se, sendo por vezes na aproximação à morte que encontra um sentido para a vida. O caos nutrifica o cosmos, numa dialéctica que encontramos na criação da subjectividade e que se vai reflectir igualmente no processo criativo.

A afirmação da vida pelo “Homem Trágico” é sinónima da vontade de viver até ao limite os problemas mais dolorosos. “O” é o horizonte do Homem que ultrapassa os limites, na procura da verdade. A negação da natureza humana não se encontra no dionisíaco, mas sim na incapacidade em se enfrentar a dor e o sofrimento, desresponsabilizando-se da vida e limitando dessa forma as possibilidades de agir, ou pelo contrário, no enfrentar das situações sem pensamento, sem o simbólico e aí impera a mecanização dos actos. Nos extremos reside a “degenerescência”, a morte de si próprio e o apagamento da realidade circundante.

O dionisíaco resume-se na afirmação da poesia de Thoreau (1854/1999) no êxtase perante a vida:

Fui para os bosques para viver livremente, para sugar o tutano da vida,

para aniquilar tudo o que não era vida,

Um dizer “Sim” à vida sem reservas, sorvendo o que ela tem para nos dar, mesmo que seja necessário enfrentar a dor e o sofrimento, condição sine qua non na perspectiva bioniana para que possa ocorrer o crescimento mental. Todavia, voltamos à problemática em torno do êxtase, na medida em que a prossecução no sentido de “O”, ou “deidade”, parece confluir com as vivências descritas por Teresa d´Ávila, na medida em que há um fundamento para a acção, que visa a descoberta da verdade. Em última instância como refere S. Paulo “Eu vivo, mas já não sou eu quem vive, é Cristo que vive em mim” (Gálatas 2,20). Pelo contrário, no êxtase dionisíaco, o “O” é o nada, pois o Homem apenas depende de si próprio, correndo o risco de se tornar num poeta do vazio.

Se por um lado, a criação do “mito individual” é uma aquisição feita ao longo do tempo e transporta em si mesma a forma como os indivíduos se relacionam com a realidade, por outro, a possibilidade de evolução desta mundividência, passa pela possibilidade de criação de novos vértices sobre a realidade. A arrogância fruto da certeza e da circularidade do pensamento, resulta do ódio ao conhecimento, sob a égide do vínculo –K. O devir do Ser, que segundo Heidegger (1927/1984), se revela na linguagem, inviabiliza-se e o resultado será a sua decadência.

Ao focarmos ainda que de forma breve três modelos psicanalíticos que colocam questões sobre a condição do Ser, assistimos à transição de uma perspectiva ontológica sustentada na exclusão dos opostos para uma perspectiva de inclusão destes, e que vai condicionar a forma como é perspectivada a saída dos sujeitos de uma situação de decadência existencial, como é o caso do alcoolismo. O pensamento não é imutável, na medida em que contem em si a possibilidade de expansão, resultante da dinâmica criada a partir das reconstruções e rupturas do sentido, resultantes de Ps↔D. O dizer “Sim” à vida sem reservas, sorvendo o que ela tem para nos dar, mesmo que seja necessário enfrentar a dor e o sofrimento, condição sine qua non na perspectiva bioniana para que possa ocorrer o crescimento mental.

Dioniso e Deméter são os deuses da fecundidade, reafirmando em cada ciclo da natureza a fecundidade da vida. Tal como a videira, ou uma ceara de trigo, o ser Humano pode viver o “tormento do Inverno” para “renascer na Primavera”. A possibilidade de aceder à criação da humanidade que existe em cada indivíduo depende da abertura a novas perspectivas sobre a realidade, mesmo que para tal seja necessária a desconstrução do seu “mito individual”, condição sine qua non para a saída de um estado de decadência existencial.

No documento Alcoolismo no feminino (páginas 88-91)